Bowe Bergdahl era soldado raso quando abandonou o seu posto no Afeganistão, em circunstâncias que ainda não foram conhecidas publicamente, e foi capturado pelos talibans. Bergdahl esteve sequestrado durante cinco anos até ser libertado como parte de uma controversa troca de prisioneiros negociada pelo Governo Obama. Cinco membros dos talibans, que estiveram detidos em Guantanamo durante anos, foram libertados da prisão norte-americana para continuar em detenção domiciliária no Qatar em troca da libertação de Bergdahl, que agora enfrenta um conselho de guerra e poderá ser condenado a prisão perpétua. Enquanto os artífices das desastrosas guerras do Iraque e do Afeganistão continuam sem ser julgados, um novo relatório afirma que cerca de 1,3 milhões de pessoas morreram no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão nos primeiros dez anos da chamada guerra contra o terrorismo.
O relatório, com o título “Body Count” (Contagem de baixas), foi feito pela organização Associação Internacional de Médicos para a Prevenção da Guerra Nuclear, vencedora do prémio Nobel da Paz, e foi publicado nos Estados Unidos pela organização Physicians for Social Responsibility (Médicos pela responsabilidade social). “Minimizar a responsabilidade das forças aliadas no massacre e na destruição generalizada da região era um objetivo de grande importância em termos políticos”, escreveu o médico de São Francisco Robert M. Gould no prólogo do relatório. Gould disse-me: “A publicação deste relatório na América do Norte dá-nos uma explicação mais exaustiva do que tem sido o custo humano desta guerra. Ainda podemos ver os impactos da desestabilização que nós, o nosso governo e os seus aliados, causaram no Iraque e noutros países. Acho que, de modo semelhante à nossa experiência coletiva em relação à informação sobre a Guerra do Vietname, houve neste caso uma verdadeira desconexão em relação ao impacto que esta guerra teve nas pessoas daquela região. Sem dúvida que houve informação sobre os mortos e os feridos do nosso lado, do número de soldados norte-americanos e das forças da NATO que morreram nos diversos conflitos. Mas estas outras mortes, esta destruição, por uma série de motivos, são ocultadas à população dos Estados Unidos, de maneira que não vemos o verdadeiro custo da guerra. Além disso, não vemos a ligação entre estas políticas e o grau de morte e destruição que provocam a desestabilização destas regiões e a matança sistemática que se realiza através da guerra com drones, etc. Estamos fora desses efeitos e não entendemos a ira das pessoas que sofreram a guerra no Iraque durante doze anos, ou até mais tempo no Afeganistão. Não sabemos quais são os efeitos”.
A publicação do relatório coincidiu com a visita do novo presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani, à Casa Branca para reunir com o Presidente Barack Obama. Obama anunciou que vai adiar a retirada dos soldados norte-americanos do Afeganistão e que deixará 9.800 soldados no país pelo menos até finais de 2015. “A data da nossa retirada completa não será modificada, mas na minha opinião - e na opinião do geral [John F.] Campbell e de outras pessoas que estão no local - vale a pena proporcionar este prazo adicional para contribuir para o triunfo das forças de segurança do Afeganistão”. A guerra mais longa da história dos Estados Unidos continua e não parece vislumbrar-se o seu fim. Durante a sua estadia em Washington, Ghani também visitou o Pentágono e o Cemitério Nacional de Arlington, onde colocou flores em honra dos soldados norte-americanos caídos.
“Body Count” fornece uma surpreendente atualização da estimativa, geralmente aceite, das mortes da guerra contra o terrorismo no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão. “O número é aproximadamente dez vezes maior do que a população, os peritos e os atores políticos estão cientes. E trata-se apenas de um cálculo conservador”, afirma o relatório. E acrescenta que “o número total de mortos nos três países poderá exceder os dois milhões, enquanto que um número inferior a um milhão é muito improvável”. O ex-secretário-geral adjunto das Nações Unidas, Hans von Sponeck, escreve no prólogo que o relatório “deve ser considerado um contributo fundamental para encurtar o fosso entre os cálculos confiáveis do número de vítimas da guerra, especialmente de vítimas civis no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão, e a informação tendenciosa, manipulada ou até fraudulenta que no passado nublou a nossa visão sobre a magnitude das mortes e da miséria provocadas nos três países”, escreveu. Da sua casa em Friburgo, na Alemanha, von Sponeck disse-me: “Acho que a importância de tudo isto é que utilizemos os dados como base para impulsionar o debate adiado durante muito tempo em Washington, em Londres e, sem dúvida, nas Nações Unidas em Nova York sobre por que aconteceu tudo isto e como podemos evitar isso”. Hans Von Sponeck, que em 1957 foi um dos primeiros objetores de consciência da Alemanha Ocidental, era Coordenador das operações humanitárias das Nações Unidas no Iraque no momento em que as fortes sanções impostas pelos Estados Unidos estavam a provocar a morte de milhares de pessoas no país e decidiu renunciar, em oposição a essas medidas.
Não ouvimos a explicação do prisioneiro de guerra Bowe Bergdahl sobre como e porquê abandonou o seu posto naquela noite de junho de 2009. Se estiver submetido à mesma “justiça” militar que Chelsea Manning, provavelmente negar-nos-ão a possibilidade de escutar a declaração de Bergdahl durante o julgamento. No conselho de guerra de Manning, o seu depoimento só pôde ser ouvido através de uma gravação realizada de forma clandestina. O falecido jornalista da revista “Rolling Stone” Michael Hastings publicou vários artigos acerca do caso de Bergdahl, nos quais citou e-mails enviados pelo soldado aos seus pais antes de ter sido capturado, nos quais criticava fortemente a ocupação do Iraque e do Afeganistão pelos Estados Unidos. Bowe escreveu: “Entristece-me tudo o que acontece aqui”.
O Presidente afegão, Ashraf Ghani, honrou os milhares de soldados norte-americanos que estão enterrados no Cemitério Nacional de Arlington. O seu gesto inspirará o Presidente Obama ou o seu sucessor a visitar os muitos cemitérios pejados de mortos das guerras do Iraque, do Afeganistão e do Paquistão?
Artigo publicado em Truthdig em 27 de março de 2015. Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna. Texto em inglês traduzido por Mercedes Camps para espanhol para Democracy Now. Tradução para português de Carlos Santos/Esquerda.net.