Jacques Lacan afirmou que mesmo se a alegação ciumenta do marido sobre sua esposa – que ela dorme por aí com outros homens – seja verdadeira, seu ciúme continua sendo patológico. Por quê? A verdadeira questão não é “o ciúme dele é bem fundamentado?”, mas “por que ele precisa do ciúme para manter sua própria identidade?” No mesmo sentido, poder-se-ia dizer que mesmo se a maioria das alegações nazistas sobre os judeus fosse verdade – que eles exploram os alemães; que seduzem as garotas alemãs – o que não eram, claro, seu anti-semitismo ainda seria (e era) patológico, uma vez que reprime a verdadeira razão de os nazistas precisarem do anti-semitismo para sustentar sua posição ideológica.
E não é exatamente o mesmo com o medo crescente dos refugiados e imigrantes? Para extrapolar ao extremo: mesmo se a maioria dos nossos preconceitos sobre eles forem provados como verdadeiros – que eles são terroristas fundamentalistas disfarçados; que eles estupram e roubam – o discurso paranoico sobre a ameaça imigrante ainda continuaria sendo uma patologia ideológica. Isso fala mais sobre nós, europeus, do que sobre os imigrantes. A verdadeira questão não é se “os imigrantes são uma ameaça real para a Europa?”, mas “o que essa obsessão com a ameaça imigrante nos diz sobre a fraqueza da Europa?”
Aqui há duas dimensões que devem ser separadas. Uma é a atmosfera de medo, da luta contra a islamização da Europa, que tem suas absurdidades próprias. Os refugiados que escapam do terror são igualados aos terroristas dos quais eles estão escapando. O fato óbvio de que há terroristas, estupradores, criminosos etc, entre os refugiados, enquanto a grande maioria é de pessoas desesperadas procurando uma vida melhor – da mesma maneira que, entre os refugiados da República Democrática Alemã, havia também agentes da Stasi escondidos – recebe uma virada paranoica. Nessa versão, os imigrantes aparecem (ou fingem) ser refugiados desesperados, enquanto na verdade são as pontas de lança de uma nova invasão Islâmica da Europa. Acima de tudo, como é normalmente o caso, a causa dos problemas imanentes para o capitalismo global de hoje é projetada num intruso externo. Um olhar desconfiado sempre encontra o que está procurando: as “provas” estão em toda a aprte, mesmo que metade logo seja provada como falsa.
A outra dimensão é a idealização humanitária dos refugiados. Esta descarta qualquer tentativa de confrontar abertamente as difíceis questões que surgem quando aqueles que seguem maneiras diferentes de vida coabitam como uma concessão à direito neo-fascista. O espetáculo tragicômico da auto-culpabilização sem fim no qual a Europa alegadamente traiu sua própria humanidade – o espetáculo de uma Europa homicida deixando milhares de corpos afogados em suas fronteiras – é um espetáculo egoísta, sem qualquer potencial emancipatório. Tudo de “ruim” sobre o outro é descartado, ou como nossa projeção (racista ocidental) no outro, ou como o resultado de nossos maus tratos (imperialista ocidental), através da violência colonial, do outro. O que está por trás desse círculo fechado de nós mesmos – ou, antes, as projeções do nosso lado maldoso “reprimido” no outro – o que acreditamos encontrar como o outro “autêntico” quando verdadeiramente nos abrimos para ele, o bom, o inocente outro, é também nossa fantasia ideológica.
Não há lugar para compromissos negociados aqui; nenhum ponto com o qual os dois lados talvez concordem (“Ok, paranoicos anti-imigrantes exageram, mas há alguns fundamentalistas entre os refugiados...”). Mesmo o mínimo grau de precisão das alegações racistas anti-imigrantes não serve para justificar a sua paranoia, mas por outro lado, a auto-culpabilização humanitária é completamente narcisista, fechada para um verdadeiro encontro com o vizinho imigrante. A tarefa é falar abertamente sobre todos os assuntos desagradáveis sem um compromisso com o racismo.
Desse modo, nós prevenimos um verdadeiro encontro com um vizinho real e o seu modo de viver. Descartes, o pai da filosofia moderna, notou que quando ele era jovem as condutas e crenças dos povos estrangeiros pareciam para ele ridículas e excêntricas, até que ele se perguntou se as nossas maneiras e crenças poderiam parecer o mesmo para eles. O produto dessa reversão não é um relativismo cultural generalizado, mas algo mais radical e interessante. Nós deveríamos aprender a nos experienciar como excêntricos, a ver nossos costumes em todas sua estranheza e arbitrariedade. No seu O Homem Eterno, G. K. Chesterton imagina o monstro que o homem deve parecer para os animais meramente naturais ao redor dele:
“A verdade mais simples acerca do homem é que ele é um ser muito estranho: quase no sentido de ser um estranho sobre a terra. Sem nenhum exagero, ele tem muito mais da aparência exterior de alguém que surge com hábitos alienígenas de outro mundo do que da aparência de um mero desenvolvimento deste mundo. Ele tem uma vantagem injusta e uma injusta desvantagem. Ele não consegue dormir na própria pele; não pode confiar nos próprios instintos. Ele é ao mesmo tempo um criador movendo mãos e dedos miraculosos, e uma espécie de deficiente. Anda envolto em faixas artificiais chamadas roupas; escora-se em muletas artificiais chamadas móveis. Sua mente tem as mesmas liberdades duvidosas e as mesmas violentas limitações. Ele é o único entre os animais que se sacode com a bela loucura chamada riso: como se houvesse vislumbrado na própria forma do universo algum segredo que o próprio universo desconhece. Ele é o único entre os animais que sente a necessidade de desviar seus pensamentos das realidades radicais do seu próprio ser físico; de escondê-las como se estivesse na presença de alguma possibilidade superior que origina o mistério da vergonha. Quer louvemos essas coisas como naturais ao homem, quer as insultemos como artificiais na natureza, elas mesmo assim continuam únicas.” [1]
Um “modo de vida” não é precisamente um modo de ser um estranho na terra? Um “modo de vida” específico não é composto apenas por um conjunto de “valores” – cristãos, muçulmanos – abstratos; ele é algo incorporado numa densa rede de praticas cotidianas: como comemos e bebemos, cantamos, fazemos amor, como lidamos com as autoridades. Nós “somos” nosso modo de vida: é a nossa segunda natureza, e é por isso que a “educação” direta não é capaz de mudá-la. Algo muito mais radical é preciso, uma espécie de “estranhamento” brechtiano, uma experiência existencial profunda pela qual, de repente, nos atinge o quão estupidamente sem sentido e arbitrários são os nossos costumes e rituais – não há nada natural no modo que nós abraçamos e beijamos, no modo que nos lavamos, no modo como nos comportamos enquanto comemos...
O ponto então não é reconhecer a nós mesmos em estranhos, mas reconhecer um estranho em nós mesmos – aí reside a mais íntima dimensão da modernidade europeia. O reconhecimento de que somos todos, cada um à sua maneira, estranhos lunáticos, fornece a única esperança para uma coexistência tolerável de diferentes modos de vida.
Nota:
[1] CHESTERTON, G. K. O homem eterno. trad. Almiro Pisetla. – São Paulo: Mundo Cristão, 2010, p. 37.
Traduzido por José Mauro Garboza Junior.
Fonte: LavraPalavra/Newstatesman.