Estes são tempos negros, nos quais a propaganda da fraude afecta todas as nossas vidas. É como se a realidade política houvesse sido privatizada e a ilusão legitimada. A era da informação é uma era medieval. Temos política através dos media; censura através dos media; guerra através dos media; represália através dos media; diversão através dos media – uma linha de montagem surreal de clichés e falsas suposições.
Uma tecnologia assombrosa torna-se tanto nossa amiga como nossa inimiga. Todas as vezes que ligamos um computador ou escolhemos um dispositivo digital – nossos rosários leigos – estamos sujeitos a controle: à vigilância dos nossos hábitos e rotinas, e a mentiras e manipulação.
Edward Bernays, que inventou a expressão "relações públicas" como eufemismo para "propaganda", previu isto há mais de 80 anos. Chamou a isto "o governo invisível".
Escreveu ele: "Aqueles que manipulam este elemento não visto da [moderna democracia] constituem um governo invisível a qual é o verdadeiro poder dominante do nosso país... Somos governados, nossas mentes são moldadas, nossos gostos formados, nossas ideias sugeridas, em grande medida por homens de que nunca ouvimos falar..."
O objectivo deste governo invisível é a conquista de nós próprios: da nossa consciência política, do nosso sentido do mundo, da nossa capacidade para pensar independentemente, de separar verdades de mentiras.
Isto é uma forma de fascismo, uma palavra que justificadamente usamos com cautela, preferindo deixá-la num passado hesitante. Mas um insidioso fascismo moderno é agora um perigo que se acelera. Tal como nos anos 1930, grandes mentiras são apresentadas com a regularidade de um metrónomo. Muçulmanos são maus. Fanáticos sauditas são bons. Fanáticos do ISIS são maus. A Rússia é sempre má. A China está a ficar má. Bombardear a Síria é bom. Bancos corruptos são bons. Dívida corrupta é boa. A pobreza é boa. A guerra é normal.
Àqueles que questionam estas verdades oficiais, este extremismo, considera-se que precisam de uma lobotomia – até serem diagnosticados como aderindo à linha. A BBC proporciona este serviço gratuitamente. Se deixar de se submeter será etiquetado como um "radical" – seja o que for que isso signifique.
A dissidência real tornou-se exótica; mas aqueles que dissidem nunca foram tão importantes. O livro que estou a lançar esta noite, "The WikiLeaks Files" [1] , é um antídoto para um fascismo que nunca pronuncia o seu nome. É um livro revolucionário, assim como a própria WikiLeaks é revolucionária – exactamente como pretendia Orwell na citação que mencionei no princípio. Pois ele diz que não precisamos aceitar estas mentiras diárias. Não precisamos permanecer em silêncio. Ou, como cantou outrora Bob Marley: "Emancipe-se da escravidão mental".
Na introdução, Julian Assange explica que nunca é suficiente publicar as mensagens secretas dos grandes poderes: que perceber o sentido delas é crucial, assim como colocá-las no contexto de hoje e na memória histórica.
Este é o feito notável desta antologia, a qual recupera a nossa memória. Ela conecta as razões e os crimes que provocaram tanta tempestade humana, desde o Vietname e a América Central até o Médio Oriente e a Europa do Leste, com a matriz na potência rapinante, os Estados Unidos.
Há actualmente uma tentativa americana e europeia de destruir o governo da Síria. O primeiro-ministro David Cameron está especialmente entusiasmado. Este é o mesmo David Cameron de que me recordo como um untuoso homem de RP empregado por um desmembrador de empresas (asset stripper) da televisão comercial independente da Grã-Bretanha.
Cameron, Obama e o sempre obsequioso François Hollande querem destruir o último remanescente da autoridade multi-cultural na Síria, uma acção que certamente abrirá caminho para os fanáticos do ISIS.
Isto é insano, naturalmente, e a grande mentira justificando esta insanidade é que é em apoio aos sírios que se levantam contra Bashar al-Assad na Primavera Árabe. Como revela The WikiLeaks Files, a destruição da Síria é desde há muito um cínico projecto imperial que antecede o levantamento da Primavera Árabe contra Assad.
Para os dominadores do mundo em Washington e na Europa, o verdadeiro crime da Síria não é a natureza opressiva do seu governo mas a sua independência em relação ao poder americano e israelense – assim como o verdadeiro crime do Irão é a sua independência, e o verdadeiro crime da Rússia é a sua independência, e o verdadeiro crime da China é a sua independência. Num mundo possuído pela América, a independência é intolerável.
Este livro revela estas verdades, uma após a outra. A verdade sobre uma guerra ao terror que foi sempre uma guerra de terror; a verdade sobre Guantanamo, a verdade sobre o Iraque, o Afeganistão, a América Latina.
Nunca contar a verdade foi tão urgentemente necessário. Com honrosas excepções, aqueles nos media pagos aparentemente para manter as coisas claras estão agora absorvidos dentro de um sistema de propaganda que já não é jornalismo, mas anti-jornalismo. Isto é verdadeiro tanto para liberais e respeitáveis como para Murdoch. A menos que esteja preparado para monitorar e desconstruir toda afirmação especiosa, as assim chamadas "notícias" tornaram-se inassistíveis e ilegíveis.
Ao ler "The WikiLeaks Files" recordei as palavras do falecido Howard Zinn, que muitas vezes referia-se a "um poder que governos não podem suprimir". Isto descreve a WikiLeaks e descreve a verdade dos denunciantes que partilham a sua coragem.
Numa nota pessoal, tenho conhecido pessoas da WikiLeaks desde há algum tempo. Que tenham alcançado o que fizeram em circunstâncias que não foram da sua escolha é uma fonte de admiração constante. O seu resgate de Edward Snowden vem à mente. Tal como ele, eles são heróicos: nada menos.
O capítulo de Sarah Harrison, "Indexing the Empire", descreve como ela e seus camaradas estabeleceram toda uma Biblioteca Pública da Diplomacia dos EUA. Há mais de dois milhões de documentos, agora disponíveis para todos. "Nosso trabalho", escreve ela", "destina-se a assegurar que a história pertence a todos". Quão emocionante é ler estas palavras, as quais se mostram também um tributo à sua própria coragem.
Do confinamento numa sala da embaixada equatoriana em Londres, a coragem de Julian Assange é uma resposta eloquente aos covardes que o enlamearam e à potência canalha que procura vingar-se sobre ele e travar uma guerra à democracia.
Nada disto desviou Julian e seus camaradas da WikiLeaks: nem um milímetro. Não será alguma coisa?
Nota:
[1] The WikiLeaks Files: the World According to the US Empire é publicado pela Verso .
Artigo do dia 30 de Setembro de 2015.
Fonte: Resistir.