Prévio a isso, no entanto, é inevitável dizer umas poucas palavras sobre a surpreendente inquina que reflete o tom e o estilo da nota escrita por Almeyra, tanto mais surpreendente quanto se trata de alguém com quem sempre mantive uma relação sumamente cordial e nada permitia pressagiar uma atitude como a que agora não tenho mais remédio que comentar. Tom e estilo, digamo-lo de uma vez, que recordam os que prevaleciam na União Soviética durante o apogeu do estalinismo, algo que meu crítico não se cansou de questionar ao longo de meio século.
Será talvez por essa pertinaz perseverança que lhe aconteceu o que a tantos outros: que a força de concentrarem sua atenção numa personagem histórica terminam amando-a (caso do historiador italiano Renzo de Felice com Mussolini) ou assimilando, inconscientemente, alguns dos traços definitórios da personalidade de seu objeto de estudo (caso de Almeyra com Stalin).
Porque de outro modo é incompreensível o tom admonitório e ofensivo que alumia toda sua nota, em onde se me acusa de recém agora me ter percatado das incurables e gravíssimas distorções do modelo soviético, coisa que quem tenha lido a minha obra ou assistido às minhas classes ou conferências sabe que venho fazendo desde faz décadas; ou a rastreira insinuação de que eu me teria abstido de criticar o rumo da economia cubana porque em tal caso se "teria reduzido drasticamente o número de convites a Havana".
Com essa frase não só me insulta como também ofende e falta o respeito aos colegas que me honraram com seus diversos convites para participar em numerosos eventos organizados em Cuba. Vítima de sua visceral (e seguramente involuntário) estalinismo Almeyra parece mais preocupado com denunciar ad hominem os meus "crimes teóricos" (não ter demonstrado as "aberrações" do socialismo cubano, não ter realizado um balanço da experiência soviética depois das impressões da profética análise de Trotsky na Revolução Traída, sintomas claríssimos de meu "escasso interesse pela teoria marxista") que por abordar a partir duma perspectiva marxista o estudo dos desafios que enfrenta o primeiro território livre da América na conjuntura atual.
Tal como aconteceu sob o estalinismo, o necessário debate entre os revolucionários é substituído pela crítica irada, a admonição, a denúncia implacável dirigida contra quem não comungar com sua errónea interpretação do processo revolucionário em Cuba.
Em sua nota Almeyra exibe um paternalismo que beira o ridículo ao dizer que "a construção do socialismo numa pequena ilha sem recursos nem população, que em seu momento enfrentou ainda os Estados Unidos, o governo soviético e o regime chinês, não é uma tarefa exclusiva dos cubanos. Todos os democratas e socialistas do mundo têm o dever de os ajudar com suas ideias, seus contributos, suas críticas em vez de os deixar sozinhos cometendo erros para depois constatar o falhanço e voltar a deixá-los sozinhos na hora de adotarem as decisões mais perigosas."
Há vários pontos que esclarecer nesta citação. Primeiro, em relação a isso de deixar sozinhos os cubanos, o único que posso dizer é que longe disso a Revolução Cubana está acompanhada por um formidável exército composto por homens e mulheres de todo mundo disposto a lutar até o fim em seu defesa e a ajudar a enfrentar as perigosas, difíceis (mas necessárias) decisões que deverá tomar para salvar à revolução. Não há a mais mínima possibilidade de que as pessoas que integramos essa força vamos deixar a Cuba à sua sorte. Quem a abandonou são os cultores de um assombroso infantilismo ultraesquerdista, cujas setas retóricas são música celestial para o imperialismo que pode juntar essas críticas com as que formulam Vargas Llosa e seus compinchas. A sua deplorável atitude não deixou Cuba sozinha, ou inerme, mas todo o contrário. Lá com eles.
Convém, em segundo lugar, sublinhar algo que contradiz flagrantemente a caracterização que faz Almeyra da Revolução Cubana como um pseudo-socialismo estragado por sua degeneração burocrática: no parágrafo acima citado reconhece-se que ao menos um regime tão defeituoso como esse teve a valentia de se enfrentar (mas "em seu momento", apressa-se a esclarecer meu severo crítico) com os Estados Unidos, o governo soviético e o regime chinês. Não é pouca coisa para "uma pequena ilha sem recursos nem população" ter tido a coragem para medir-se com aqueles gigantes.
Eu queria que alguns países maiores (por população ou território) tivessem a coragem para fazer o mesmo. Nessa anotação de seu escrito infelizmente Almeyra não diz quando foi esse luminoso e fugaz momento de confronto com o imperialismo norte-americano e quando teria Cuba deixado de se enfrentar com ele. Seria importante que em algum momento esclarecesse esta confusão. Mas ademais, que quer dizer isso de que Cuba é?uma pequena ilha sem recursos nem população?? Essa observação parece extraída de um manual gringo de turismo caribeño e não o produto da análise marxista.
Que eu saiba Cuba tem muitos recursos, de diferente tipo: além dos chamados "naturais" (minerais, petróleo, pesca, praias, certos produtos agrícolas) dispõe de valiosos recursos humanos: um plantel científico que em algumas áreas é de nível internacional; ou umas forças armadas dotadas de uma formidável capacidade dissuassiva que não só serviu para derrotar os invasores em Praia Girón, como também para manter afastados os imperialistas de suas praias durante mais de meio século.
Tem também uma população educada como nenhuma outra nas Américas e que acede a níveis de atendimento médico e educação só comparável à que oferecem os países desenvolvidos. Precisará a Revolução Cubana da ajuda de Almeyra para prosseguir livrando sua batalha contra o imperialismo norte-americano? Não parece.
Igual perplexidade gera a asseveração de meu crítico no sentido de que a Revolução "requer nossa ajuda material e teórica porque a bússola das autoridades cubanas não funciona nem funcionou muito bem." Que significa isto? A que se refere tão enigmática afirmação? Foi um erro, devido ao extravio da bússola revolucionária, a decisão de Fidel e suas camaradas de lutarem contra o imperialismo norte-americano, ou não aceitarem se converter num proxy da URSS no Caribe? Ou terá sido um erro o inigualável exemplo do internacionalismo cubano, que semeou médicos, educadores e treinadores esportivos em mais de cem países, ou que o leva a capacitar gratuitamente milhares de estudantes na Escola Latino-americana de Medicina?; É um erro de que apesar de meio século de bloqueios e agressões em Cuba não tenha -diferentemente da Argentina, Brasil ou México- um só menino descalço ou que durma na rua? Ou à excecional campanha, dirigida pelo Ministro da Educação Armando Hart, mediante a qual Cuba erradicou a praga do analfabetismo? Ou a sua colaboração com os movimentos de libertação nacional e antirracistas na África Negra, que fez possível o fim do apartheid em África do Sul e a derrota dos planos da Casa Branca na região? Ou será que foi um erro a cooperação brindada aos sandinistas, ou o apoio às políticas emancipatórias em curso na Venezuela, Bolívia e Equador? Bússola avariada por ter-se mantido firme em sua identidade socialista enquanto ruia a URSS e se evaporava o pseudo-socialismo da Europa do Leste, ou por ter expropriado todos os monopólios imperialistas e aguentar -a pé firme e sem titubear- a brutal agressão dos Estados Unidos e o ostracismo ao qual a condenaram, durante quase meio século, a grande maioria das nações de América Latina e as Caraíbas?
Resenhar a catadupa de agravos e mentiras que Almeyra descarrega contra a Revolução Cubana seria uma tarefa interminável, além de desagradável. Mais que proceder da boca de um intelectual trotskista parece provir de algumas das grutas anticastristas de Miami. Porque qualquer análise sobre as limitações ou desacertos econômicos do modelo cubano que não comece por examinar minuciosamente o impacto do bloqueio imperialista sobre Cuba é teoricamente equivocado e politicamente reacionário. Como entender que Almeyra passe por alto o fato de que medido em dólares de hoje o custo de meio século de bloqueio imperialista a Cuba ascienda a uma quantidade equivalente a dois Planos Marshall (com um se recuperou a Europa da Segunda Guerra Mundial).
Talvez para tão visceral crítico da Revolução Cubana isto seja um episódio insignificante ou uma nimiedade, mas para a teoria marxista certamente não. Desde a serena quietude de seu gabinete os ácidos críticos da revolução morrem por imaginar modelos econômico-políticos que só existem em suas quentes cabecinhas. Produto desses infantis sonhos -que Lênin criticou com tanta força- o imperialismo deixa de ser um agente histórico: volatiliza-se, converte-se num significante flutuante, num texto e já não mais numa máquina de oprimir, destruir e matar; é simplesmente uma abstração, não um sinistro protagonista da história. Produto desse cegueira os críticos da excecional epopeia cubana não conseguem calibrar a fenomenal influência prática das políticas do império e seus agentes.
E tal coisa não é produto da adesão a uma outra teoria, claramente alheia à tradição marxista, se não de um vício epistemológico que faz estragos em certas vertentes da esquerda: o "teoreticismo", isto é, a perversão da teoria que deixa de ser um instrumento para a análise e a transformação do mundo para ficar reduzida a uma altissonante retórica que é revolucionária só na estéril galáxia dos conceitos, a remota distância do processo histórico real.
Mais um exemplo: no seu escrito, Almeyra recrimina a Cuba ter tentado conseguir uma safra açucareira de 10 milhões de toneladas, mas nem lhe passa pela cabeça analisar quais foram os condicionantes econômicos que impulsionaram Fidel a tentar tão ambiciosa meta. Pensará que foi uma mera fanfarronice do chefe da revolução? Sem dúvidas que foi um grande desafio, mas as condições econômicas pelas quais Cuba atravessava depois de quinze anos de revolução requeria de medidas excepcionais.
Seguramente que o meu crítico deve pensar que naqueles momentos a economia de Cuba florescia e que a revolução avançava "consoante o que lhe assinalavam suas leituras "teóricas"- sem tropeços nem ameaça alguma, sem inimigos à vista, coisa que também deve ter pensado quando escreveu que os cubanos "se atrelaram à União Soviética achando que esta seria eterna." Como é possível tanta cegueira! É razoável supor que alguém sequer elementarmente informado e razoavelmente sobrio possa ignorar que quando os cubanos decidiram estabelecer uma relação comercial com a URSS e entrar para o CAME, em 1972, a Ilha não tinha com quem comerciar em todo mundo? Esqueceu-se-lhe que tinha sido expulsa da OEA e se achava integralmente bloqueada desde 1962, e que por mais que quisessem comerciar com os países da América Latina eles não queriam comerciar com Cuba, com a honrosa exceção do México? Também não podiam fazê-lo com os Estados Unidos, China e o extremo oriente eram longínquas referências geográficas; África lutava, como até hoje, por sua mera sobrevivência; e a tradicional genuflexão européia para seus amos norte-americanos impedia construir um fluxo comercial significativo entre a Europa e Cuba. Que alternativas tinha ante sim a revolução? Isolar-se completamente do mundo e converter-se na réplica caribenha da Albânia de Enver Hoxha ou dos tenebrosos khemeres Vermelhos de Pol Pot estavam levando a cabo uma carnificina sem precedentes no Camboja? Convém recordar o que dizia Lênin quando assinalava que o marxismo "é a análise concreta da situação concreta", o que se encontra a anos luz do escrito de Almeyra, onde a concreção é, em palavras do grande filósofo marxista checo Karen Kossik, mais aparente que real, uma simples"pseudo-concreção."
Como se o anterior não fosse pouco, em sua ofuscação, o meu crítico não leu com cuidado o título do documento sobre o qual dispara seus ardentes setas e que reza assim: 'Projeto de Tendências da política econômica e social'. Em lado nenhum diz que isso será o que finalmente vá aprovar o VIº Congresso do PCC! Diz "projeto", com todas as letras: contributo para uma discussão. Poderia ser melhorado? Claro que sim, mas ainda com suas limitações já serviu para acender uma discussão que se estenderá ao longo de Cuba. Há pontos controversos no projeto? Com certeza que há. A transição para um novo ordenamento econômico, não é talvez sumamente perigosa? Não há dúvida! Mas bem mais perigoso é o imobilismo, a imutabilidade, que condenariam a revolução a uma morte segura e pouco aprazível. Cuba encontra-se numa armadilha, da qual não há fácil saída. Mas se tem a ousadia de mudar e de reformar o seu socialismo, aprofundando-o, sairá bem livrada desse desafio. Se não o fizer, a derrota da revolução será só uma questão de tempo. Demoraram-se muito estas mudanças? Pode ser, mas há que recordar que as margens de manobra de Cuba não são os do México, Brasil ou Argentina.
Almeyra profetiza que as mudanças que se veem em Cuba "não vão na direção de mais justiça, mais igualdade, mais solidariedade, mais socialismo, mas na direção contrária." Quem lhe disse tal coisa, como o adivinha? Que papel joga em sua interpretação teórica o protagonismo e a participação populares que caracterizam, apesar das suas limitações, à sociedade cubana? Qual é o fundamento de seu fatal pessimismo?
Não cabe dúvida que as Tendências contêm algumas definições muito problemáticas e que suscitam não poucos interrogantes. Mas nenhum deles justifica o que propõe meu crítico em outro de seus artigos: que a reforma socialista da economia deveria significar, entre outras coisas, a diminuição do orçamento militar de Cuba. Poucas vezes li tamanho disparate ao analisar um processo revolucionário.
Se o imperialismo norte-americano absteve-se de invadir Cuba e destruir a revolução foi porque numerosos relatórios da CIA e o Pentágono advertiam à Casa Branca que a resistência das Forças Armadas Revolucionárias imporia um severo custo em vidas humanas aos invasores, algo que após o Vietname a opinião pública norte-americana não está disposta a tolerar. Debilitar as FAR é exatamente o que querem os imperialistas. E isso é o que aconselha Almeyra em sua análise sobre a atual encruzilahda em que se encontra Cuba.
Para concluir: a atitude de meu crítico contrasta atraentemente com a que adotou seu suposto mentor, Leon Trotksy, que a estas horas deverá estar torcendo-se em seu túmulo ao saber das coisas que costumam se dizer -e se fazer!- em seu nome. Consciente do significado e a letalidade da opressão imperialista que se abatia sobre o México no fim da década de trinta do século passado Trotsky escreveu que "o general Cárdenas é um desses homens de estado, em seu país, que realizaram tarefas comparáveis às de Washington, Jefferson, Abraham Lincoln e o general Grant." E mais adiante dizia num luminoso texto, 'México e o imperialismo britânico', que "sem sucumbir às ilusões e sem temer as calúnias, os operários avançados apoiarão completamente o povo mexicano em sua luta contra os imperialistas. A expropriação do petróleo não é nem socialista nem comunista. É uma medida de defesa nacional altamente progressista.
Com certeza, Marx não considerou que Abraham Lincoln fosse um comunista; isto, no entanto, não impediu Marx de ter a mais profunda simpatia pela luta que Lincoln dirigiu. A Primeira Internacional enviou ao presidente da Guerra Civil uma mensagem de parabéns, e Lincoln, em sua resposta, agradeceu imensamente este apoio moral. Concluia seu arrazoado dizendo que "a causa do México, como a causa de Espanha, como a causa da China, é a causa da classe operária internacional. A luta pelo petróleo mexicano é só uma das escaramuças de vanguarda das futuras batalhas entre os opressores e os oprimidos." Nestas notas, Trotsky combina magistralmente a análise da conjuntura em seus dois planos: o nacional e o internacional, e extrai as conclusões políticas corretas para intervir na conjuntura.
Conviria que Almeyra lesse essas páginas para compreender o extraordinário significado histórico da Revolução Cubana e seus desafios atuais.
Fonte: Kaos en la Red.
Tradução: Diário Liberdade.