A derrapagem jornalística é tão grave que também é o tema da principal reportagem na secção de negócios, com uma página interna inteira dedicada à continuação das duas notícias. Em tom de choque, ambas fazem referência a vários crimes já cometidos pela imprensa: alguns casos de invenção, logo desmascarados, e casos de plágio ("demasiados para citar"). O crime específico da Rolling Stone foi "falta de ceticismo", que é, "em muitos aspetos, o mais insidioso" entre as três categorias.
É reconfortante ver o compromisso do Times com a integridade do jornalismo.
Na página 7 da mesma edição, há um artigo importante escrito por Thomas Fuller intitulado "A Missão de uma mulher para libertar o Laos de bombas não detonadas". Relata o "esforço único" de uma mulher Laociana-americana, Channapha Khamvongsa, "para livrar a sua terra natal de milhões de bombas ainda enterradas lá, legado de uma campanha aérea americana que durou nove anos e que fez do Laos um dos lugares mais bombardeados do mundo" – logo superado pelo Camboja rural, seguindo instruções de Henry Kissinger à força aérea dos EUA: "Campanha de bombardeamento maciço no Camboja. Qualquer coisa que voe sobre tudo o que se mova". É difícil encontrar algum registo comparável em termos de convocação de um virtual genocídio. Foi mencionado no Times numa reportagem sobre a revelação de gravações do Presidente Nixon, e recebeu pouca atenção.
Fuller relata que, como resultado do lobby da Sra Khamvongsa, os EUA aumentaram generosamente o gasto anual com remoção de bombas não detonadas em 12 milhões de dólares. As mais letais são as bombas de fragmentação, projetados para "causar o máximo de baixas nas tropas" pulverizando "centenas de pequenas bombas no chão". Cerca de 30% permanecem intactas, e vêm a matar e mutilar crianças que encontram as peças, agricultores que esbarram nelas durante o trabalho, e outros casos de falta de sorte. Um mapa completa a reportagem, com destaque para a província de Xieng Khouang, no norte do Laos, mais conhecida como Planície de Jars, principal alvo do bombardeio intensivo, que atingiu o ápice de sua fúria em 1969.
Fuller relata que a Sra. Khamvongsa "decidiu agir quando se deparou com uma coleção de desenhos dos bombardeamentos feitos por refugiados, reunidos por Fred Branfman, um ativista contra a guerra que ajudou a expor a Guerra Secreta". Os desenhos aparecem no formidável livro de Fred Branfman Vozes da Planície de Jars, publicado em 1972, e republicado pela editora da Universidade de Wisconsin em 2013 com nova introdução. Os desenhos mostram em detalhes o tormento das vítimas, camponeses pobres de uma região isolada que não tinham nada a ver com a guerra do Vietnam, como foi admitido oficialmente. Um relato típico de uma enfermeira de 26 anos capta a natureza da guerra aérea: "Não existiu uma noite em que pensávamos sobreviver até à manhã seguinte, uma manhã em que pensávamos sobreviver até à noite. Os nossos filhos choraram? Sim, e nós também. Eu só ficava na minha caverna. Não vi a luz do sol durante dois anos. Em que pensava eu? Oh, eu apenas repetia, 'por favor, não deixe os aviões chegarem, por favor, não deixe os aviões chegarem, por favor, não deixe os aviões chegarem".
Os valentes esforços de Branfman, de facto, trouxeram alguma consciência sobre aquela atrocidade. A sua investigação perseverante também revelou as razões da destruição brutal de uma comunidade camponesa e desprotegida. Ele expôs as razões de novo na introdução à nova edição do livro Voices. Nas suas palavras:
"Uma das revelações mais devastadoras sobre os bombardeamentos foi a descoberta da razão pela qual haviam aumentado tanto em 1969, como descreviam os refugiados. Descobri que após o presidente Lyndon Johnson ter ordenado a interrupção de um bombardeamento no Vietnam do Norte, em novembro de 1968, ele simplesmente desviou os aviões para o norte do Laos. Não havia razão militar para isso. Foi apenas porque, como testemunhou o vice embaixador Monteagle Stearns no Comité de Relações Externas do Senado americano em outubro de 1969: 'Bem, tínhamos todos aqueles aviões parados e não podíamos deixá-los lá sem fazer nada'".
Dessa forma, os aviões sem uso foram descarregadas sobre os pobres camponeses, devastando a pacífica Planície de Jars, longe da devastação das assassinas guerras de agressão de Washington na Indochina.
Vejamos agora como essas revelações se transmutam na novilíngua do New York Times: "Os alvos eram as tropas norte-vietnamitas – especialmente as localizadas ao longo da trilha Ho Chi Minh, grande parte da qual passava pelo Laos – bem como os comunistas do Laos aliados ao Vietnam do Norte."
Compare com as palavras do vice embaixador americano e os emocionantes desenhos e testemunhos da coleção de Fred Branfman.
É claro que o repórter tem uma fonte: a propaganda oficial americana. Isso certamente basta para sobrepor alguns factos sobre um dos maiores crimes ocorridos desde a Segunda Guerra Mundial, como detalhado pela própria fonte que ele cita: as revelações cruciais de Fred Branfman.
Podemos apostar que esta mentira colossal a serviço do Estado não vai merecer exposição prolongada muito menos denúncias de práticas vergonhosas da Imprensa Livre, como plágio e falta de ceticismo.
A mesma edição do New York Times brinda-nos com um artigo do inimitável Thomas Friedman, retransmitindo com sinceridade as palavras do presidente Obama ao apresentar o que Friedman chama de "a doutrina Obama" – cada presidente tem que ter uma doutrina. A doutrina profunda consiste em "'cooperação' combinado com o alcance de necessidades estratégicas fundamentais".
O presidente ilustrou com um caso crucial: "Veja um país como Cuba. Ao testarmos a possibilidade de que a cooperação leve a um resultado melhor para o povo cubano, não há muitos riscos para nós. É um país pequeno. Não representa ameaça aos nossos principais interesses de segurança, então [não há razão para não] testar a proposta. E se acontecer de não obtermos melhores resultados, podemos ajustar as nossas políticas".
Aqui, o prêmio Nobel da Paz estende-se sobre as razões para empreender o que o principal jornal intelectual da esquerda liberal, o New York Review, saúda como o "passo "corajoso e verdadeiramente histórico" de restabelecer relações diplomáticas com Cuba. É um movimento realizado a fim de "fortalecer de forma mais efetiva o povo cubano", explicou o herói, já que os nossos esforços anteriores para levar-lhes a liberdade e a democracia não haviam conseguido atingir os nossos nobres objetivos. Os esforços anteriores incluíam um embargo esmagador condenado pelo mundo todo (exceto Israel) e uma brutal guerra terrorista. Esta última é, como sempre, varrida da história, exceto pelas tentativas fracassadas de assassinar Castro, episódios de menor importância nesta guerra, e aceitáveis porque podem ser reduzidos, com desprezo, a ridículas partidas da CIA. Consultando os registos internos anteriormente confidenciais e já acessíveis, ficamos a saber que estes crimes foram cometidos por Cuba representar um "desafio bem-sucedido" à política americana desde a Doutrina Monroe, que estabelecia a intenção de Washington de dominar o hemisfério. Nada disso foi mencionado, bem como tantos outros factos que não haveria espaço para contar aqui.
Prosseguindo a leitura encontramos outras pérolas, por exemplo, o artigo de primeira página sobre o acordo com o Irão, assinado por Peter Baker alguns dias antes, alertando sobre os crimes iranianos frequentemente enumerados pelo sistema de propaganda de Washington. Todos provam-se bastante reveladores, embora nenhum mais do que o crime iraniano por excelência: "desestabilizar" a região ao apoiar as "milícias xiitas que mataram soldados americanos no Iraque". Aqui, novamente, é o padrão quadro. Quando os EUA invadem o Iraque, praticamente destruindo-o e incitando os conflitos sectários que estão esfacelando o país e agora toda a região, isto conta como "estabilização" na retórica oficial e, portanto, da comunicação social. Quando o Irão apoia as milícias que resistem à agressão, a isto se dá o nome de "desestabilização". E não se poderia pensar em crime mais hediondo do que matar soldados americanos que vieram atacar a casa de alguém.
Tudo isso, e muito, muito mais, faz todo o sentido para quem mostra a esperada obediência e aceita acriticamente a doutrina aprovada: os EUA são os donos do mundo, e são-no por direito, por razões também explicadas lucidamente na New York Review, num artigo de março de 2015 escrito por Jessica Matthews, ex-presidente do Carnegie Endowment for International Peace (Fundo Carnegie para a Paz Internacional): "As contribuições americanas para a segurança internacional, o crescimento económico global, a liberdade e o bem-estar humano são tão evidentemente inigualáveis, e sempre dirigidas ao benefício dos outros, que os americanos se acostumaram a pensar que os EUA são um tipo diferente de país. Quando outros fazem pressão pelos seus interesses nacionais, os EUA procuram privilegiar princípios universais".
Sem mais.
Artigo publicado em AlterNet. Tradução de Clarisse Meireles/Carta Maior.