No Brasil há um dito popular: "futebol, política e religião não se discutem". Lá, como cá, salutarmente não deixamos de o fazer. Há assuntos, porém, que são verdadeiros tabus. Tratar deles é o equivalente a um pecado. E, como todo pecado, a sua punição é terrível, tão inimaginável como as pragas do Egito ou a destruição do Sodoma e Gomorra. Para algum desses nem mesmo o Inferno é punição suficiente.
Cá em Portugal, um destes assuntos-tabu são as alternativas para enfrentar a crise que não punam a população e mexam nos bolsos dos culpados, porém ricos e poderosos. Os meios de comunicação silenciam sobre estes caminhos não discutidos pelo bloco central do poder.
No entanto, ainda mais intocável, ou melhor, mais infalável, é a participação de Portugal na NATO. Em tempos de bajulações aos senhores do mundo, quando se viu os dirigentes portugueses venderem como mascates a soberania em troca das migalhas que caem da mesa de Merkel, Obama e Cia, discutir a razão de Portugal encontrar-se na NATO é uma máxima heresia.
Como não comungamos dos mesmos mandamentos, e não partilhamos do voto de silêncio, queremos em algumas linhas entender o porquê da participação portuguesa nessa entidade.
Um facto inegável é que Portugal é membro fundador da NATO (North Atlantic Treaty Organization), nos idos de 19492. Salazar "gigolo entretenu dos conflitos internacionais", nas palavras de Victor Cunha Rêgo3, viu na oportunidade de mais um conflito, a Guerra Fria, outra maneira de legitimar seu governo fascista em nível internacional. Era ele, o que os antigos chamariam de "pertubator pacis", se aproveitando das pertubações da paz.
Afora o caso daqueles que ainda podem achar que o Estado Novo era um governo legítimo, e os há, mesmo que não assumam, todos os actos feitos em nome de Portugal eram actos de Salazar e de seu regime, não dos portugueses usurpados que estavam de seus direitos políticos.
Como Groucho Marx, que dizia "eu não freqüento clubes que me aceitem", não parece uma boa ideia estar numa clube de nações que aceitavam a Portugal de Salazar como membro. Clube que faz a guerra, com o discurso de fazer a paz. Perfeito para Salazar, terrível para Portugal. Caía-lhe como uma luva, para um homem amante da guerra, contra seu povo e os povos a quem mantinha a força colonizados. Este, com uma mão empunhava a cruz, na sua fantasia de cruzado moderno, e na outra empunhava o punhal, como fascista que era.
Mas abril já abriu os caminhos para exorcizar muitos dos fantasmas salazaristas. No entanto, aos portugueses ainda resta espantar outros: entre eles a sua participação na NATO. Esta que não foi decidida por si, mas pelos velhos reumáticos do antigo regime. Participação que os jovens portugueses, vítimas inclusive das opções de guerra dessa liga militarista, negariam se consultados, e só a "mocidade portuguesa"4 assentiria.
A Constituição que fez lei a vontade geral portuguesa pela liberdade diz que "Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios [...] do respeito [...] dos direitos dos povos, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade."5
Há aqui uma contradição: como o povo português opta pela paz e seu governo participa da maior liga pela guerra que existe? Os membros da NATO respondem por 75% dos orçamentos militares do mundo e é capitaneada pelos EUA, que aprovou este ano o maior orçamento militar que a história já viu – que faria inveja aos Impérios Romano e Mongol, à Hitler e à Reagan – e leva a cabo duas guerras ilegítimas, injustificáveis e imperiais?
Mas a contradição entre a lei derivada do povo e a opção do Governo de manter a política salazarista é maior ainda quando se continua a ler esse artigo da CRP: "Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares [...]". Defende a criação de uma "ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos." E, continua, num sentido ainda mais claramente contrário às acções da NATO, que tem como fim a recolonização de países (mesmo que mantendo formalmente a independência dos países ocupados): "Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão".
Aqui está a contradição de um país em que a vox populi aponta para um lado, da paz, como mostra a manifestação de muitos milhares, mais de 30000, no último dia 20 de novembro; do outro lado, o governo português que se mantém nessa organização, que apesar dos discursos atual de organização para a paz, era claramente no período da Guerra Fria, quando seu secretário-geral dizia que o objectivo dela era "manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães embaixo". Esta contradição se mantém desde que Mário Soares, na Conferência da NATO em junho de 1974, no Canadá, declarou a manutenção portuguesa nessa liga militarista. E, hoje em dia, o Governo Sócrates suspende a livre-circulação de pessoas, só para garantir uma reunião dos chefes de estado dessa organização.
Um detalhe que desmente o carácter "defensivo" do surgimento da NATO, é que foi criada em 1949 e o Pacto de Varsóvia só em 1953! Há aqui um problema cronológico para os argumentos dessa organização: surge para se defender de algo que só é criado depois? E quem é que lança a primeira bomba atômica como sinal de ameaça? Os EUA, principal patrocinador dessa organização.
Os objectivos mudaram com o colapso da burocracia soviética e burocracias satélites, derrubadas pelas massas aquando da restauração capitalista efectuada por estas. Os horizontes se ampliam, e o imperialismo procura se aproveitar do momento para efectuar seus projectos recolonizadores com toda força. Para isso vão criando novos inimigos imaginários, que justifiquem suas acções, arrogando-se o estatuto de "polícia do mundo", mandato que não foi dado por nenhum povo do mundo. Seguem-se o bombardeamento da ex-Iugoslávia (a primeira vez que uma cidade européia, Belgrado, foi bombardeada desde a II Guerra), inclusive com a criação de um estado semi-colonial em Kosovo, contrariando as aspirações dos kosovares de se unir à Albânia. Na verdade, nem mesmo um estado é, mas uma área sob ocupação das tropas da NATO.
Mas, o auge dessa nova estratégia, apesar de não-declarada, será no pós-11 de setembro, aquando cria-se um discurso em torno ao perigo "terrorista internacional", do qual deriva a invasão do Afeganistão e depois do Iraque. Na última Cimeira, recentemente realizada em Lisboa, aprovou-se o "novo conceito" estratégico, aonde afirma-se a expansão das fronteiras de polícia do mundo, com a manutenção da hegemonia política estadounidense, com a repartição dos custos junto aos outros membros. Apesar das reticências européias em relação a este ponto, esta foi aprovada.
Por falar em custos, a segunda contradição que encontramos é essa: no momento em que o governo do PS de José Sócrates (com a ajuda da "oposição" do PSD) aprova no Congresso um Orçamento para 2011 que corta direitos dos trabalhadores, que ataca profundamente direitos sociais, gastou só com a Cimeira 5 milhões de euros! Reunião que não trará nenhuma vantagem aos portugueses. Pelo contrário: o primeiro-ministro português declarou que Portugal está disponível para reforçar o seu contingente militar no Afeganistão. Ou seja, organiza uma reunião com o dinheiro dos trabalhadores portugueses para dizer que mandará mais filhos desses mesmos trabalhadores para a morte! Só com os seis veículos blindados Cougar H, comprados de uma empresa Estados Unidos, e que apenas dois chegaram até agora, depois da Cimeira, foram dispendidos 1,2 milhões de euros. Dinheiro desperdiçado.
E, não é só isso: gasta dinheiro comprando "submarinos, helicópteros de combate, tanques, caças aéreos, unicamente para projecção de forças a longa distância". Até mesmo "envia [...] para a caldeira afegã companhias de 'Comando' quando a chefia americana de guerra nos tinha solicitado apenas "formação" de tropas locais. Fez mais: desenvolveu exercícios navais conjuntos com Marrocos para EUA ver, sem querer saber da sorte do Saara ou do direito internacional." 6
E, apesar de tudo isso, tendo em vista a pouca valia da posição de Portugal na "nova estratégia" voltada para mais ao Oriente, o Pentágono rebaixou a importância da Base das Lajes e da sede do comando de Oeiras. Uma mostra de que esses governos, apesar de toda sua subserviência, não ganham nem mesmo as migalhas da mesa dos poderosos.
Fica então outra pergunta: qual a utilidade de participar da agressão ao Afeganistão? O discurso colocado de que assim se protege a soberania portuguesa não possui sentido nenhum. Sem discutir, mesmo sendo um ponto fundamental, a questão do princípio da autodeterminação dos povos, a presença militar nesse remoto país, ao invés de aumentar a segurança dos portugueses, só atrai o perigo terrorista. Pessoas desesperadas, como estão os afegãos sob ocupação, acabam por vezes tendo saídas desesperadas, como atentados. Portugal não aumenta sua segurança participando dessa operação, só atrai a insegurança. Uma verdade é insofismável, como dizia Engels: "não pode ser livre um povo que oprime outros povos".
Só os EUA ganham com a guerra do Afeganistão: geopoliticamente, pois é fundamental para o controle da Eurásia; economicamente, pelo controle energético, pois é a rota de passagem de oleodutos e gasodutos do Cáspio para a Índia, Paquistão e Índia; e, para garantir o abastecimento das drogas internacionais, pois os talebãs estavam a destruir as plantações de papoula, base para a feitura da heroína e do ópio, e desde a entrada dos EUA essa produção disparou7.
Voltamos então a frase que serve de epígrafe a este artigo: "Ninguém pode servir a dois senhores ao mesmo tempo". Por mais que se tente, na política, numa sociedade de classes, não há espaço para um Janus8. Ou se está de um lado, da sociedade, da maioria de um povo, da nação; ou se está do lado de uma minoria, uma aristocracia endinheirada internacional. Já é chegada a hora de se saber a quem Portugal escutará: a voz do povo, consubstanciada em sua lei, ou a voz dos poderosos, que contrariam as decisões democráticas da nação. Nesta questão, como nas outras, a sorte está lançada.
Notas
(1) No Brasil, costuma-se usar a tradução: OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte.
(2) Além de Portugal, são fundadores: Bélgica, o Canadá, a Dinamarca, a França, a Islândia, a Itália, Luxemburgo, os Países Baixos, a Noruega, o Reino Unido e os Estados Unidos da América.
(3) Rêgo, V. C. (2004) Liberdade. Lisboa: Independente. p.50.
(4) Juventude salazarista.
(5) Artigo 7° da CRP.
(6) Fazenda, Luís. NATO, para que te quero. Disponível em: http://www.esquerda.net/dossier/nato-para-que-te-quero.
(7) Afeganistão: cresce produção de papoula com os EUA http://www.uniad.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2419:afeganistao-cresce-producao-de-papoula-com-os-eua&catid=29:dependencia-quimica-noticias&Itemid=94
(8) Janus é o deus romano, porteiro celestial, que abria o passado e o futuro, por isso era o deus que abria o novo ano (e por isso deu origem ao nome do mês de janeiro. Era também o deus da indecisão, pois possuía duas cabeças e elas sempre falavam coisas contrárias, com um duplo discurso.