Rompeu-se ali um pacto político, alicerçado no preço do petróleo, que possibilitou a convivência no poder entre dois partidos de centro-direita e a exclusão dos setores populares, sem que a alternância no poder e os aspectos formais da democracia liberal fossem colocados em questão. Um feito, em um continente pontilhado de ditaduras militares e golpes de Estado.
A crise anunciada
O pais vivia, desde 1983, uma séria crise econômica. Naquele ano, a queda dos preços internacionais do petróleo já abalara as finanças nacionais.
Em 4 de dezembro de 1988, Carlos Andrés Pérez foi eleito presidente da República pela segunda vez, com a consagradora marca de 56,4% dos votos válidos. Mais do que ninguém, o líder do partido Ação Democrática personalizava a prosperidade petroleira vivida na década anterior e sua situação de crescimento econômico, altos níveis de emprego e melhoria constante no padrão de vida da população. Ainda estava na memória de todos o lema de seu primeiro mandato: Democracia com energia. Sua campanha e sua vitória se deram sob o signo da promessa de dias melhores.
No entanto, a situação, do ponto de vista das contas públicas, era para lá de preocupante. Como fruto da queda acentuada dos preços internacionais do petróleo, ocorrida nos anos anteriores, as reservas do Banco Central, que em 1985 alcançavam US$ 13,75 bilhões, despencaram para US$ 6,67 bilhões no final da gestão de seu antecessor, Jaime Lusinschi. A inflação alcançava 40,3% ao ano, o desemprego alcançava dois dígitos e o salário real havia despencado. Uma aguda fuga de capitais completava o quadro.
Em 16 de fevereiro, o presidente se dirigiu ao País para anunciar seu programa de ação. Iniciou seu discurso com uma severa crítica ao modo de funcionamento da sociedade nos últimos anos, apresentou uma audaz e certeira visão das debilidades de sua economia e anunciou - sob todas as luzes, para surpresa de todos - que o governo havia firmado um memorando com o Fundo Monetário Internacional. Pérez ressaltou que aquela seria uma necessidade inadiável e a única possibilidade de tornar a economia mais produtiva e competitiva. E, claro, alertou que sua implantação implicaria graves sacrifícios a todos os venezuelanos por um curto período.
Leia mais: Rápidas considerações sobre a crise na Venezuela
O objetivo de tudo era liberação de um empréstimo de US$ 4,5 bilhões. A contrapartida, concretizada no dia 25, um sábado, era salgada: o pacote incluía a desvalorização da moeda nacional, o bolívar, a redução do gasto público e do crédito, liberação de preços, congelamento de salários e aumento dos preços de gêneros de primeira necessidade. A gasolina sofreria um reajuste imediato de 100%. Isso resultaria, segundo anunciado, numa majoração de 30% nos bilhetes de transporte coletivo. Na prática, estes reajustes chegaram também a 100%.
Nada disso havia sido ventilado durante a campanha.
Protestos
Antes das seis da manhã da segunda-feira, dia 27, começaram os primeiros protestos, aparentemente verbais em seu início, nos terminais de transportes coletivos das cidades dormitório ao redor de Caracas.
As pessoas que estavam no terminal Nuevo Circo logo se deslocaram para a avenida Bolívar, no centro da capital. Em frente ao busto do Libertador, começaram a construir barricadas, no meio da via, cortando a comunicação entre diversos pontos da capital. De início eram 200, mas logo formavam uma multidão.
Ao meio dia, um outro contingente conclamava estudantes, professores e funcionários da Universidade Central, zona leste da capital, a protestarem não apenas contra "os aumentos de preços das passagens, mas a se oporem também às outras medidas econômicas aplicadas pelo governo de Pérez". No início da tarde, estes manifestantes convergiram para a autopista Francisco Fajardo, colocando "galhos de árvores, garrafas ou quaisquer outros objetos, para impedir a passagem dos carros". Caminhões com cargas alimentícias começaram a ser saqueados e o comércio em volta fechou suas portas. A Polícia Metropolitana acompanhava tudo à distância, até que o primeiro ônibus foi incendiado. Aí começaram os disparos, até que um estudante foi atingido por uma bala perdida. Com saques se disseminando por outras regiões, no início da noite, o cenário era de caos.
As forças policiais, no bairro de Antínamo, chegaram a um acordo com os manifestantes, para que apenas mulheres e crianças entrassem nos estabelecimentos para saquear "com cultura e ordem".
A repressão
Carlos Andrés Pérez passara o dia 27 em Barquisimeto, capital do estado de Lara, voltando a Caracas por volta das dez da noite. No segundo dia de distúrbios, recebeu no palácio de Miraflores inúmeros empresários e lideranças políticas, antes de convocar, no meio da tarde, uma cadeia nacional de rádio e televisão. Ao vivo, para todo o País, anunciou o toque de recolher e a suspensão das garantias constitucionais. Foi a senha para que a repressão fosse desatada sem freios, especialmente sobre os habitantes das regiões populares.
Do Palácio escutavam-se tiros disparados nos bairros próximos. O dia 28 fôra de extrema tensão. Às oito da noite ainda havia gente em seu gabinete. Antes de se retirar, Pérez convidou Cláudio Fermín, prefeito de Caracas e Héctor Alonso López, dirigente da AD, para jantar. Ouvia-se o ronco dos helicópteros do exército sobrevoando a capital. Ao terminar a refeição, López dirige-se a Pérez e lhe diz preocupado:
"Esta foi uma reação dos pobres contra os ricos".
No bairro de Petare, as forças repressivas chegaram a disparar contra uma multidão, no dia 1° de março, matando mais de 20 pessoas. Apareceram franco-atiradores no alto de alguns edifícios na imensa zona periférica de 23 de Janeiro, assim batizada em homenagem à queda do ditador Pérez Jiménez (1949-1959). Soldados muito jovens e inexperientes, enviados para o local, armados com fuzis FAL, de vasto poder destrutivo, chegaram disparando contra os edifícios. Incontáveis moradores foram mortos. Nesta mesma noite, o clima foi de puro terror em outras regiões pobres. Cadáveres eram produzidos em quantidades industriais.
A rebelião ficaria conhecida como Caracazo, nome que não faz juz às suas dimensões nacionais, e abriria caminho para a surpreendente sucessão de eventos que sacudiriam a Venezuela ao longo da década seguinte.
Quatro anos depois, familiares e grupos de direitos humanos conseguiram apurar um total de 396 vítimas fatais nos cinco dias que durou a revolta. Os feridos contavam-se aos milhares e os prejuízos materiais são quase impossíveis de serem estimados. Os centros médicos contabilizaram um total entre 1 mil e 1,5 mil mortos.
Desastre econômico e social
A Venezuela encerrou aquele ano com uma queda de 8,1% no PIB e uma taxa de inflação de 81%. Nos anos de expansão, esta taxa não ultrapassava um dígito. A parcela da população que se vivia abaixo da linha de pobreza aumentou de 15%, no final de 1988 para 45%, dois anos depois. Até o final de seu mandato, Pérez eliminaria as regulamentações bancárias, acabaria com a maior parte dos controles de preços, privatizaria a companhia nacional de telefones (Cantv), o sistema de portos, uma importante linha aérea (Viasa) e abriria a indústria petroleira e outros setores estratégicos ao capital privado.
Quebrou-se, em fevereiro de 1989, a auto-imagem que os venezuelanos tinham de si mesmos e que era compartilhada por vários observadores internacionais. Segundo ela, o País seria um modelo de democracia e tolerância no continente, com suas eleições regulares, suas instituições, seus direitos civis, seus partidos com sólidas bases sociais etc. Rompeu-se um padrão de convivência construído ao longo de todo o século. Os canais de mediação de demandas entre a população e o Estado - partidos políticos e sindicatos - que, durante décadas, resolveram conflitos variados, mostraram-se inúteis quando a crise tornou-se irreversível.
A expansão petroleira dos anos 70 gerara para as classes dominantes, para as camadas médias e mesmo para os setores populares, de maneira diferenciada, a ilusão de que o País se descolara finalmente do destino de infortúnios do continente latino-americano. Como se recorda o pesquisador Steve Ellner, "A prosperidade deste decênio se converteria num ponto de referência constante para os venezuelanos e formaria parte de sua memória coletiva, fazendo-lhes difícil ajustarem-se aos tempos difíceis que viriam adiante".
Com o Caracazo, a Venezuela fizera um pouso forçado na realidade latino americana.
Reformas liberais
O sociólogo Edgardo Lander refletiu sobre isso num texto escrito em 2003. Eis o que ele diz: "Tendo escapado da dura experiência da dominação militar nas décadas de 1970 e 1980, a Venezuela não sofreu a desmobilização política e abandono de práticas social-democratas como ocorreu no mesmo período na maioria dos países latino-americanos, no mesmo período. Como conseqüência, o País estava, de diversas maneiras, despreparado para as orientações neoliberais promovidas pelos Estados Unidos no bojo do Consenso de Washington. Regimes autoritários, ao longo do continente, lograram reestruturar as principais dimensões da vida social e adaptá-las às novas demandas da economia global. Políticas de desregulamentação, liberalização, privatização, redução da atividade social do Estado e limitação de direitos sociais - que só puderam ser parcialmente implementadas nos países centrais - foram impostas com poucos constrangimentos na América Latina, depoi s de toda a resistência ter sido esmagada através da repressão".
Em seu livro "Breve História Contemporânea de Venezuela", o historiador Gillermo Morón afirma que "Abriu-se a história contemporânea da Venezuela em 18 de dezembro de 1935, quando o general Eleazar López Contreras assumiu o poder". E completa: "O povo colocou-lhe uma data de encerramento: 27 de fevereiro de 1989".
O ex-comandante guerrilheiro e ex-dirigente do Partido Comunista da Venezuela, Douglas Bravo vai mais longe:
"Foi a rebelião social mais profunda já acontecida na Venezuela; não foi convocada por nenhum partido, sindicato ou igreja. Foi a primeira manifestação verdadeiramente popular contra o neoliberalismo ocorrida em todo o mundo".
Vida que seguiu
A engrenagem política que sobrevive ao Caracazo perde grande parte de sua legitimidade. A violenta semana fora, a um só tempo, produto de uma crise prolongada e marca de movimentações profundas na estrutura social venezuelana.
O sistema estava ferido de morte, numa sociedade cuja intolerância e violência cotidiana foram se tornando mais e mais evidentes.
Anos depois, a população vê em outra liderança a possibilidade de acertar suas contas com o passado e tentar criar alternativas para o futuro. O dirigente era Hugo Chávez. Sua história, cheia de idas e vindas e pontos polêmicos, está sendo escrita à quente.
Nota do DL:
[1] Artigo escrito em 2009.
Gilberto Maringoni é Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), professor de Relações Internacionais da UFABC (Universidade do ABC/SP) e autor de dois livros sobre o país: 'A Venezuela que se inventa' (Editora Fundação Perseu Abramo, 2004) e de 'A revolução venezuelana' (Editora Unesp, 2009).