Muitos anos depois, já na década de 1970, lecionando em Portugal, deparei-me, numa biblioteca universitária, com o livro de outro norte-americano, de quem não tinha maiores informações, intitulado White collar crime. Examinei-o rapidamente e logo constatei que era muito interessante: tratava-se de um estudo sobre crimes empresariais – apesar do objeto atraente, larguei-o de mão: o autor contava os milagres, mas não revelava os santos. Nunca gostei de histórias sem nomes. A única lembrança que me ficou é que a noção de white collar com que o autor trabalhava era bem diversa daquela instrumentalizada por Mills.
Pois bem, amável leitor: agora, há poucas semanas, constatei o quanto perdi ao largar de mão White collar crime. A obra acaba de ser traduzida aqui com o título Crime de colarinho branco. Versão sem cortes (Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/REVAN, 2015). Duas notações:
1ª. O autor é Edwin H. Sutherland (1883-1950) e a apresentação de Clécio Lemos (que, com colaboradores, verteu o texto ao português) oferece uma sucinta informação sobre o ilustre sociólogo que se dedicou à criminologia (que, segundo o tradutor, não deve ser incluído na chamada “Criminologia crítica);
2ª. O adendo ao título – versão sem cortes – deve-se ao fato de que o livro, originalmente publicado em 1949, somente em 1983 pôde vir à luz com a identificação das empresas envolvidas em crimes. Ou seja: nesta versão integral, podemos conhecer os milagres e os respectivos santos.
Trata-se de uma pesquisa à qual o autor se dedicou por 17 anos e os dados recolhidos (em fontes dignas de crédito, fundamentalmente órgãos da administração pública norte-americana) referem-se às 70 maiores empresas dos Estados Unidos (operantes na manufatura, mineração e atividades mercantis) e aos anos 1929-1949. Examinando a listagem das empresas (obviamente, gigantes monopolistas), o leitor encontrará várias com as quais tem, ou já teve, alguma relação – só gente fina: Chrysler, DuPont, Ford, General Eletric, General Motors, Goodyear, Kodak, Procter & Gamble, Singer, Union Carbide, Westinghouse…
Sutherland trabalha com a seguinte caracterização do seu objeto: “Crime de colarinho branco pode ser definido aproximadamente como um crime cometido por uma pessoa de respeitabilidade e alto status social no curso de sua atividade” (p.33-34). É uma caracterização bem pouco determinada (note-se o “aproximadamente”) – mas estamos lidando com um típico sociólogo acadêmico norte-americano da primeira metade do século XX… Contudo, o elenco dos crimes que tipifica é mais preciso: restrição de comércio, uso de rebate (preços discriminatórios), violação de direitos autorais (patentes, marcas), propaganda enganosa, violação de direitos trabalhistas, manipulação financeira e violação das leis de guerra (lembre-se do período em que a pesquisa foi realizada) – todos passíveis de sanção.
Pois bem: com a meticulosidade própria de um empirista sério, Sutherland – auxiliado por estudantes de graduação (da Universidade de Indiana, da qual foi docente entre 1935-1949) – recolhe, das 70 empresas, todas as violações cometidas e registradas, discriminando-as segundo os crimes elencados e apresentando os dados pertinentes (empresa, crime, processos criminais federais e estaduais etc.). O trabalho dispendido na recolha e no tratamento quantitativo e classificatório dos dados foi exaustivo e meritório; se o leitor duvida dessa avaliação, dê uma olhada no livro – verificará que tenho alguma razão.
A riqueza dos dados que Sutherland coletou e organizou, porém, contrasta com a pobreza das suas inferências, algumas de extrema platitude. Neste livro, os referenciais teóricos de que ele se vale são de um pauperismo franciscano, o que o conduz a extrair do universo pesquisado implicações que pouco vão além do senso comum. Mas o que é extremamente valioso no seu trabalho é a panorâmica factual que ele oferece da (i/a)moralidade do mercado, (i/a)moralidade, para além da legalidade, que não é específica das empresas monopolistas – como ele mesmo escreve: “Frequentemente se afirma que as grandes empresas seguem mais a lei e são mais honestas do que as pequenas empresas. Nenhuma pesquisa demonstrou a veracidade ou a falsidade desta afirmação” (p. 345). Mas há diferenciais no caso das grandes empresas: seus crimes “não são violações discretas e involuntárias a regulamentos técnicos. Eles são deliberados e têm uma unidade relativamente consistente” (p. 333); e Sutherland mostra como, nelas, se articula internamente a formação dos que praticam os atos criminosos – mostra como a cultura da violação se afirma.
Não espere o leitor de Sutherland a explicação/compreensão da (i/a)moralidade do mercado – em face dela, o liberal honesto que é Sutherland é criticamente muito limitado, ainda que aborde o seu caráter criminoso. No entanto, nem mesmo a sua impotência crítica obscurece o fato de que a moralidade nos negócios mercantis (mais exatamente: capitalistas) é inerentemente imoral ou amoral. O panorama que ele oferece em Crime de colarinho branco. Versão sem cortes é, como panorama, eloquente quanto a isto – portanto, vale a pena lê-lo, especialmente quando, nas circunstâncias atuais do Brasil, os arautos das maravilhas que só o mercado pode realizar enchem a boca para defender a moralidade pública.
Não só enchem a boca: financiam, patrocinam e organizam instituições voltadas para se demonstrarem “socialmente responsáveis”, para divulgar seu “interesse em estabelecer padrões éticos de relacionamento com funcionários, clientes, fornecedores, comunidade, acionistas, poder público e com o meio ambiente”. Não sorria, amável leitor: entre as empresas que “compartilham entre si” esse “compromisso social”, estão a Souza Cruz, a Volkswagen, a Walmart, a Monsanto e a Odebrecht Oil & Gas… – também aqui, como lá em cima, tudo gente muitíssimamente fina e acima de qualquer suspeita…