Em janeiro de 2011, milhares de pessoas juntaram-se na praça Tahrir no Cairo, desafiando pela primeira vez a ditadura do presidente egípcio Hosni Mubarak, que estava há 30 anos no poder. Tanto nas ruas, como através da Internet, começava a criar-se uma saída para as décadas de repressão e censura a qualquer tentativa de oposição ao regime. Seis meses antes, em Alexandria, o jovem Khaled Saeed, de 28 anos de idade, foi retirado de um cibercafé e espancado até à morte pela polícia. As fotos do seu cadáver, publicadas pela sua família, tornaram-se um fenómeno viral na Internet, fomentando o descontentamento. Wael Ghonim, engenheiro informático e ativista da Internet, criou uma página no Facebook, “Somos todos Khaled Said”, que serviu como plataforma de organização para centenas de milhares de pessoas.
À medida que a multidão na praça Tahrir aumentava, o poder da Internet como força para a mudança social ficava demonstrado minuto a minuto. Em resposta, Mubarak bloqueou o acesso à Internet e ao funcionamento do maior serviço de telemóvel. A descomunal indignação que isso gerou obrigou-o a restabelecer ambos os serviços.
Isto leva-nos ao conceito de neutralidade da Internet: a ideia básica de que qualquer pessoa pode ligar-se com outra pessoa através da web, de que os utentes podem aceder do mesmo modo a um site pequeno lançado a partir de uma garagem, como aos principais portais da Internet como o Google ou o Yahoo. A neutralidade da rede é o que garante a não discriminação no serviço de Internet.
Durante as últimas duas décadas, enquanto a Internet florescia e transformava a nossa sociedade, várias grandes empresas desenvolveram posições dominantes e tentaram assumir o papel de “sentinelas” da Internet, ameaçando a neutralidade da rede. Entre elas, os principais fornecedores de serviços da Internet nos Estados Unidos: AT&T, Verizon, Time Warner e Comcast. Estas quatro empresas de telefone e cabo ganham milhares de milhões de dólares ao mesmo tempo que cobram enormes custos e prestam, na melhor das hipóteses, um serviço medíocre.
Em 2004, a Comissão Federal de Comunicações (FCC, na sigla em inglês), presidida então por Michael Powell, filho do secretário de Estado, general Colin Powell, estabeleceu os princípios para a chamada “Internet aberta”. Na prática, esses princípios favoreciam as mesmas grandes empresas que estavam a beneficiar de um regulamento considerado “light”. Powell deixou o cargo para dirigir a Associação Nacional de Cabo e Telecomunicações (NCTA, na sigla em inglês), um dos principais grupos de pressão da indústria do cabo, o que demonstra claramente a corrupção existente entre os reguladores federais e as indústrias que supostamente supervisionam.
Quase dez anos mais tarde, o presidente Barack Obama nomeou Tom Wheeler, ex-diretor da Associação Nacional de Cabo e Telecomunicações, como presidente da FCC. Wheeler foi um dos principais doadores das campanhas presidenciais de Obama. Depois de um tribunal federal ter anulado as normas propostas durante o mandato de Powell, Wheeler anunciou que a FCC estabeleceria outras novas. Os defensores de uma Internet livre e aberta ficaram preocupados que este ex-defensor das grandes empresas pusesse fim à Internet tal como a conhecemos e entregasse o poder às principais empresas de telecomunicações e de cabo.
O anúncio de Wheeler provocou um massivo movimento de protesto. Liderados por organizações como Free Press e Public Knowledge, um numeroso grupo de pessoas acampou em frente à FCC durante vários dias. Mais de quatro milhões de pessoas enviaram comentários sobre as normas, tonando esta solicitação federal de comentário público na maior resposta de sempre da população.
Esta semana, num artigo publicado no site da revista Wired, Wheeler fez uma surpreendente revelação. “Originalmente, eu achava que a FCC podia assegurar a abertura de Internet através de uma determinação de 'razoabilidade comercial'”, escreveu. Isto é o que deixava preocupados os defensores da neutralidade da rede. Aos principais fornecedores da Internet permitir-se-ia discriminar, favorecendo alguns sites acima de outros, desde que estivessem dentro de certos cânones de “razoabilidade”. No seu artigo na Wired , Wheeler continuou: “Eu proponho que a FCC utilize a autoridade que lhe confere o Título II da Lei de Comunicações para implementar e fazer cumprir as proteções para uma Internet aberta”.
A referência de Wheeler à “autoridade conferida pelo Título II”, mostra que ele mudou de posição radicalmente e proporá normas para que a Internet seja regulada como um serviço público básico, como outros pilares centrais da nossa sociedade tais como o serviço elétrico, o serviço de água potável e o sistema telefónico. Imaginem se a água que sai das vossas torneiras fosse menos limpa que a água da casa de um vizinho por ele pagar para ter água de melhor qualidade. Os serviços públicos estão regulados. As pessoas obtém o mesmo serviço, sem discriminação.
Os grandes fornecedores da Internet não poderão exercer discriminação sobre nenhum utente da Internet, quer seja alguém que publique ou alguém que procure informação na rede. Todos devem ser tratados por igual, sem importar a origem étnica, a cor, crenças e, talvez o mais importante, quão ricos são. As principais empresas fornecedoras de Internet exerceram uma pressão enorme para criar uma Internet a várias velocidades e tirar mais lucro deste tesouro público. Tom Wheeler e os outros comissários da FCC ouviram, não só o presidente Obama, mas também a população do país, os milhões de pessoas que exigiram o direito fundamental a comunicarem sem discriminação.
Artigo publicado em Truthdig em 4 de fevereiro de 2015. Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna. Texto em inglês traduzido por Inés Coira para espanhol para Democracy Now. Tradução para português de Carlos Santos/Esquerda.net