Admiração que, desde logo, prendeu-se ao seu notável estilo de pensar a herança de Marx, estilo tornado flagrante especialmente após o seu afastamento do Partido Comunista Francês/PCF, consumado em 1958 (afastamento de que ele deu conta um ano depois em livro pouco feliz, La somme et le reste, a que, em 1960, L. Sève replicou com La différence). Mas aquele estilo – constatei depois – já se encontra in statu nascendi nos seus primeiros escritos (veja-se o ensaio que publicou, em colaboração com N. Gutermann, em 1936, La conscience mystifiée, e a tradução/introdução aos “cadernos filosóficos” de Lenin, também preparada à época com o mesmo parceiro) e prosseguiu no curso de toda a sua longa e profícua vida: estilo consistente em tomar o pensamento de Marx não como monumento intelectual pretérito e sacralizado, mas como acervo vivo e ponto de partida necessário e crítico para pesquisas criativas, acicate para formulações inovadoras, sobretudo como instrumento para a produção de uma nova compreensão de problemas novos. Em algum de seus incontáveis textos, Lefebvre anotou que “o conhecimento se alimenta de ironia e contestação” – e parece-me que, embora em medida desigual, toda a sua obra testemunha esta concepção da produção teórica.
“Medida desigual” – usei a expressão não por acaso: a imensa bibliografia de Lefebvre (quero crer que ele está entre os autores marxistas que mais escreveram e publicaram) não registra somente títulos de indiscutível relevância, como aqueles referidos à crítica da vida cotidiana, à pesquisa sociológica no meio rural, ao fenômeno urbano, à exegese filosófica, à polêmica com diversas correntes teóricas (como o estruturalismo dos anos 1960) e à análise de conjunturas histórico-políticas determinadas (a Comuna de Paris, a irrupção de maio de 1968). Registra também intervenções de pouco fôlego (como a sua crítica ao existencialismo, de 1946, o seu livrinho sobre estética, de 1953, ou as suas reflexões sobre a “psicologia das classes sociais”, apresentadas no conhecido Traité de sociologie dirigido por G. Gurvitch, de 1960), superficiais (como a sua apreciação dos “problemas atuais do marxismo”, de 1958, a sua visão da “sociologia” de Marx, de 1965, ou o seu “manifesto diferencialista”, de 1970) e mesmo tão pretensiosas quanto mais esboçadas que elaboradas (como o seu tratado sobre o Estado, de 1976).
Para ser curto e grosso: a obra de Lefebvre, como a da maioria dos polígrafos, é muito desigual, incluindo segmentos brilhantes e páginas anódinas – no entanto, os primeiros ultrapassam largamente as últimas. Por isto, não é possível pensar o marxismo do século XX sem considerar a contribuição ímpar da sua inteligência e do seu talento – para comprová-lo, veja-se a sua ressonância no Brasil (de que um indicador é o volume, organizado por José de Souza Martins, Henri Lefebvre e o retorno à dialética. S. Paulo: Hucitec, 1996) e, em especial, o interesse que desperta atualmente (cf. entre muitos, p. ex., S. Elden, Understanding Henri Lefebvre. London: Continuum, 2004 e A. Ajzenberg et alii, Maintenant Henri Lefebvre. Renaissance de la pensée critique. Paris: L´Harmattan, 2011, ademais da revista eletrônica francesa La somme et le reste).
Sabe-se ser consensual que a crítica constitui um dos traços mais pertinentes da obra de Lefebvre. Entretanto, relendo, há pouco, o seu texto que comparece no citado Lukács 1955/Etre marxiste aujourd’hui, verifiquei que também há, em Lefebvre, algo mais que a sua crítica intransigente: há o raro componente da generosidade.
Explico-me: no livro, o texto de Lefebvre reproduz a conferência pronunciada por ele a 8 de junho de 1955, no Instituto Húngaro de Paris, a propósito do septuagésimo aniversário de Lukács (o filósofo nascera a 13 de abril de 1885). Lefebvre, que conhecia a obra lukacsiana desde os anos 1930 (em La conscience mystifiée há uma crítica às concepções que Lukács defendera em História e consciência de classe, de 1923), tivera contatos pessoais com o marxista húngaro em Paris e Budapeste e, sobretudo, acompanhava com cuidado a situação em que Lukács se encontrava à época. Uma situação extremamente difícil: no clima da Guerra Fria e com a autocracia stalinista no auge, seu representante na Húngria, M. Rakosi, decretou 1949 como “o ano da virada”, que anunciava uma mudança radical na vida política e cultural. Na política, ilustra-a o “processo Rajk” (com a prisão/execução do Ministro do Interior). Na cultura, a abertura do “debate Lukács”: por ordem direta do todo-poderoso Rakosi, L. Rudas, antigo defensor de Lukács, ataca e denuncia o filósofo, abrindo uma campanha que terá sequência com intervenções de M. Horvarth e J. Révai (e que repercute na URSS, com um ataque do romancista russo A. Fadeiev divulgado no Pravda).
A pressão é tamanha que Lukács, em agosto de 1949, é obrigado a uma autocrítica, que as autoridades partidárias e governamentais consideram “meramente formal”. O filósofo deixa a cena pública e continua a ser objeto de calúnias (mas dá seguimento a seu trabalho: em 1954, consegue publicar A destruição da razão, que concluíra em 1952). Somente em 1955 a pressão sobre Lukács se reduz – então, foi-lhe atribuído o Prêmio Kossuth –, mas ele permanece e permanecerá, até meados dos anos 1960 (inclusive por sua participação nos eventos húngaros de 1956), como objeto de suspeição e vigilância por parte do partido e da intelectualidade oficial.
Pois bem: é a este filósofo, suspeito e vigiado, acossado mesmo, que Lefebvre corajosamente dedica a sua conferência de 8 de junho de 1955, intitulada “Georg Lukács”. O seu conteúdo é um balanço da produção marxista de Lukács (ainda que tematizando parte da sua obra anterior, como A alma e as formas) – mas, lateralmente, Lefebvre dirige farpas aos “jovens marxistas militantes” de La nouvelle critique, revista do PCF que circulou entre 1948 e 1980 e a cujo comitê redacional pertenceu até novembro de 1957 e desqualifica um livro de M. Merleau-Ponty lançado à época e que faria carreira de sucesso (As aventuras da dialética).
Examinando o essencial da produção de Lukács até 1954, Lefebvre pontua com nitidez as suas críticas e discrepâncias ao/com o mestre de Budapeste (críticas e discrepâncias que retomaria e aprofundaria em obras posteriores). Uns poucos exemplos: considera um mérito de Lukács o ter posto a categoria de totalidade no centro de História e consciência de classe, mas observa que sua concepção é a de uma “totalidade fechada”, que não valoriza a categoria de contradição; acredita que a consciência de classe tematizada por Lukács no mesmo livro está equivocadamente próxima do espírito absoluto de Hegel; no tocante aos escritos estéticos de Lukács, deixa claro que discorda da concepção que ele tem do romantismo. O eixo da exposição/argumentação de Lefebvre, porém, está na grandeza que ele identifica na obra lukacsiana: não vacila em destacar a suma importância de O jovem Hegel: sobre as relações entre dialética e economia e em avaliar A destruição da razão como uma “obra magistral”; quanto aos escritos de Lukács sobre arte, Lefebvre destaca a originalidade e a relevância dos seus desenvolvimentos categoriais (enfatizando a sua concepção do típico).
A leitura da conferência de Lefebvre sobre Lukács revela claramente a perspectiva mais ampla a partir da qual o pensador francês avaliava criticamente o teórico húngaro: o filósofo marxista tem o direito/dever de não se inclinar aos juízos filosóficos oficiais (partidários e/ou estatais) e de expor livremente as suas ideias. Uma perspectiva corajosa – e temerária – para os intelectuais então vinculados aos partidos comunistas.
Nesta conferência de saudação aos setenta anos de Lukács, ainda acossado pelos seus detratores que dispunham de poder, Lefebvre vinculou a sua coragem crítica à generosidade: concluiu a sua análise afirmando ser Lukács “um verdadeiro filósofo marxista”, com valor “exemplar” – e apelando para que este fosse “o sentido da nossa mensagem de amizade e de homenagem”.
Não era pouca esta homenagem na conjuntura então vivida pelo septuagenário Lukács.
Fonte: Boitempo.