Contrastante com esta euforia em torno de mais uma vitória da democracia contra o "comunismo" empalhado que o regime cubano há muito personifica foi o silêncio incomodado da generalidade da esquerda que se revê no regime cubano ou daquela que, não se revendo nele, se empenha em denunciar e combater a agressão e o cerco de que Cuba é vítima e a prestar-lhe a sua solidariedade anti-imperialista.
A libertação de 52 presos pelo regime cubano teve enorme cobertura mediática e foi um momento alto da diabolização da "ditadura" cubana que serviu para lembrar como é maléfico o marxismo e o comunismo e para enaltecer a livre concorrência, a democracia parlamentar e a oposição anticastristas ao serviço dos interesses norte-americanos, europeus e do Vaticano.
LIBERDADE ECONÓMICA ACIMA DE TUDO
Aquilo que realmente preocupa os meios ocidentais não são as limitações das liberdades cívicas e políticas nem as violações dos direitos humanos em Cuba (como na Coreia ou na China), mas as limitações à liberdade dos negócios. O que os move (agora como no passado) é o facto de, vinte anos após o colapso do "socialismo real", ainda existirem territórios e países fora da sua influência e fechados à livre iniciativa capitalista, à penetração e liberdade do grande capital, dos negócios privados e da especulação financeira. Do ponto de vista do sistema capitalista dominante, trata-se portanto de corrigir uma aberração, de libertar o capitalismo de Estado em vigor nesses países das amarras que o tolhem e o impedem de seguir o seu curso normal e natural, integrando-se no sistema capitalista mundial.
Que as coisas são assim, que as perorações em torno das liberdades e dos direitos humanos são mera retórica e propaganda é coisa facilmente demonstrada pelos factos. Em matéria de direitos humanos, tanto os EUA como a União Europeia não têm qualquer autoridade para dar lições seja a quem for. Tal como em Cuba, e em número superior, apodrecem nas prisões dos EUA, Espanha, França, Alemanha, Bélgica, Reino Unido, Irlanda, Holanda, Polónia, República Checa, Itália, Grécia, Suíça, milhares de presos políticos que não são reconhecidos como tal, apelidados de terroristas ou nem isso, sujeitos a tortura, incomunicáveis e, nalguns casos, condenados à morte, prisão perpétua, a absurdas e desumanas penas ou ao seu prolongamento arbitrário. Todos estes países abrigam prisões e centros de tortura secretos ou dão-lhes cobertura política, diplomática e logística, formam torturadores e têm unidades especializadas em execuções extrajudiciais.
Por outro lado, não sendo o regime castrista nem revolucionário, nem uma emanação da vontade popular, nem justo, nem livre, a verdade é que é um paraíso de liberdade e igualdade social quando comparado com as democracias da América Central e do Sul, em particular com aquelas em vigor nos países "libertados da ameaça marxista" pelos sicários do imperialismo nos anos 80 e 90. Em Cuba os jornalistas, os sindicalistas e os opositores políticos não são torturados e assassinados como é vulgar no México, Colômbia, El Salvador, Brasil, Nicarágua, Honduras, Chile, Argentina, Bolívia, etc., nem existem esquadrões da morte. A pobreza e a desigualdade social, o crime e os tráficos estão a anos-luz daquilo que se conhece no resto do mundo. O direito à educação e à saúde (do mais avançado que se pode encontrar) estão garantidos, tal como (por enquanto) o emprego. Cuba não tem bairros de lata nem conhece os flagelos da droga, dos meninos de rua, nem bandos de indigentes a sobreviver do que encontram nas lixeiras. A população não é obrigada a beber água contaminada como na maioria da América Latina e do Terceiro Mundo.
Pintados estes presos políticos cubanos como pacíficos campeões dos direitos humanos e da luta pelas liberdades, vítimas de cabalas e processos revanchistas e kafkianos, os factos conhecidos demonstram que não é bem assim. Os presos agora libertados foram detidos em 2002 e julgados em 2003 por estarem implicados no Projecto Varela, o qual tinha por objectivo derrubar o regime por todos os meios - sabotagens, atentados e criar condições para se desencadearem acções armadas realizadas por grupos da reacção cubana sediada em Miami. O projecto, inspirado por Bush, destinava-se também a "encontrar as provas" e a preparar as condições para uma invasão das forças armadas dos EUA a pretexto de que o regime cubano estava na posse de armas de destruição maciça, nomeadamente biológicas (um processo semelhante ao que levou à invasão do Iraque). Dispunha de um financiamento de 40 milhões de dólares e contava com a colaboração activa da máfia cubana.
A TRANSIÇÃO
Mas constitui um sinal claro de fim de regime esta luta sem precedentes dos presos políticos anticastristas, tanto pelo recurso à greve da fome e à determinação em a levarem até às últimas consequências, com pelo envolvimento directo da Igreja Católica, que não só protestou, como organizou acções de rua e mediou as negociações entre os presos e o regime, a par da evidente dificuldade e falta de tacto e sensibilidade das autoridades cubanas para lidar com o problema.
O pronunciamento, em meados de Setembro, de Fidel Castro declarando que "o modelo cubano já não funciona, nem para nós", mais que sancionar as tímidas reformas empreendidas pelo seu irmão no sentido de liberalizar a economia, abrindo-a à pequena iniciativa privada, significa que se avizinham mudanças profundas na economia, abrindo-a cada vez mais à iniciativa e propriedade privada, e que o regime não vai abrir mão da transição do sistema de capitalismo de Estado em vigor para um outro - misto, segundo o modelo chinês, ou de capitalismo pleno, tal como existe no resto do mundo.
Dado igualmente significativo desta evolução foi o anúncio, dias depois, de que o Estado iria despedir meio milhão de funcionários no próximo ano (12% do total), nos Ministérios do Açúcar, Saúde, Turismo e Agricultura, medida sintomaticamente aplaudida e justificada pela Central de Trabalhadores Cubanos, que acha que o país "não pode nem deve" manter quadros inflacionados e tem de aumentar a produtividade do trabalho, "reduzir os avultados gastos sociais e eliminar gratuitidades indevidas, subsídios excessivos, o estudo como fonte de emprego e a reforma antecipada". Os trabalhadores despedidos serão indemnizados com um mês de salário por cada dez anos de trabalho (até agora recebiam 60% do salário enquanto aguardavam novo emprego), dinheiro esse que o governo quer ver empregue pelos despedidos na criação do seu próprio negócio, reciclando-os em "novas formas de relação laboral-estatal", um eufemismo para encobrir a nova política de incentivo ao pequeno capitalismo privado. Vão ser 500 mil desempregados num país sem recursos, pessoas lançadas no desemprego porque o Estado já não as consegue sustentar. De que vão viver e como vão reagir agora, dado que vão conhecer tempos penosos? E no futuro aqueles que, tendo visto os seus negócios vingar, comecem a achar que não chega, que é preciso abrir e liberalizar mais e mais a economia e acabar com a tutela e os monopólios estatais?
Depois da dolarização da economia entre 1993 e 2004, que constituiu o primeiro grande ataque ao sistema salarial cubano, até aí bastante igualitário – que, com as receitas do turismo, foi capaz de abrandar a dramática degradação das condições de vida e da economia, mas não sustê-las – o fim do pleno emprego e a abertura controlada da economia ao capitalismo privado constitui o segundo grande momento de viragem do regime.
Pela primeira vez depois da resolução, Cuba vai conhecer o desemprego em massa e criar uma nova classe pequeno-burguesa de capitalistas privados, podendo o regime estar a iniciar algo que não sabe como vai acabar. Estes dois acontecimentos também parecem indicar que terá chegado ao fim a discussão sobre a transição cubana e que terão vencido os que advogam o modelo chinês de transição para o capitalismo pleno, sob controlo do Estado e do Partido Comunista. Desta forma pensam prevenir-se contra o que aconteceu em muitos países do Bloco de Leste, onde a burguesia ligada ao aparelho partidário e de Estado foi arredada pelas facções burguesas emergentes. Ou seja, em vez de teimosamente se aferrarem ao modelo "estalinista" de poder e de nele se acantonar até serem corridos por uma qualquer "revolução" à romena ou de veludo, realisticamente tomam em mão a realização das reformas necessárias a uma transição para o capitalismo pleno gradual e tão pacífica quanto se conseguir. O que certamente vai obrigar, como na China, a uma revitalização e renovação da classe dirigente, em que a parte da burguesia ligada ao aparelho de Estado e ao partido terá cada vez mais de partilhar o poder com as restantes camadas e sectores da burguesia cubana.