Foto: Vilarejo Comunicação.
Para Rudá, Lulismo é uma plataforma de gestão estatal. Consolidada no segundo mandato de Lula (2006/10) como uma agenda desenvolvimentista pode ser caracterizado por três elementos principais: orçamento público concentrado, financiamento do grande capital a partir do estado e “inclusão social” via consumo, através de programas de transferências de renda como o Bolsa Família e o aumento real do salário mínimo. Também pode se entender como características do Lulismo o presidencialismo de colisão e a captura dos movimentos sociais para dentro da estrutura estatal.
Na entrevista a seguir, exclusiva ao Diário Liberdade, Rudá defende que a perda do papel de formação de opinião da classe média tradicional para a chamada “classe C” “é o maior fenômeno sociológico do período”.
Também disse que o governo Dilma está tendo “o pior início de um governo federal em toda história de nossa República”. E que, talvez, só uma liderança carismática pode solucionar o problema. Ex-militante do Partido dos Trabalhadores (PT), não tem dúvidas em afirmar que o PT e seus governos “não são nem mesmo socialdemocratas”. São social liberais.
Rudá Ricci tem mestrado em Ciências Políticas e Doutorado em Ciências Sociais. É membro de entidades ligadas ao orçamento participativo e diretor da ONG Cultiva. Além disso, é autor de “Lulismo – Da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova Classe Média Brasileira” e de “Nas Ruas – A outra política que emergiu em junho de 2013”. Também escreve regularmente artigos em seu site e comentários diários em sua fanpage no facebook.
Confira a entrevista:
Em poucas palavras: O que é exatamente o Lulismo?
Lulismo é uma plataforma de gestão estatal. Entre 2006 e 2010, se conformou como uma agenda neodesenvolvimentista muito próxima da agenda rooseveltiana, de orientação estatal para o consumo e para os investimentos (inclusive, os privados). O Lulismo se sustentou num tripé: concentração orçamentária, aumento da renda média do trabalhador para constituir um potente mercado interno (que financia a empresa nacional) e orientação para os investimentos privados (e atração de capital externo).
O problema é que para dar certo é necessário ter um fluxo significativo de investimentos externos, dado que nossa poupança interna é baixa. Ocorre que vivemos um período de crise internacional. Esta contradição leva a oscilações permanentes que somente uma liderança carismática consegue driblar, atraindo o cidadão num ciclo de confiança o que preserva a governabilidade. Com Lula funcionou. Com Dilma Rousseff, não.
Você recua até 1994 para explicar o nascimento do Lulismo. Defende que no primeiro governo Lula, o Lulismo se apresentou como um esboço e que amadureceu no segundo. Por que 1994?
Porque em 1994 o PT altera sua lógica de funcionamento e seu ideário. É a ascensão de José Dirceu, um comandante pragmático cujo foco é a tomada do Estado. Ao contrário do início do PT, onde a disputa dos valores e da cultura - inspirado fortemente nas teorias gramscianas - definia a ação nas ruas, a partir de 1994, o PT tem como foco o campo institucional e o processo eleitoral. Tal opção altera o perfil do seu eleitorado, o perfil de suas direções e o transforma no Partido da Ordem, com fortes tonalidades conservadoras, de conservação do poder que conquistou.
Foto: Capa do livro Lulismo - 2º Edição.
Você defende a tese que o Lulismo implantou uma agenda estatal-desenvolvimentista. Ou seja, fordista. Mas não seria mera reprodução estadunidense ou europeia. Quais características são reproduzidas e quais são autóctones?
O que há de original é a relação com movimentos sociais que emergiram nos anos 1980. Criou-se uma espécie de "anéis burocráticos" ou fóruns de formulação de políticas públicas com forte presença de lideranças sociais no interior do governo. O problema é que a inclusão pelo consumo gerou forte conservadorismo popular, porque focado na aquisição de bens, não do direito ou na política. Esta novidade o Lulismo e suas lideranças não conseguiram absorver e enfrentar.
A tese de que a classe média tradicional perdeu o papel de formação de opinião para a “classe C” (nova classe média ou classe trabalhadora com melhor renda) se sustenta? E se houve tal processo, por que e como ele ocorreu?
Este é, na minha opinião, o maior fenômeno sociológico do período. O eleitor pobre, até então, era indiferente em relação ao processo eleitoral, já que as elites disputavam entre si e poucas políticas centrais o atendiam. Com o Lulismo, houve mobilidade social. As eleições, portanto, passaram a ter sentido. A pesquisa de Walquíria Leão Reis, professora da Unicamp (cf. seu livro "Vozes do Bolsa Família") revela esta nova situação. As beneficiárias deste programa continuam achando que todos os políticos formam uma elite e não votariam se o voto fosse facultativo. Mas, mesmo assim, afirmam que votaram em Lula porque ele foi pobre e sabe do sofrimento delas, embora tenha se juntado à elite política. Esta diferenciação é extremamente importante porque se constitui num divisor de águas no processo eleitoral nacional. O eleitor não segue mais seu patrão ou o seu "orientador eleitoral" de outra classe social. Não se trata de neoclientelismo - o eleitor pobre ainda considera que todos os políticos formam uma elite distante-, mas de reconhecimento que os candidatos são distintos entre si. Romperam com os laços de dependência de classe.
Atualmente você aderiu à tese de que a base social do Lulismo é parte da classe trabalhadora com melhor rendimento? Se for assim não teria uma nova classe média no país?
A base do Lulismo é a do PMDB: pobre e com baixa instrução, com baixo nível de organização política. Daí o embate entre os dois partidos.
Foto: Virginia Damas.
Talvez, a oposição que a classe média tradicional vem fazendo ao PT se justifique porque as políticas petistas são uma ameaça ao seu status de classe dominante: elite cultural. Só que recentemente André Singer levantou dados que mostra que classe média teria sido um segmento que perdeu renda nos governos petistas. Você concorda com tais afirmações?
Sim. Há várias aproximações e simulações realizadas por economistas (como os de Beatriz David, da UERJ) que indicam que o segmento de renda que não obteve qualquer vantagem com o advento do Lulismo foi a classe média tradicional, a classe de consumo B. Os mais abastados foram beneficiados com aumento de consumo popular e recursos do BNDES; os menos abastados receberam recursos dos programas de transferência de renda, acesso ao crédito popular e aumento real do salário mínimo. Além da expansão do mercado de trabalho formal. A classe média tradicional tem do que reclamar, a despeito de ser nitidamente egocêntrica e pouco generosa.
Com a vitória de Dilma em 2010, a figura carismática que o Lulismo é dependente sai de cena. O que os governos de Dilma mantiveram e mudaram em relação à engenharia política criada por Lula?
Mantiveram pouca coisa do Lulismo. Ao contrário, tentaram segurar o que se esvaia por seus dedos: o arco de alianças, a estabilidade do consumo popular, os investimentos internacionais diretos. Perdeu consistência e apoio. E, parece, começa a perder a governabilidade. Como já afirmei, o Lulismo é o fordismo tardio: investimentos e orientação estatais pesados num período de vacas magras em termos de investimentos.
Os solavancos da economia são previsíveis e só uma liderança carismática pode contorná-los. Algo que Dilma Rousseff definitivamente não é.
Você chegou a organizar debates em Belo Horizonte sobre a validade do conceito Lulismo. Que balanço você faz sobre eles?
Há forte divisão ideológica na sociedade brasileira, ainda mais forte após as eleições de 2014. Não teria motivos para que no meio acadêmico fosse diferente. O conceito divide pesquisadores. Os mais críticos são os que odeiam o Lulismo e alimentam certo ressentimento político em relação à sua emergência.
Foto: Capa do livro Nas Ruas.
Mas há quem não se fie por sua vida particular e tente aprofundar. De qualquer maneira, ainda há muita pesquisa a ser realizada sob o impacto dos governos lulistas. O que é certo é que não foram meros governos. Para o bem ou para o mal, alteraram profundamente a paisagem social e política do país. E isto, nenhum outro governo fez com tal intensidade e envergadura, desde o fim do regime militar.
No meio do governo Dilma, aconteceu as Jornadas de Junho. Você escreveu o livro “Nas Ruas - A outra política que emergiu em junho de 2013” sobre o processo. Quase dois anos depois qual é o grande legado de “Junho”?
Justamente o debacle do Lulismo sob a batuta de Dilma Rousseff. O impacto foi cultural e político. A partir de junho de 2013, todos os "novos segmentos sociais" foram às ruas, com exceção dos beneficiários do bolsa família. Mas seus filhos saíram, como foi o caso dos "rolezinhos".
Os petistas se revelaram anacrônicos, precocemente anacrônicos. Não entenderam o que se passava e passaram a temer as ruas. Se tornaram reativos e deixaram de ser protagonistas. Não se trata de mero "desgaste de material" após 13 anos de governo federal. Trata-se de uma profunda dificuldade para entender que os impactos sociais de uma política governamental não são determinadas pelos governantes. Quando o que projetaram não se revelou no mundo real, ficaram decepcionados e acuados. Típica reação de quem não está mais no meio dos trabalhadores e só pensa o país das janelas dos seus gabinetes. O PT envelhece aceleradamente.
Como você tem classificado, no aspecto ideológico, o governo Dilma e o Partido dos Trabalhadores?
Social liberais. Não são nem mesmo socialdemocratas porque não impõem limites à realização dos lucros dos empresários, não impõe limites à acumulação do sistema financeiro e nem taxa as grandes fortunas. O mote do Lulismo é a conciliação de interesses, tal como ocorreu com o getulismo.
Assista: Rudá Ricci analisa três caminhos que Dilma pode seguir
E o segundo governo Dilma?
É o pior início de um governo federal em toda história de nossa República. Será lembrado como uma espécie de governo Dutra, alimentado por seu antecessor, mas que não soube se afirmar como original. Ao contrário, parece sem rumo e sem controle político. No momento, depende de Lula para segurar as ruas; de Michel Temer para segurar o Congresso Nacional e de Joaquim Levy para segurar a ânsia do empresariado. O pior dos mundos.
Nesta semana vai ter duas marchas: uma que aposta no desgaste de Dilma e outra, que embora esteja insatisfeita com as medidas atuais da presidenta, é de apoio. Setores de oposição à esquerda, como o PSOL, defende que a saída é pela esquerda e se recusam a participar delas. O MTST – que é um dos poucos agentes sociais que conseguiu fazer grandes protestos pós-junho - não deve participar. Pelo contrário, prepara um “Março Vermelho” para as próximas semanas. Com um clima de “golpe” no ar e com o maior partido da “esquerda” brasileira na berlinda, é o certo a se fazer?
Foto: Presidenta Dilma durante o V Congresso do Partido dos Trabalhadores. Por Assessoria do PT.
Será a anti-política. Sair nas ruas neste momento é apostar na venezuelização do Brasil. Será o confronto dos governistas contra os golpistas (e parte dos oposicionistas, mesmo os que não desejam golpe algum). A grande maioria da população ficará, mais uma vez, assistindo os cachorros raivosos se confrontarem. O que, afinal, nos restará a partir do dia 16?
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Como podemos realmente construir um projeto de esquerda no Brasil tendo uma cultura popular tão conservadora? O último capítulo do seu livro sobre o Lulismo se refere a Educação Popular. O caminho seria por ai?
É no que acredito. Fui da equipe de Paulo Freire e minha vida toda foi dedicada à educação popular, cujo objetivo é a autonomia dos sujeitos, não sua orientação ideológica ou política. No campo político, acredito que teríamos que formular uma plataforma mínima para estabilizar o país e lhe dar um rumo. Cinco pontos, no máximo, não o rosário elaborado pelos iluminados do país. Algo que integre a esquerda e enfrente em outro patamar a direita, tendo como referência a grande maioria dos brasileiros que desejam apenas viver e progredir em paz.
Nós, de esquerda, deixamos de disputar valores há mais de uma década. Nos contentamos em discutir governos e a Corte. Maquiavel já nos ensinou que o poder não vem da Corte, mas das ruas. Não organizamos mais, não informamos (quem de nós continua acordando antes das 6h00 para distribuir panfletos em portas de fábrica?), não fazemos mais rodas de prosa nas periferias. Desconhecemos a realidade das redes sociais, mais incompletas e lacunares, mais interativas e comunitárias. Enfim, paramos no tempo. Temos que realizar nosso aggiornamento. E rápido. Rapidíssimo.