Ao mesmo tempo que o Presidente Correa e todos os governos da América Latina, com significativos sectores do público equatoriano, descreveram as acções violentas como um golpe, o principal órgão da Wall Street - The Wall Street Journal - descrevia-o como um «protesto policial». Porta-vozes da Goldman Sachs e do Council of Foreign Relations fizeram referência à conquista de poder policial e militar contra um governo democraticamente eleito, como uma auto-induzida «crise política» do Presidente. À medida que o golpe se desenvolvia, o movimento «indígena» CONAIE apresentava um manifesto condenando o governo, enquanto o partido «indígena» Pachakutik apoiava a destituição do Presidente, defendendo o golpe policial como um «justo acto de servidores públicos».
Em resumo, os apoiantes imperiais do golpe, os sectores da elite equatoriana e os movimentos indígenas, minimizaram a violenta insurreição policial como golpe, para assim justificarem o seu apoio ao mesmo como um outro «protesto económico legítimo». Por outras palavras, a vítima do golpe elitista era convertida em repressor da vontade dos povos. A questão factual, se houve ou não um golpe, é central na decisão de o governo ter justificação em reprimir a sublevação policial e se, de facto, o sistema democrático estava em perigo.
Os Factos Relativos ao Golpe
A polícia não «protestou» simplesmente contra as políticas económicas, ocupou a Assembleia Nacional e tentou ocupar edifícios públicos e empresas de comunicação social. A força aérea – ou, pelo menos, aqueles sectores que colaboravam com a polícia – o ocuparam a aeroporto em Quito, acordaram acções para tomarem e bloquearem estratégicas redes de transporte. O Presidente Correa foi assaltado e capturado e conservado como refém sob guarda policial de muitos polícias fortemente armados, que resistiram violentamente às Forças Especiais que, eventualmente, libertaram o Presidente o que resultou em muitos feridos e dez mortos. Tornou-se claro que os chefes da insurreição policial tinham em mente mais do que um simples «protesto» pelo cancelamento de uns bónus – o que procuravam era derrubar o Presidente e estavam dispostos a utilizar armas para o conseguir. Os líderes do golpe utilizaram as exigências económicas iniciais dos empregados do sector público como um trampolim para derrubar o regime.
O golpe fracassou, em parte, devido ao vigoroso e dramático apelo ao povo para que ocupasse as ruas em defesa da democracia – um apelo que ressoou aos ouvidos de milhares de apoiantes e negou apoio público nas ruas aos cabecilhas do golpe.
No terreno, todos os apontam para uma tentativa violenta por parte da polícia e sectores militares para tomar o poder e depor o Presidente – sob qualquer ângulo, um golpe. E, portanto, foi assim que foi imediatamente entendido por todos os governos latino-americanos, da direita e da esquerda, e alguns deles até fecharam imediatamente as suas fronteiras e ameaçaram um corte de relações se os líderes do golpe tivessem êxito. A única excepção foi Washington – cuja primeira resposta foi não se juntar à condenação mas esperar para ver o que iria acontecer, ou como anunciou o porta-voz presidencial Philip Crowley, «estamos a analisar os acontecimentos», referindo-se à sublevação como um «protesto» de desafio ao governo. Quando Washington se apercebeu tinha a oposição activa do povo equatoriano, de todos os governos latino-americanos, do grosso das forças armadas e estava condenado ao fracasso, a Secretária de Estado Clinton telefonou a Correa anunciando-lhe a «ajuda» dos Estados Unidos ao seu governo, referindo-se ao golpe como uma mera «interrupção da ordem democrática».
Na corrida para a restauração da democracia, os sindicatos foram, na sua grande maioria, observadores passivos, não discutiram greves gerais ou mesmo mobilizações activas. A resposta de oficiais militares superiores no exército foi, na sua maioria, contrária ao golpe, excepto talvez na força aérea que tomaram o aeroporto principal em Quito, antes de o entregarem a unidades anti-droga das forças policiais. A polícia anti-narcóticos estava na primeira linha do golpe e não é de surpreender que, nos últimos cinco anos, estivesse sob intenso treino e doutrinação americano.
Explicação para as várias Respostas sobre o Golpe
As respostas e interpretações sobre o golpe variaram de acordo com os diferentes conjuntos de interesses objectivos e percepções subjectivas. Os regimes latino-americanos rejeitaram o golpe, receando um efeito multiplicador golpista na região, onde outros bem-sucedidos golpes (o do ano passado nas Honduras) encorajariam os militares e a polícia a actuarem nos seus países. As recordações do passado recente, onde os militares desmantelaram todas as instituições representativas e prenderam, torturaram, mataram e exilaram chefes políticos, foi um factor determinante para dar forma à rejeição retumbante. Em segundo lugar, a ordem política existente beneficia a classe capitalista em quase todos os países da América Latina e providencia as bases da estabilidade política e da prosperidade da elite. Nenhum movimento de massas poderoso ameaça a hegemonia sócio-económica capitalista, condição para que a elite económica apoie um golpe.
Os apoiantes de Correa foram para as ruas, embora não na quantidade das acções prévias para derrubar o ex-Presidente Lucio Gutierrez. Eram, principalmente, membros leais do partido. Outros, defendiam as suas medidas «anti-imperialistas» (expulsão da base americana de Manta) ou a defesa das instituições democráticas, mesmo depois de serem críticos das suas recentes políticas.
A vacilação dos Estados Unidos, passando duma recusa inicial de condenação para a denúncia posterior do golpe fracassado, foi baseada nos laços de longa data aos militares, especialmente à polícia. Entre 2006-2011, a ajuda dos Estados Unidos aos militares e à polícia terá totalizado 94 milhões de dólares, dos quais 89 milhões são canalizados para a «guerra às drogas». Entre 2006-2008, os militares equatorianos e os estagiários da polícia chegavam a 931, onde 526 dos quais eram estavam em «programas contra-drogas». Foi precisamente o sector anti-droga da polícia que desempenhou um papel importante na ocupação do aeroporto em Quito durante o golpe abortado. Os Estados Unidos tinham certamente muitos motivos para o golpe. Correa chegou ao poder expulsando o cliente pró Estados Unidos, Lucio Gutierrez, e dizimando os partidos da oligarquia que tinham sido responsáveis pela dolarização da economia e por adoptarem a doutrina do mercado livre de Washington. Correa pôs em questão a dívida externa, declinando pagar dívidas contraídas em circunstâncias fraudulentas. Acima de tudo, Correa era um aliado do Presidente venezuelano Hugo Chávez, um membro da ALBA e um forte oponente de Colômbia, o principal aliado de Washington na região. A política do Equador enfraquece a estratégia de Washington de «cercar a Venezuela» com regimes hostis. Tendo já apoiado o golpe vitorioso contra o Presidente Zelaya das Honduras, um aliado de Chávez, Washington tinha tudo a ganhar com um golpe militar que expulsasse outro membro da ALBA. Washington persegue uma «estratégia tripla»: em 1ºlugar, de diplomacia, oferecendo melhoria de relações; em 2º lugar, pela subversão, construindo capacidade subversiva através do financiamento dos militares e da polícia; e em 3º lugar, financiando, através da AID, NED, World Bank e ONGs, sectores do movimento indígena, especialmente Pachacutik, e grupos dissidentes ligados a Lucio Gutierrez.
A liderança do movimento indígena variou nas suas respostas ao golpe. A mais extrema posição adoptada, pelo quase moribundo partido eleitoral Pachacutik, (receptor de ajuda dos Estados Unidos) apoiou realmente o golpe militar e apelou às massas para a formação de uma «frente unida», um apelo que caiu que não encontrou eco. O grosso do movimento indígena (CONAIE) adoptou uma posição complexa, negando que tenha existido um golpe, rejeitando, contudo, a violência policial e avançando com uma série de exigências e críticas às políticas de Correa e aos métodos do governo. Não foi dado qualquer apoio nem houve uma rejeição do golpe. Por outras palavras, em contraste com o seu passado militante, a CONAIE era, virtualmente, um actor marginal.
A passividade da CONAIE e da maioria dos sindicatos tem as suas raízes em profundas discordâncias com o regime de Correa.
A Vulnerabilidade Auto-Induzida de Correa: O seu Desvio para a Direita
Durante o emergente movimento de cidadãos ocorrido há cinco anos, Rafael Correa desempenhou um importante papel na deposição do regime autoritário, corrupto e pró imperialista de Lucio Gutierrez. Uma vez eleito Presidente, pôs em prática algumas das suas principais promessas eleitorais: desalojou os Estados Unidos da sua base militar de Manta; rejeitou os pagamentos da dívida externa baseados em contas ilícitas; aumentou os ordenados, o salário mínimo, concedeu empréstimos com um juro baixo e crédito a pequenas empresas. Também prometeu consultar e tomar conhecimento sobre os movimentos urbanos sociais e indígenas, na perspectiva da eleição duma Assembleia Constituinte para criar uma nova Constituição. Em 2007, a lista apresentada por Correa no seu novo partido Alianza País (a aliança do país) ganhou uma maioria de dois terços na legislatura. Contudo, confrontado com receitas em declínio devido à recessão mundial, Correa fez uma impetuosa guinada à direita. Assinou contratos lucrativos com multi-nacionais mineiras, concedendo-lhes direitos de exploração em terras reclamadas pelas comunidades indígenas sem as consultar, apesar de uma história de contaminação catastrófica em terras, águas e habitat indígenas. Quando as comunidades locais agiram para bloquear os acordos, Correa mandou-lhes a tropa que reprimiu duramente os protestos. Em subsequente esforços de negociações, Correa apenas ouviu a sua própria voz e despediu os líderes indígenas chamando-os de «ramalhete de bandidos» e «elementos atrasados», que bloqueavam a «modernização» do país!
A seguir, Correa iniciou a ofensiva contra os funcionários públicos, fazendo leis para a redução de salários, bónus e promoções, repudiando contratos baseados em acordos entre sindicatos e legisladores. Do mesmo modo, Correa impôs novas leis na administração universitária, alienando professorado, administração e alunos. Igualmente prejudicial para a popularidade de Correa entre sectores organizados de assalariados e de classe média foi o seu estilo autoritário de impor a sua agenda, a linguagem pejorativa que utilizava para classificar os interlocutores e a insistência de que as negociações eram apenas um meio para desacreditar as suas contra-medidas.
Correa, contrariamente à sua pretensão de ser um galvanizador do socialismo para o século XXI é, em vez disso, o organizador de uma estratégia altamente pessoal para o capitalismo do século XXI, um capitalismo baseado na dolarização da economia, investimentos estrangeiros em larga escala em serviços mineiros, petrolíferos e financeiros e austeridade social.
A «guinada à direita» de Correa, contudo, também dependeu do apoio político e financeiro da Venezuela e dos seus aliados cubanos e bolivianos. Como resultado, Correa caiu no meio de duas situações: perdeu apoio da esquerda devido às políticas económicas estrangeiras «pro-extrativas» e programas nacionais austeros e não conseguiu apoio dos Estados Unidos devido às suas ligações a Chávez e a Cuba.
Como resultado, Correa alienou os sindicatos e os movimentos indígenas e sociais pois só conseguia garantir uma quantidade muito limitada de «poder popular» ao encerrar a economia para impedir o golpe. Igualmente importante, os Estados Unidos e os seus colaboradores viram no seu apoio organizado em declínio e no crescimento de protesto social, uma oportunidade para testar as águas com vista a um possível golpe, através dos seus mais dependentes colaboradores na polícia e, em menor escala, na força aérea. A amotinação na polícia foi um teste, encorajado a continuar, sem qualquer notório compromisso, dependente do seu sucesso ou fracasso. Se o golpe da polícia assegurasse suficiente apoio militar, Washington e os seus oligarcas civis políticos podiam intervir, pedir um «resultado negociado», que ou tirava o poder a Correa ou o «transformava» num «pragmático» cliente. Por outras palavras, um golpe «vitorioso» eliminaria outro aliado de Chávez, e um golpe fracassado iria pôr Correa em destaque para o futuro.
Reflexões Finais à laia de Conclusão
Ao tornar-se explicito, o golpe da polícia transformou-se numa farsa: os mandantes do golpe falharam os seus cálculos quanto ao apoio que tinham no seio das forças armadas, assim como entre os indígenas desavindos e os sindicatos. Ficaram sós, sem glória ou sucesso. Sem líderes nacionais, ou mesmo sem uma estratégia coerente, foram batidos em poucas horas. Fizeram um mau juízo da vontade dos Estados Unidos se comprometer, uma vez que se tornou claro que os mandantes do golpe careciam de qualquer ressonância entre a elite militar e eram completamente incompetentes. O que podia ter começado como um golpe acabou como uma ópera bufa com um breve tiroteio com soldados num hospital da polícia.
Por outro lado, o facto de Correa no fim só poder contar com as suas forças especiais de elite para o libertar de refém da polícia, revela a tragédia de um líder popular. Alguém que começara com imenso apoio popular, prometendo cumprir finalmente a reivindicação dos camponeses de uma reforma agrária, a reivindicação dos povos indígenas de soberania para negociar sobre bens minerais e de remunerações justas por serviços urbanos e acabou a recolher-se no Palácio Presidencial protegido por veículos militares.
O golpe fracassado do Equador levanta uma importante questão política. A quase cedência de Correa significa o fim da experiência de “novos regimes de centro-esquerda” que tentam «equilibrar» crescimento vigoroso de exportações com regalias sociais moderadas? Todo o sucesso dos regimes de centro-esquerda foi baseado nas suas aptidões para subsidiar e promover capital nacional e estrangeiro agrícola e mineral, ao mesmo tempo que aumentava o emprego, os salários e os subsídios de subsistência (programas anti-pobreza).
Esta “fórmula política” tem sido subscrita pelo crescimento da reivindicação da Ásia e de outros mercados mundiais e por preços historicamente altos de bens. Quando rebentou a crise de 2008, Equador era o elo mais fraco da América Latina, por estar amarrado ao dólar e ser incapaz de simular crescimento ou proteger a economia. Sob as condições de crise, Correa recorreu à repressão dos movimentos sociais e sindicatos e despendeu grandes esforços para garantir apoios das multinacionais petro-mineiras. Além disso, a polícia e os militares do Equador eram muito mais vulneráveis à infiltração das agências dos Estados Unidos, devido aos financiamentos em larga escala e a programas de treino, do que Bolívia e Venezuela que tinham expulso essas agências de subversão. Diferentemente da Argentina e do Brasil, Correa não tinha a capacidade para «conciliar» os diversos sectores dos movimentos sociais através de negociações e concessões. Claro está, que a penetração de financiamentos imperiais das ONGs nas comunidades indígenas promovendo o «separatismo» e políticas identitárias não tornaram fáceis a conciliação.
Contudo, apesar das particularidades do Equador, o golpe fracassado sublinha a importância relativa da resolução de problemas sócio-económicos básicos, se os projectos macro-económicos de centro-esquerda tiverem sucesso. Aparte a Venezuela, nenhum dos regimes de centro-esquerda está a desenvolver reformas estruturais (reforma agrária), nacionalizações de sectores estratégicos, redistribuição de rendimentos. Mesmo o regime de Chávez na Venezuela, tem perdido muito apoio popular devido a negligência nos serviços públicos (segurança pública, recolha de lixo, distribuição de água, energia eléctrica e distribuição de alimentos) causados pela corrupção e pela incompetência. O centro-esquerda jamais poderá depender do líderes «carismáticos» para compensar a falta de mudanças estruturais. Os regimes devem suster a melhoria dos ordenados e salários e promover serviços básicos num ambiente de «diálogo social». A ausência de reformas sociais contínuas, ao mesmo tempo que as elites agro-mineiras prosperam, abre a porta ao regresso da direita e provoca divisões nas coligações sociais apoiantes dos regimes de centro-esquerda. Mais importante, a implosão do centro-esquerda dá a oportunidade a Washington para subverter e derrubar os regimes, reverter as relativamente independentes políticas externas e reafirmar a sua hegemonia.
As bases institucionais do centro-esquerda são frágeis em toda a parte, especialmente na polícia e nas forças armadas, porque a classe dos oficiais continua envolvida em programas governamentais com militares dos Estados Unidos, tal como a narco-polícia e as agências de serviços secretos. Os regimes de centro-esquerda - excepto a Venezuela - têm continuado a participar em todos os programas militares conjuntos. O centro-esquerda não transformou o Estado. Igualmente importante, promoveu as bases económicas da via pró Estados Unidos, da sua estratégia agro-mineral de exportação. Ignorou o facto, da estabilidade política ser temporária e baseada no equilíbrio de poder social resultante de rebeliões populares no período de 2000-2005. O centro-esquerda ignora a realidade de que quando a classe capitalista prospera, em resultado das estratégias de centro-esquerda de exportação de agro-minerais, também a direita política prospera. E à medida que a riqueza e o poder político das elites exportadoras aumenta o centro-direita volta-se para a direita, como tem sido o caso de Correa, haverá maior conflito social e um novo ciclo de convulsões políticas, se não for por via de eleições poderá ser à bala - através de golpes ou de insurreições populares.
O bem-sucedido golpe nas Honduras (2009) e o recente golpe fracassado no Equador são sintomáticos das profundas crises das políticas «pós neo-liberais». A ausência de uma alternativa socialista, a fragmentação dos movimentos sociais, a adesão a «políticas identitárias», têm enfraquecido severamente uma alternativa efectiva organizada quando e se os regimes de centro-esquerda entram em crise. De momento, a maioria dos «intelectuais críticos» agarram-se ao centro-esquerda, na esperança de uma «viragem à esquerda», de uma rectificação política, em vez de tomarem o caminho difícil, mas necessário, da construção de uma classe independente baseada no movimento socialista.
James Petras, Professor da Universidade de Nova Iorque, é amigo e colaborador de odiario.info
Este texto foi enviado por Jamnes Petras a odiario.info
Tradução de João Manuel Pinheiro