Sem dúvida, muitos fizeram-no deslumbrados pela tecnologia de resgate utilizada nesta "missão Apolo" da mineração, mas a imensa maioria compartilhou a angústia dos familiares desses trabalhadores e acompanhou sua luta com emoção e solidariedade. No entanto, nem no Chile nem em nenhum país teve uma expressão concreta de diferenciação de classe entre os que devem ir padecer e morrer num buraco ou trabalham arriscando vida e saúde para que outros gozem sem trabalhar, e os responsáveis diretos e indirectos pelos acidentes de trabalho. Que eu saiba -oxalá não seja assim- não se registraram paralisações simbólicas, de protesto ou solidários nem declarações sindicais ou dos partidos que em escala internacional e no Chile mesmo dizem representar os trabalhadores. O povo chileno e os mineiros mesmos enquadraram a resistência no fundo da mina e os esforços para resgatá-los só num quadro nacionalista e esportivo e festejaram a libertação dos 33 como uma vitória nacional, como expressava o coro "Chi, chi, chi, le, le, le" que acompanha as seleções nacionais em todos os desportos.
Só a fortaleza de ânimo dos trabalhadores chilenos, que estão curtidos pela exploração, a opressão e os contínuos desastres naturais, permitiu superar sem desânimo o terrível terramoto seguido por um tsunami, recorrendo à solidariedade e a fraternidade dos pobres. Por isso quase não se produziram saques, apesar de que grande quantidade de gente tinha perdido todo e carecia de tudo. E só a tradição de seus pais e irmãos, a firmeza, a tenacidade, a vontade de fazer frente a todo para recuperar sua liberdade permitiram aos 33 mineiros sobreviverem durante 15 dias na escuridão, quase sem comer, bebendo a água que se filtrava pelas paredes, e se organizar à espera de que os localizassem e socorressem. Mas, tanto no caso do terremoto como no da mina San José, os verdadeiros heróis não se viram como tais e atribuíram a superação do desastre vivido a forças alheias a eles, inclusive aos mesmos responsáveis políticos pelos acidentes de trabalho contínuos que castigam a pequena e a média mineração.
A mina San José tinha sido fechada e reaberta duas vezes, pela insegurança no trabalho, e a empresa carregava já com a responsabilidade por mortes e mutilações, pois o aumento do preço do ouro e também do cobre, e a despreocupação com os mineiros (entre os 33, um seguia trabalhando aos 63 anos, apesar de que sofre de alta pressão e de silicose), a levavam a aumentar a exploração da jazida sem investir em medidas de proteção (consolidação, manutenção, construção de saídas de emergência). O derrube, portanto, não foi uma fatalidade, e sim causado pelo ânsia de lucro, a avidez, o desprezo classista pelos trabalhadores que ostentan todos os dias os patrões mineiros e pela incapacidade, incúria e corrupção dos governos, que estão preocupados com as finanças dos capitalistas e não com as vidas de quem os enriquece. Os terremotos e os tsunamis podem ser desastres naturais, mas o despreparo para enfrentá-los é um delito político. E as mortes por acidentes de trabalho ou por derrubes, desabamentos e inundações são verdadeiros crimes cujos responsáveis são os que destinam os fundos públicos a sustentar os lucros e não a responder às necessidades. Porque, se existe a tecnologia para os resgates, poderia ter-se utilizado em Massa de Conchos e poderia também ter a tecnologia para impedir os derrubes se se respeitassem mais as vidas humanas que a margem de lucros das empresas.
Por isso é urgente e necessário destruir a densa cortina de desinformação alienante para pôr as coisas no terreno da realidade, já que, por exemplo, ainda que o pai comunista e o padrastro socialista de Luis Urzúa, o chefe de turno que organizou todo e o último em sair, foram assassinados por Pinochet, a quem apoiou Piñera, o mineiro pediu que o caso dos 33 não se repita nada menos que ao presidente-grande empresário que, além do mais, se reforçou politicamente ao aparecer como o "salvador" das vítimas do sistema que ele defende.
O aumento brutal dos "acidentes" nas minas chinesas e russas, onde os derrubes matam dezenas de operários, ou os naufrágios na Índia, Filipinas, Indonésia; as catástrofes ferroviárias, inundações e desabamentos causados pela desflorestação ou as mortes no trabalho em todo mundo, são só a expressão da volta à exploração própria do século XIX por um capitalismo predador de todos os recursos, inclusive a mão de obra.
Piñera apresenta-se como sócio de Deus e pintou este como o Jeová que torturava Job dizendo que "sempre lança sobre a Chile cargas que o país pode suportar", o convertendo numa espécie de sádico com traços de clemência. Os mineiros, por outra parte, vítimas neste mundo, também depositaram sua confiança no céu e, a falta de uma tecnologia de resgate mais avançada, recorreram à oração ainda que, ao mesmo tempo, tenham demonsrado que eram capazes de se organizar e lutar por suas vidas, com solidariedade e de modo coletivo, se ajudando uns a outros.
Está, pois, na hora de que todos possam chegar a compreender que não há salvadores nem no céu nem na terra se os trabalhadores não se salvam a si próprios, e que as chamadas "fatalidades" se podem prever e impedir acabando com a superexploração das pessoas e dos recursos pelo capitalismo. Estaá na hora de que pelo menos a esquerda comece a fazer um pouco de clareza ideológica e a dar a batalha pelas ideias.
Fonte: La Jornada.