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Valério Arcary

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Menos pobre e menos atrasado, mas não menos injusto: diminuição do papel da educação como fator de mobilidade social

Valério Arcary - Publicado: Segunda, 27 Setembro 2010 02:00

Valério Arcary

Das nuvens mais negras cai água límpida e fecunda.
Sabedoria popular chinesa


Não importa o tamanho da montanha, ela não pode tapar o sol.
Sabedoria popular portuguesa

É pelo rastro que se conhece o tamanho da onça.
Sabedoria popular brasileira

O aumento do consumo das famílias em 2009, apesar da crise econômica mundial e da estagnação com um recuo do PIB de 0,2%, foi comemorado pelo governo como a sinalização de uma tendência consolidada de redução da pobreza e até de maior justiça social. A desigualdade entre os que vivem de salários veio sendo reduzida, de fato, no Brasil. O processo, porém, não é recente. Há pelo menos duas décadas se verifica esta tendência como expressão de uma mudança de longa duração que acompanhou os ritmos da crescente urbanização. Esse indicador confirma que a elevação do piso da remuneração do trabalho manual, ou colarinho azul, veio acompanhada, também, pelas quedas do piso dos funcionários em funções de rotina, ou colarinho branco e, mais acentuadamente, pela queda do salário médio dos assalariados com nível superior. Em outras palavras, a maior escolaridade veio perdendo estímulos materiais.

Estudo do IPEA de novembro de 2008 confirma que diminuiu a desigualdade pessoal da renda, um indicador que considera somente as disparidades que ocorrem no interior do conjunto do rendimento do trabalho, mas piorou a distribuição funcional da renda, um indicador que afere a participação relativa do trabalho na renda nacional, considerada a apropriação realizada pela renda do capital, ou seja, da propriedade que deriva de ativos como terrenos e unidades de produção econômica, ou aplicações financeiras e, também, a parcela absorvida pelo Estado na forma de impostos.1 A parcela do trabalho na renda nacional era, em 1990, somente de 45,4%. Não obstante, ainda piorou e caiu abaixo de 40%, entre 2003 e 2004, para atingir 41,7% em 2008.

Na Espanha, por exemplo, em 1999, era de 50,13%.2 Em geral, a participação do trabalho em paíss urbanizados se mantém acima de 50%, mas na Argentina em 1990 era, incrivelmente, abaixo de 40%.3 Em outras palavras, nos últimos vinte anos, os trabalhadores ficaram com uma parcela menor da riqueza nacional, e o capital com uma parcela maior, mas entre os assalariados diminuiu a disparidade salarial porque, ao mesmo tempo, aumentou o piso do salário manual e caiu o piso do salário de alta escolaridade.

No caso da distribuição funcional da renda nacional, existiram quatro fases que indicam uma trajetória oscilante, porém, na longa duração, regressiva. A primeira fase ocorreu entre 1990 e 1996, quando o rendimento do trabalho perdeu participação relativa no total da renda do país (-15,2%), enquanto a segunda fase houve elevação da parcela do trabalho entre 1996 e 2001 (+5,4%). A terceira fase expressa nova queda relativa na participação do rendimento do trabalho (-3,1%). Aconteceu entre 2001 e 2004. A partir de 2005, iniciou-se a quarta fase, com a expansão da parcela do trabalho na renda nacional (+4% entre 2005 e 2006). Somente nos períodos de 1996-2001, e 2004-2008 se confirma uma convergência no sentido de queda nas desigualdades pessoal e aumento da participação funcional do trabalho na renda nacional. Entre os anos de 1996 e 2001, por exemplo, a desigualdade pessoal da renda caiu 2,4% e a parcela relativa do trabalho na renda nacional subiu 5,4%, enquanto no período pós 2004, a desigualdade pessoal caiu 1,1% e a participação do trabalho na renda nacional aumentou 6%.4

A situação de desigualdade social no Brasil revela dinâmicas econômico-sociais contraditórias, embora não sejam inusitadas: a elevação do piso da remuneração do trabalho manual parece consistente, confirmando uma maior demanda por mão de obra, e as pressões indiretas do aumento do salário mínimo - e mesmo do Bolsa-família - que desestimula a contratação por salários inferiores ao salário-mínimo, ainda que sem carteira assinada.

É um fenômeno progressivo, mas seu pleno significado só pode ser analisado quando considerado em perspectiva histórica, ou seja, na relação que o aumento do consumo popular mantém com o endividamento das famílias e, também, com a redução do desemprego. A primeira conclusão é que a maioria dos novos empregos se concentrou em atividades que exigem pouca escolaridade e oferecem baixos salários. A pesquisa mensal de emprego do IBGE na região metropolitana de São Paulo indica uma evolução muito lenta e próxima somente da recuperação da inflação. O salário médio nominal da população ocupada de R$1.483,50 em fevereiro de 2009 (R$1.350,90 no setor privado e R$1.891,50 no setor público), passou para R$1.535,40 (R$1.443,60 no setor privado e R$2.013,90 no setor público) em fevereiro de 2010. O salário médio no setor privado com carteira assinada foi de R$ 1.515,90, e sem carteira assinada foi de R$ 1.174,40. Importante considerar, também, que os salários em outras regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE são inferiores aos de São Paulo, confirmando que as dimensões continentais do Brasil inibem a formação de um mercado de trabalho nacional homogêneo.5

A queda do piso dos assalariados com elevada escolaridade merece ser considerada decepcionante ou até regressiva, porque desestimula a busca de escolarização, sinalizando pressões deflacionárias que derivam da estagnação econômica, portanto, do desemprego, associadas ao aumento da oferta da mão de obra com titulação superior. A queda do salário médio dos assalariados com nível universitário desencoraja, necessariamente, o esforço de uma escolaridade superior. Em um Brasil ainda intensamente desigual, com predomínio de ensino privatizado, o caminho de uma maior escolaridade será mais difícil, sem o estímulo de uma recompensa material adequada.

A análise comparativa deve calibrar com minúcia essa disparidade salarial. As informações disponíveis são contraditórias porque sinalizam tendências, aparentemente, antagônicas. Mas, na realidade, não são. A questão de fundo que deve organizar o debate sobre a mobilidade social é a estagnação de longa duração do capitalismo periférico. É verdade que os assalariados têm uma remuneração menos heterogênea que uma geração atrás. Mas essa evolução não autoriza a conclusão de que o Brasil seria hoje, socialmente, menos injusto que há trinta anos, porque a participação do trabalho sobre a renda nacional diminuiu.

O aumento do consumo popular nos últimos anos permite uma redução da pobreza, porém, repousa em um maior endividamento das famílias. O aumento da escolaridade dos trabalhadores manuais confirma uma dinâmica positiva, porém, muito lenta para poder ser comemorada. Mantido o ritmo atual, antes de meados do século XXI não atingiremos a escolaridade dos países europeus do Mediterrâneo, o que não é muito animador. Os avanços na escolaridade média exigem um intervalo de, pelo menos, uma geração, ou vinte e cinco anos. Dobrar a escolaridade em um país das dimensões demográficas do Brasil é um desafio colossal.

A recuperação econômica, entre 2004 e 2008, teve efeitos positivos sobre a renda média das famílias. O Relatório Mundial sobre Salários 2008/2009 da OIT informa que, se considerarmos o aumento do nível salarial médio, a América Latina e Caribe foi a região que registrou a média mais baixa de aumento, 0,3% ao ano, mesmo percentual registrado no Brasil no mesmo período. Segundo a diretora do escritório da Organização internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, Laís Abramo, entre 2001 e 2007 a chamada distribuição funcional da renda, ou seja, a proporção do PIB composta pela remuneração ao trabalho caiu na maioria (70%) dos países analisados no período de 1995 a 2007. O relatório informa, também, que em 70% dos países foi registrada uma piora na distribuição da renda entre os trabalhadores, o que mostra o aumento nas desigualdades salariais de uma forma geral. O nível salarial médio dos trabalhadores cresceu, todavia, no mundo todo, mas o índice ainda pode ser considerado pequeno: menos de 2% na maior parte dos países.6

A explicação para a redução das desigualdades entre os assalariados parece estar na diminuição do desemprego entre 2004/08, e nos programas de distribuição de renda como, por exemplo, a valorização do salário mínimo, a cobertura mais universal da aposentadoria do INSS, e o Bolsa-Família. Estes foram os fatores objetivos que explicariam a estabilidade social a partir dos anos noventa, em contraste com a radicalização social dos anos oitenta. Os fatores subjetivos, talvez, não menos importantes, remetem à integração da defesa do regime democrático e sua institucionalidade das organizações sindicais e políticas mais influentes entre os trabalhadores, que culminou com a eleição de Lula à presidência e a cooptação da CUT.

Mas, ainda assim, o tema permanece controverso, porque existem outras três variáveis a serem consideradas, quando pensamos as pressões objetivas que condicionam a maior ou menor desigualdade social: em primeiro lugar, a permanência de uma taxa de desemprego, estruturalmente, alta (acima de 5% da PEA) e com uma parcela ainda significativa de trabalhadores sem carteira assinada (por exemplo, 20% de 1 milhão de trabalhadores do comércio na cidade de São Paulo, em 2008). Segundo a pesquisa mensal de emprego do IBGE, de fevereiro de 2010, a taxa de desocupação, nas seis regiões metropolitanas estudadas (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), ficou estável em relação a janeiro (7,2%), e recuou 1,1 ponto percentual em relação a fevereiro de 2009 (8,5%). A população desocupada (1,7 milhão) não variou na comparação mensal e recuou (-11,3%) em relação a fevereiro de 2009 (menos 220 mil pessoas). A população ocupada (21,7 milhões) ficou estável em relação a janeiro e cresceu 3,5% (mais 725 mil postos de trabalho) em relação a fevereiro de 2009. O número de trabalhadores com carteira assinada (10 milhões) subiu 1,6% em relação a janeiro (mais 156 mil empregos com carteira assinada). Em relação a fevereiro de 2009, houve alta de 6,4% (mais 598 mil empregos com carteiras assinadas). 7

Em segundo lugar, a elevadíssima rotatividade da mão de obra – entre 10 e 15 milhões de demissões por ano - que sugere uma exigência de maior escolaridade e especialização da mão de obra do trabalho manual Uma manifestação da elevada rotatividade está na grande percentagem de trabalhadores que não chega a acumular dois anos de tempo de serviço na mesma empresa. Mesmo considerando apenas os trabalhadores com carteira de trabalho assinada, a média dessa percentagem no Brasil foi de 48,6%, no período 1990-2000, segundo as informações disponíveis na Relação Anual de Informações Sociais (Rais). Alguns dados relativos aos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) fornecem um referencial para comparações. Esses dados revelam que, entre os países europeus desenvolvidos, essa percentagem era de apenas 21,5%, em média, no início dos anos 1980. Além disso, mesmo nos Estados Unidos, cujas leis de proteção ao emprego são as menos severas dentre os países da OCDE, essa percentagem não chega a 40%.8 Em terceiro lugar, uma subnotificação da renda da riqueza: rendimentos financeiros no Brasil e no exterior, ou aluguéis, por exemplo.9

A ascensão social por via da mobilização coletiva pela extensão de direitos, a luta de classes, foi mantida em níveis baixos de conflitividade enquanto a mobilidade social individual se manteve alta. Em contrapartida, sociedades urbanizadas com grande rigidez social foram, politicamente, instáveis, porque a crise social assumiu formas crônicas e potencializou uma luta de classes radicalizada. Uma situação revolucionária só foi possível quando a indignação dos setores médios se uniu à disposição de luta dos trabalhadores e provocou a divisão da burguesia. A mobilidade social relativa foi um dos fatores objetivos da estabilidade dos regimes democráticos.

A mobilidade social relativa através da educação foi um fator de coesão social do capitalismo brasileiro. A coesão social dependeu, essencialmente, do crescimento econômico que levou a formação da moderna classe trabalhadora urbana. O lugar da educação como instrumento de ascensão social foi, entretanto, muito valorizado pela classe média brasileira, que se destacou pelo esforço de garantir a elevação da escolaridade para seus filhos. Durante meio século, entre 1930/80, o aumento da escolaridade foi um importante fator de ascensão social. A educação era um dos elevadores para aceder á classe média. Os incentivos materiais para buscar uma educação superior foram muito importantes. A recompensa econômica na forma de salários, pelo menos, dez vezes maiores do que o salário mínimo, era suficiente para justificar os sacrifícios.

Formou-se uma vibrante nova classe média – em muitos casos sem herança patrimonial significativa - de engenheiros, médicos, advogados, arquitetos e, também, professores, administradores públicos e privados, etc. No Brasil, este esforço social de aumento da escolaridade foi financiado tanto pelas famílias como pelo Estado. As famílias assumiram os gastos da educação básica e o Estado, pelo critério meritocrático, da educação superior, porque as melhores universidades continuaram sendo públicas e gratuitas. Desde o século XIX, as sociedades urbanizadas secundarizaram o papel das Igrejas, portanto, da caridade na educação, e os custos de uma maior escolaridade foram divididos entre o Estado e as famílias. Segundo os dados divulgados pela Unesco, para o ano de referência de 2005, existem as mais díspares situações. De um lado a Dinamarca, por exemplo, os investimentos públicos para a educação universitária correspondem 96,7 e gastos das famílias a 3,29%%. No outro extremo, o Chile, os números são, respectivamente, 15,46% e 83,67%. Em Portugal, os custos são divididos entre 86% para o estado e 14% para as famílias. Nos Estados Unidos as proporções são 35,38% e 35,14%, e outros 29,47% são os custos absorvidos por outras entidades privadas, como variadas fundações. No México 68,87% e 30,64%. 10

Os investimentos públicos em educação, proporcionalmente ao PIB, continuaram, contudo, modestos, mesmo quando comparados com outros países periféricos. Esse quadro desolador não se alterou com o fim da ditadura, embora tenha ocorrido uma pequena melhora nos últimos anos. O percentual do investimento público total na educação em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) aumentou nesta década, mas teve grandes oscilações, porque entre 2000 e 2005 caiu de 4,7% para 4,5% e, a partir de 2006, subiu para 5,1%. Segundo o estudo Education at a Glance, da Unesco, publicado em 2009, Portugal investe 5,6%, acima da Espanha, com 4,7%. A média da OCDE é de 5,7%. A Islândia gasta 8% do PIB na educação. Dinamarca, Coréia e Estados Unidos também ultrapassam os 7%.11

Os sacrifícios da classe média para garantir uma educação superior de qualidade para os seus filhos foram muito grandes, porque significaram financiar o ensino básico em escolas particulares, em função do funil seletivo dos exames de acesso às universidades públicas. O setor de educação privada expandiu e passou a ter uma expressão significativa sobre o PIB, a partir dos anos setenta e oitenta do século XX.12

A classe trabalhadora, contudo, teve muito mais dificuldades para se beneficiar do aumento da escolaridade, portanto, da mobilidade social relativa. O orçamento doméstico da maioria das famílias proletárias não podia garantir as mensalidades do ensino privado. Permaneceu atendida pela matrícula de seus filhos na escola pública primária e secundária, porque a maioria da geração adulta já considerava uma vitória o simples aumento de escolaridade além daquela que tinham tido oportunidade. Essas expectativas parecem estar se alterando, talvez, se invertendo.

A exigência de escolaridade mais elevada para fugir do desemprego explica o esforço de garantir, entre os trabalhadores, o acesso aos cursos pós-secundários de tecnologias ou mesmo universitários para a geração mais jovem. O desemprego passou a ser um incentivo para os filhos dos trabalhadores não abandonarem a escola quando entram no mercado de trabalho, aumentando a demanda de ensino noturno e, também, a demanda de vagas no ensino superior. Mas a esperança entre a classe média de que uma escolaridade superior poderia ser um impulso para ocupações melhor remuneradas, parece estar diminuindo. Esse desânimo não é infundado: há algumas décadas o salário médio dos assalariados com nível superior vem em queda lenta. Não fosse isso o bastante, cerca de 80% dos brasileiros com cursos superiores completos trabalham em atividades diferentes, e até, distantes, de sua formação profissional.

O salário médio nacional permaneceu estagnado no Brasil entre 2002 a setembro de 2008. A evolução histórica do salário médio das ocupações com nível superior, quando não permaneceu estacionária, veio declinando. A pesquisa mensal de emprego do IBGE de março de 2009 nas seis maiores regiões metropolitanas revelou que o salário médio da população que se autodeclarou como branca, com escolaridade de 9,1 anos, foi de aproximadamente R$1.600,00.

O da população que se autodeclarou como parda ou negra, com escolaridade média de 7,6, foi de R$800,00. A média nacional foi de R$1,200,00. As curvas evolutivas dos salários médios entre 2002/2009 foram muito semelhantes.13

O paradoxo parece intrigante. O crescente desalento da classe média sugere que as recompensas materiais pelo aumento da escolaridade já não compensariam os sacrifícios para garantir uma escolaridade superior. Dois fenômenos muito regressivos, socialmente, dos últimos vinte e cinco anos – que correspondem à estagnação econômica de longa duração e, paradoxalmente, à estabilização democrática, estiveram associados: a emigração para o exterior e o aumento da população carcerária.

O Brasil possui a oitava maior população carcerária do mundo por habitante. Estima-se que em 2010 a população carcerária esteja próxima de meio milhão. O número de presos aumentou consideravelmente nos últimos quinze anos. Dados revelados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) mostram que, em 1995, eram 148.760 mil presos no país. Segundo os dados consolidados, até junho de 2007, havia 419.551 mil detidos em penitenciárias e delegacias. Em 1995, a proporção era de 95 presos para cada 100 mil habitantes. Hoje, esse número aumentou e chega a 227 presos para cada 100 mil habitantes. Os dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública apontam que cerca de 500 mil mandados não foram cumpridos, o que dobraria a população carcerária. 14

A emigração de alguns milhões de brasileiros para os países centrais – entre eles, uma maioria com escolaridade acima da média nacional - parece confirmar esta tendência. Os principais países de destino da emigração brasileira são os EUA, o Paraguai (sobretudo nos anos 70 e 80), a União Européia e o Japão. Embora não existam números confiáveis, sobretudo pela intensa migração irregular, os dados do Ministério das Relações Exteriores estimam em 3 ou 4 milhões. O peso demográfico da emigração pode ter alcançado uma dimensão entre 3% e até 5% da PEA, uma proporção inferior à maioria dos países sul-americanos, mas inusitada na história do Brasil. A grandeza deste processo pode ser aferida pelo significado econômico das remessas dos brasileiros para as suas famílias, e pelo peso da entrada das divisas sobre o balanço de pagamentos do país.15

As taxas de mobilidade social absoluta e relativa diminuíram, se compararmos o período histórico 1980/2010 como o período anterior 1930/1980. Durante meio século, entre 1930 e 1980, o Brasil conheceu uma mobilidade social absoluta significativa, comparativamente, à situação atual. Esse processo foi possível em função da acelerada urbanização que permitia a absorção massiva de mão de obra analfabeta ou semi-alfabetizada pela indústria. A mobilidade social relativa foi menor que a absoluta, mas foi, também, expressiva, entre 1930/80, embora, essencialmente, restringida à classe média.

Esse processo dos anos 1930/80 é chave para compreendermos a crise atual, porque foi excepcional. O padrão histórico dominante na história do Brasil foi outro. O Brasil agrário era uma sociedade de desenvolvimento econômico lento, grande rigidez social e espantosa inércia política. Durante muitas gerações os antepassados da maioria esmagadora do povo brasileiro foram vítimas da imobilidade social e da divisão hereditária do trabalho. Os que nasciam filhos de escravos, não tinham muitas esperanças sobre qual seria o seu destino. Os filhos dos sapateiros já sabiam que seriam sapateiros. Os filhos dos médicos, ou engenheiros, ou advogados, mesmo se não tivessem propriedades, poderiam, em contrapartida, aspirar uma inclusão nos meios burgueses.

No entanto, a memória histórica que o período 1930/80 deixou como repertório cultural de experiência de duas gerações de brasileiros permanece viva na mentalidade da geração adulta atual. É compreensível que a expectativa de que ainda sejam possíveis, mesmo nos limites do capitalismo, reformas distribuidoras de renda, sem conflitos sociais agudos, seja tão poderosa.

Não deveria surpreender, portanto, que as esperanças reformistas – a expectativa, incontáveis vezes frustrada, mas renovada, de uma concertação social que garanta pleno emprego, reforma agrária, aumento da escolaridade com expansão da rede pública, elevação do salário médio, etc. - sejam tão resistentes.

Na avaliação do sentido histórico da evolução social não há lugar para inocentes políticos. Se a mobilidade social absoluta e relativa voltasse a ser significativa, a perspectiva de ascensão social pelo esforço individual, sem maior luta de classes, ganharia maior credibilidade. Se a aspiração de uma recompensa pessoal do esforço pela via meritocrática do aumento da escolaridade tivesse confirmação, a perspectiva de uma mudança pela mobilização coletiva ficaria mais desacreditada.

Não parece ser esse o processo que estamos vivendo. A mobilidade social absoluta, à exceção de fenômenos regionais muito localizados, se perdeu com a estagnação econômica. A ampliação dos benefícios da assistência social permitiu a redução da miséria, mas a oferta de empregos, mesmo durante o último ciclo de expansão, não aumentou o salário médio, nem reduziu a rotatividade da mão de obra, nem inverteu a tendência emigratória, nem reduziu a criminalidade. A mobilidade relativa através da educação ficou mais difícil, porque o salário em ocupações de nível superior mantém o ritmo de queda lenta. Não está surgindo uma pujante nova classe média. O que está ocorrendo é a proletarização da classe média assalariada.

Notas

1. Em 2006, por exemplo, o Produto Interno Bruto (PIB) de 2,370 trilhões de reais equivaleu a R$12.688,00 em média per capita. O conjunto dos trabalhadores absorveu 40,9% do total, enquanto os proprietários apropriaram-se de 43,8%. A parte restante (15,3%) refere-se aos impostos arrecadados pelo Estado. Mais dados disponíveis no site do IPEA: http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/comunicado_presidencia/08_11_11_DistribuicaoFuncional.pdf
Consulta em 12/04/2010

2. Estudo mais completo sobre o tema está disponível em: http://www.eumed.net/cursecon/7/Lorenz-Gini.htm
Consulta em 13/04/2010

3. Disponível em:
http://www.econ.uba.ar/www/institutos/economia/Ceped/publicaciones/dts/DT4_Lindenboim_Grana_Kennedy.pdf
Consulta em 13/04/2010

4. Estudo mais completo sobre o tema está disponível em: http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/comunicado_presidencia/08_11_11_DistribuicaoFuncional.pdf
Consulta em 12/04/2010

5. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/pme_201002sp_03.shtm
Consulta em 12/04/2010.

6. Disponível em: http://www.guiame.com.br/v4/11193-1462-Sal-rios-m-dios-cresceram-no-mundo-mas-n-o-o-suficiente-diz-OIT-.html Consulta em 26/03/2010

7. Disponívelem:http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1576&id_pagina=1Consulta em 30/03/2010.

8. Um estudo sobre o tema está disponível em: http://ppe.ipea.gov.br/index.php/ppe/article/viewFile/27/7.
Consulta em 31/10/2010.

9. Conferirem:http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2008/default.shtm Consulta em 20/03/2010.

10. Dados comparativos sobre os investimentos públicos de outras nações podem ser procurados no site da UNESCO: http://stats.uis.unesco.org/unesco/ReportFolders/ReportFolders.aspx Consulta em 23/03/2010

11. As pesquisas podem ser feitas no site do INEP (Instituto Nacional de pesquisas e estudos Educacionais Anísio Teixeira): http://www.inep.gov.br/estatisticas/gastoseducacao/indicadores_financeiros/P.T.I._dependencia_administrativa.htm Consulta em 23/03/2010.

12. Segundo estudo da FGV (Fundação Getúlio Vargas), a atividade educacional desenvolvida pelo setor privado – inclusive as instituições sem fins lucrativos – era responsável por 1.184.126 ocupações em 2006, conforme dados do IBGE. Este número correspondia a 1,27% do total da PEA (População Economicamente Ativa), estimada em pouco mais que 93 milhões de pessoas.Também havia, em 2005, 19.940 fundações privadas e associações sem fins lucrativos dedicadas às atividades de educação e pesquisa. Estas entidades empregavam 509.265 pessoas. A escolaridade média dos profissionais que atuam no setor é de 12,6 anos de estudo, bem acima dos 7,4 correspondentes à totalidade da força de trabalho. A educação privada superou uma movimentação de R$50 bilhões em 2006, ou seja, alcançou 1,5% do PIB. O PIB é um indicador do valor dos bens e serviços realizados durante um ano, portanto, é uma medida da produção, consumo e poupança nacional. O estudo pode ser encontrado no site: http://www.fenep.com.br/arquivos/setor_educacional.pdf Consulta em 23/03/2010.

13. O salário mínimo obteve aumentos reais nos últimos quinze anos. Dados disponíveisem:http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/marco2009.pdf Consulta em 21/03/2010.

14. A taxa da população carcerária do Brasil por habitante está bem acima da média da América do Sul, que é de 165,5 por 100 mil. Disponível em: http://www.infoseg.gov.br/infoseg/destaques-01/brasil-e-oitavo-do-mundo-em-populacao-de-detentos Consulta em 31/03/2010

15. Desde os meados dos anos 80, o país começou a se tornar "country of emigration", como reconhece o World Economic and Social Survey – 2004, da ONU. A emigração para os EUA, Grã-Bretanha, Espanha, Portugal e Japão, entre outros destinos. São fontes sérias sobre a emigração latino-americana o World Economic and Social Survey – 2004 da ONU – DEPARTMENT OF ECONOMIC AND SOCIAL AFFAIRS. Disponível em : http://www.un.org/esa/analysis/wess e um relatório sobre os dados fornecidos pelo MRE pode ser encontrado em: MARINUCCI, Roberto. "Brasileiros e brasileiras no exterior. Apresentação de dados recentes do Ministério das Relações Exteriores". Disponível em:
http://www.csem.org.br/2008/roberto_marinucci_brasileiros_e_brasileiras_no_exterior_segundo_dados_do_mre_junho2008.pdf Consulta em 31/03/2010.


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