Afirmam que o Camboja conheceu momentos de horror, destruição e sadismo e que isso seria um produto necessário da ideologia comunista - segundo eles: intrinsecamente autoritária e genocida. Poderíamos tratar dos vários genocídios brutais praticados pelo imperialismo e os defensores do livre-mercado, democracia e direitos humanos. Mostrar que suas denúncias contra os horrores no Camboja não passam de mera hipocrisia, que os mesmos "indignados" nunca falaram nada contra os milhões de mortes provocados pelo imperialismo na África, Ásia e América Latina, etc. Mas isso não entraria no cerne do argumento anticomunista. É nele que temos que nos deter.
A ideologia dominante esconde; recalca; coloca na sombra, todas as condições históricas concretas que deram forma e que constituem parte essencial no processo de compreensão das experiências socialistas do século XX. O procedimento é sempre o mesmo: esconder o quadro histórico concreto e apontar uma série de "crimes" (em alguns casos verdadeiros, como no Camboja) como produto de uma ideologia autoritária e/ou de um líder sádico. Mas vamos começar a desenhar um quadro histórico concreto. Os horrores no Camboja começaram a ser possível assim:
"No início da década de 1970, o presidente Richard Nixon e o seu conselheiro para segurança nacional Henry Kissinger ordenaram que fossem lançadas nas áreas rurais do Camboja mais bombas do que tinham sido lançadas sobre o Japão durante a II Guerra Mundial, matando pelo menos 750.000 cambojanos" (Johnson apud Losurdo, 2010, p. 308).
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O objetivo dos EUA era bem claro: uma política terrorista de bombardeios que visava acabar com a produção de alimentos, destruir psicologicamente toda população e acabar com qualquer foco de resistência à dominação imperial do capital. As pessoas que fugiam dos bombardeios levavam "uma existência precária à beira da morte pela fome" (ibidem). Os resultados do conjunto das operações repressivas foram:
"No final da guerra, só na capital eram dois milhões os cambojanos desenraizados pela guerra e amontoados em "choupanas" e "barracas", com os doentes e feridos recuperados nos hospitais, mas com "poucas esperanças de sobrevivência" (Short apud Losurdo, 2010, idem).
Não bastam os ataques diretos dos EUA. Concomitante a isso o ditador Lon Nol praticou vários massacres. Nol chegou ao poder em um golpe de Estado arquitetado e apoiado por Washington, em 1970. O ditador praticou vários fuzilamentos em massa, estupros coletivos, mortes com requintes de crueldade das mais variadas ordens. Tudo com apoio bélico, financeiro, diplomático e político do governo dos Estados Unidos.
É claro que toda essa política de massacre tinha os comunistas como algo preferencial. Na casa de um agente da CIA foi achado "uma casa decorada com uma colar de orelhas arrancadas das cabeças de comunistas [indochineses] mortos" (Short apud Losurdo, 2010, p.309). Então temos um quadro histórico, ainda que sumário mais ou menos bem delineado. A política imperialista dos Estados Unidos visava combater o avanço das forças comunistas no bojo dos processos de descolonização dos países asiáticos (o movimento comunista foi fundamental para a descolonização do mundo), para fazer isso usaram uma política genocida e terrorista de bombardeios em massa, massacre de milhares (750.000 pessoas), apoio à ditadura que também praticou vários massacres, estupros, e desestabilização de todo corpo social.
É nesse contexto que surge Pol Pot e o Khmer Vermelho. Não temos a mínima intenção defendê-lo. Seu governo foi genocida e autoritário. Mas não foi uma deriva necessária da ideologia comunista. A lunática idéia de Pol Pot de deportação em massa da cidade para o campo foi resultado de fugas em massa do campo para a cidade para fugir dos bombardeios dos EUA. Uma sociedade destruída, arrasada e com a imensa maioria do seu povo vítima de violências brutais produz fenômenos aberrantes como Pol Pot. O Khmer Vermelho também comprava armas do governo neoliberal de Margaret Thatcher (que não tinha quaisquer problemas em vender). O presidente do EUA Ronald Reagan, outro neoliberal, também apoiou nas sombras o Khmer Vermelho, pois ele em seu confronto com o Vietnã enfraquecia o campo socialista na Ásia.
Em resumo, os que tentam "explicar" os horrores no Camboja fazendo dele um produto derivado da ideologia comunista e do instinto de sadismo de Pol Pot, traçam um quadro histórico deformado, falso. Esquecem que os horrores com Camboja foram antes de tudo resultado das ações do imperialismo, esquecem que os bombardeios dos EUA mataram tanto (ou mais) que as loucas ações do Khmer Vermelho e esquecem que os resultados dessas ações ainda hoje matam cidadãos cambojanos. "Em toda a Indochina [atualmente] há pessoas que morrem de fome, de doença e de projéteis não explodidos" (Chomsky Apud Losurdo, 2010, p. 310). Enquanto Pol Pot já morreu e o movimento comunista perdeu o protagonismo de outrora na Ásia, as ações do imperialismo continuam matando. Evidentemente, autores do "Livro negro do comunismo" e outras barbaridades não prestam atenção para isso. A esquerda que simplesmente nega essas experiências como não-socialistas (e no Camboja nunca houve socialismo), mas não traçam uma crítica profunda que procura desvendar a hipocrisia dos intelectuais da ordem presta mais um desserviço do que ajuda nas lutas antiimperialistas e se torna um instrumento - pela esquerda – de divulgação dessa visão apologética.
Nota:
Citações tiradas do livro: Domenico Losurdo – Stálin: uma história crítica de uma lenda negra. Editora Revan, 2010.
Jones Manoel é graduando em História pela Universidade Federal do Pernambuco/Brasil e militante da UJC/PCB.