"Não podemos confundir o papel da esquerda; é preciso usar o processo eleitoral para fortalecer a luta popular, e não entrar na eleição achando que o nosso papel é ganhar o máximo possível de votos, a qualquer custo. Como se a obtenção de votos fosse mudar o Brasil", disse, destacando que tal visão impediu uma Frente de Esquerda de coligação nacional, ainda que o momento de insatisfação popular seja favorável.
Quanto aos principais candidatos, em sua visão inalcançáveis num modelo eleitoral controlado pelas grandes empresas e uma mídia monopólica, Zé Maria ressalta que todos representam o mesmo modelo econômico. Para ele, que já descarta Aécio do segundo turno, nem mesmo Marina esboça uma mudança substancial, ainda que num eventual segundo turno a chamada "direita tradicional" esteja fora.
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A entrevista completa com Zé Maria pode ser lida abaixo.
Correio da Cidadania: Como está vendo o atual momento político com as eleições que se aproximam?
Zé Maria de Almeida: Há uma reviravolta importante no quadro após o acidente que tirou a vida de Eduardo Campos, com a ascensão da Marina como candidata. Uma mudança importante que já implicou, em minha opinião, no afastamento do PSDB da disputa real. É bastante provável que o Aécio Neves caia cada vez mais daqui por diante e a eleição fique polarizada entre a Dilma e a Marina. Essa é uma mudança importante, um cenário eleitoral onde, digamos, a "direita tradicional" não está representada.
São duas candidaturas oriundas, em última instância, do próprio PT e que o partido materializa hoje no governo: um projeto de conciliação com o grande empresariado e os banqueiros, no qual o PT governa para aplicar um programa que atende, essencial e prioritariamente, os interesses deles.
A Marina, por mais que tenha estilo e discurso distintos, de defesa do meio ambiente, em termos de modelo econômico defende a mesma coisa. Ela, reiteradamente, tem dito que vai governar para os banqueiros e empresários, quer governar com PT e o PSDB. Ela não propõe uma mudança de modelo econômico em relação ao que está sendo aplicado no país.
Portanto, sequer na questão do meio ambiente, que ela diz defender, vai ter diferença no governo dela, porque o que está destruindo o meio ambiente no país são justamente os interesses das grandes empresas, por sua vez, o centro do modelo econômico aplicado. Não só as grandes empresas do agronegócio, mas o conjunto, as empresas de mineração, de energia e por aí afora.
Assim, é uma mudança importante, mas que aponta para um quadro de continuidade, seja através da Dilma, seja através da Marina. Neste sentido, um quadro que está questionado e contestado pelas mobilizações de rua desde o ano passado. As mobilizações de rua, mais as greves que as sucederam, questionam essencialmente o modelo que está posto. Pode ser que nas eleições a solução desaguadora de tal descontentamento tome forma na candidatura da Marina, mas isso vai gerar uma contradição para o futuro governo.
Porque o futuro governo, seja da Dilma, seja da Marina, e com aprofundamento da crise econômica, não vai apontar para o atendimento das demandas das pessoas que estão nas ruas. Pelo contrário, deve agravar a situação e a precarização da vida da classe trabalhadora brasileira.
Correio da Cidadania: Quais são, a seu ver, os principais problemas e questões do Brasil de hoje e como o programa do PSTU dialoga com isso?
Zé Maria de Almeida: O Brasil é um país muito rico. Em termos de recursos naturais é dos mais privilegiados do mundo. É um país com uma capacidade de produção industrial instalada imensa, ou seja, produz uma riqueza imensa todos os anos. No entanto, é um país cuja grande maioria da população vive em condições cada vez mais precárias. Por quê? Porque os recursos e a riqueza produzida pelo trabalho são canalizados para aumentar a rentabilidade de capital dos bancos, das grandes empresas, do agronegócio, das multinacionais que controlam o país.
Portanto, a primeira mudança necessária para que se possa atender à demanda de saúde, educação, moradia, transporte, aposentadoria, reforma agrária, é na estrutura econômica. Começa por não pagar a dívida interna e externa para o grande capital, estatizar os bancos e o sistema financeiro, colocá-los sob controle dos trabalhadores, reestatizar as empresas e o patrimônio que foi privatizado pelo governo do PSDB e pelo governo do PT, nas áreas de mineração, produção e distribuição de energia, petróleo, siderurgia, telecomunicações. É preciso colocar tudo isso sob controle do Estado e de um projeto para atender às necessidades da população brasileira, atacar o privilégio das grandes empresas, reduzir a jornada de trabalho, melhorar o salário dos trabalhadores, garantir o emprego...
E mudar as outras dimensões da vida social. Enfrentar e debelar o machismo, o racismo, a homofobia, mazelas que afligem fortemente a vida de parcelas grandes da população brasileira. Há uma verdadeira epidemia de violência contra as mulheres e a violência racial cresce cada vez mais no nosso país. Acabamos de ver o episódio lamentável lá no estádio do Grêmio. Mas aquilo é só uma expressão de uma realidade cotidiana da vida dos negros e negras no nosso país. Sobre a homofobia, o Brasil segue ostentando o vergonhoso título de país onde mais se matam pessoas por sua simples orientação sexual.
São mudanças necessárias no país para que as pessoas possam ter uma vida digna. E o Brasil tem condições de prover tais condições. Para isso, é preciso libertar o país do controle dos bancos e das grandes empresas. É preciso um governo que rompa com o grande empresariado e os banqueiros, um governo dos trabalhadores e sem patrões para promover tais mudanças.
Esse é o problema que já se anuncia com o eventual governo da Marina, que diz querer governar com todo mundo. É exatamente o problema que esterilizou o PT e os governos que o PT chefiou no nosso país, no sentido de realizar qualquer mudança de fundo na sociedade brasileira. Porque quando resolveu fazer uma aliança com o grande empresariado, com financiamento, apoio político e beneplácito da mídia pra ganhar as eleições, abriu mão e perdeu a capacidade de representar os interesses da classe trabalhadora brasileira.
Vamos retomar a ideia de um governo da nossa classe, da classe trabalhadora, sem patrões, que possa governar o Brasil e promover as mudanças. Esse é o sentido do projeto que o PSTU apresenta nas eleições, ou seja, é um projeto que em primeiro lugar apresenta um programa, com as mudanças de que o país precisa para as pessoas terem uma vida digna, mas que também discute como vamos realizá-lo: através de um governo dos trabalhadores e um governo que só vai se instalar e só vai governar se estiver apoiado num amplo processo de mobilização social.
Não é pelo voto que nós vamos reunir forças para mudar o Brasil. A eleição aqui é completamente controlada pelo poder econômico. Não é por aí que vai sair alguma mudança.
Correio da Cidadania: Em tal contexto, de controle absoluto do poder econômico, qual a importância das eleições de 2014 para as esquerdas e que papel elas podem, ou devem, desempenhar no meio dessa disputa em que não têm nenhuma candidatura realmente competitiva?
Zé Maria de Almeida: Em primeiro lugar, é importante a esquerda socialista identificar o que é o processo eleitoral e seus limites. Não é um meio de transformação do país, nem um meio de solucionar os problemas que afligem a vida do povo. É uma contingência participar do processo eleitoral. Participamos porque o povo também participa, e para apresentar um projeto alternativo aos que já estão postos. Mas sem nenhuma ilusão de que através das eleições seja possível realizar as mudanças de que o país precisa.
É muito importante que a esquerda tenha isso claro. Para o PSTU, as eleições têm o sentido de trazer para o debate político as demandas dos jovens e trabalhadores que lutam no país, e ao mesmo tempo usar a agitação e discussão política da campanha pra fortalecer a organização e as lutas diretas do movimento. Porque só a luta do povo muda a vida do povo. Não há possibilidade de construção das mudanças que precisamos fazer no país por fora da luta da nossa classe. Portanto, a eleição para nós serve fundamentalmente para isso.
Não podemos confundir o papel da esquerda, de usar o processo eleitoral para fortalecer a luta popular, e entrar na eleição achando que o nosso papel é ganhar o máximo possível de votos, a qualquer custo. Como se a obtenção de votos fosse mudar o Brasil. Foi a diferença que tivemos com o PSOL e a razão pela qual não temos uma coligação nacional. O PSOL prefere defender um programa no processo eleitoral que não se choque com o nível médio de consciência das massas, sem defender nenhuma bandeira que pareça muito radical, para não dificultar a disputa de votos. Para fazer frente ao financiamento do grande empresariado, começa a pegar financiamento das empresas também. O PT fez isso e vimos aonde deu.
Uma concepção diferente da nossa, que busca o voto como objetivo central dos partidos. E para a esquerda socialista, para aqueles que acreditam na transformação revolucionária do país e na construção do socialismo, a eleição não pode ser isso. Acreditar em tal coisa é acreditar em papai Noel.
Correio da Cidadania: Ainda assim, você não considera que essas representações da esquerda tenham perdido uma grande oportunidade, aberta pelas massivas manifestações de 2013, de se apresentarem ao pleito com maior peso político e social?
Zé Maria de Almeida: Para aproveitar de forma coerente as oportunidades que a luta de classes coloca, a esquerda, em primeiro lugar, precisa apresentar um programa que de forma realista mostre as mudanças que o país precisa para atender às demandas do povo. Sem isso, é vender ilusão. Se não defender a necessidade de parar de pagar dívidas para os bancos, reestatizar o patrimônio público entregue ao setor privado, e disser que resolveremos o problema da saúde, da educação e da moradia, estou mentindo.
Sem nos apresentarmos dessa forma, estaríamos ajudando a disseminar ilusões e mentiras na cabeça da classe trabalhadora, o que tem sido a especialidade do PT nos últimos anos: convencer o povo de que é assim, devagarinho, tem que dar dinheiro para banco, governar com os banqueiros...
Não conseguimos constituir a Frente de Esquerda porque teríamos de apoiar uma candidatura que diria que, com uma auditoria da dívida e uma reforma tributária, mudaríamos o Brasil. E não se muda o Brasil com uma auditoria e uma reforma tributária. Aproveitar a oportunidade implica se apoiar no amplo processo de mobilização, no acúmulo do descontentamento das pessoas no país, e apresentar a elas uma alternativa, mas uma alternativa de mudança real. O que implica enfrentar os privilégios dos bancos, das grandes empresas, o controle que as transnacionais têm sobre nosso país. Senão, não é alternativa real de enfrentamento.
O segundo problema é que tenho de dizer como mudamos o país. Não posso dizer 'vote no Zé Maria que ele fará as mudanças no país'. Não é verdade. As mudanças só virão com o fortalecimento da organização e da luta do povo. Não posso vender a ilusão de que basta votar num candidato de esquerda que o país vai mudar. Isso foi o que o PT fez. Com a incidência que tinha sobre a classe trabalhadora brasileira, poderia ter feito outra escolha no final da década de 80. Poderia ter levado aquele processo de mobilização social a fazer tanta pressão sobre o Estado que transformações de fundo teriam se produzido. Mas optou por canalizar tudo para as eleições. E temos o resultado hoje.
Portanto, não é verdade que, pra aproveitar as oportunidades abertas, era muito importante ter uma Frente de Esquerda, a qualquer custo. Seria bom, desde que fosse pra defender um programa de transformação do país para além do capitalismo, um programa anticapitalista, que dissesse a verdade para a nossa classe. Ou seja, para realizar tal programa, demanda-se um governo de trabalhadores que enfrente o grande empresariado e, consequentemente, conte com um processo amplo de mobilização social. Ao não existir acordo sobre esse tema, não tem por que fazer a Frente. Seria um tiro no pé.
Correio da Cidadania: Você considera que, nessas eleições, e dentro do contexto aqui descrito, o debate aberto pelo PSTU e pelas esquerdas de um modo geral conseguirá se impor e fazer a diferença de alguma forma, confrontando o debate da ordem?
Zé Maria de Almeida: Acho que a construção feita pelo PSTU já está fazendo a diferença, ao menos naquilo que nos interessa, que é nas lutas e organização dos trabalhadores e juventude. Incidir no processo é muito difícil, pois é controlado pelo poder econômico, as grandes redes de mídia, e não reflete de forma direta a realidade da luta de classes no país. Vejamos: a Dilma disse que vai gastar 300 milhões de reais na campanha; o Aécio, 290 milhões; a Marina, sei lá, 200 milhões. Ninguém tem dinheiro do bolso para gastar assim. É um dinheiro que será colocado pelas grandes empreiteiras, bancos etc. Essa é a via através da qual o poder econômico controla as eleições. A outra é a televisão.
Mesmo o espaço da TV para os candidatos, destinado pelo Estado, é distribuído de forma desigual. A Dilma tem 15 minutos, nós temos 45 segundos. O noticiário da Rede Globo não mostra as 11 candidaturas todo dia. Mostra três. E tudo somado leva a população a enxergar apenas três ou quatro candidaturas, escolher entre elas e ficar sem ouvir e tomar conhecimento de todas as propostas e ver qual é a melhor. Isso é o sistema eleitoral. Nesse debate, não creio que vamos incidir. Vamos incidir somente em parcela pequena da população.
Mas insisto: fortalecemos o outro processo, o da organização e luta dos trabalhadores. Nesse sentido, acredito que está avançando no Brasil a construção de uma alternativa de esquerda, socialista, na qual o PSTU tem sido parte fundamental. Esse é o centro da nossa preocupação e do nosso esforço.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.