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Atilio Borón

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Em coluna

Gaza: o genocídio e suas (des)razões

Atilio Borón - Publicado: Quinta, 24 Julho 2014 11:26

Em meio do espanto e do banho de sangue que inunda Gaza ouve-se uma voz, metálica, glacial. Pronuncia um solilóquio semelhante ao que William Shakespeare, na sua obra Henrique VI, pôs na boca de Ricardo, um ser disforme, monstruoso, mas aguilhoado por uma ambição ilimitada e orgulhoso da sua vilania:


"Sou o espírito do estado de Israel. Sim, agrido, destruo e assassino impunemente: crianças, anciãos, mulheres, homens. Porque em Gaza são todos terroristas, para além das suas aparências. Um dos hierarcas da ditadura genocida na Argentina, o general Ibérico Saint Jean , disse que "Primeiro vamos matar todos os subversivos, depois seus colaboradores, depois os indiferente e por último os tímidos". Nós invertemos essa sequência e começámos pela população civil, gente cujo crime é viver em Gaza. No processo cairão centenas de inocentes, gente que simplesmente tentava sobreviver nesse confinamento nauseabundo; a seguir iremos aos tímidos, os indiferentes e depois deste brutal e instrutivo escarmento chegaremos aos colaboradores e aos terroristas. Sei muito bem que o rudimentar e escasso armamento do Hamas só nos pode provocar um arranhão, como demonstram as estatísticas fúnebres dos nossos ataques periódicos às populações palestinas. Suas ameaças de destruir o estado de Israel são fanfarronadas sem sentido porque não têm a menor capacidade de levá-las à prática. Mas são-nos de enorme utilidade na guerra psicológica e na propaganda: servem-nos para aterrorizar nossa própria população e obter assim seu consentimento para o genocídio e a nossa política de ocupação militar dos territórios palestinos. E também servem para que os Estados Unidos e os países europeus, embarcados na "luta contra o terrorismo", nos facilitem todo tipo de armamentos e nos amparem politicamente.

Em Gaza não enfrento nenhum exército, porque não lhes permitimos que o tenham. Eu, em contrapartida, tenho um dos melhores do mundo, apetrechado com a mais refinada tecnologia bélica proporcionada pelos meus protectores: Washington e as velhas potências coloniais europeias e aquela que pude desenvolver, graças a eles, dentro de Israel. Os palestinos tão pouco têm uma aviação para vigiar seu espaço aéreo, nem uma frota que proteja seu mar e suas praias. Meus drones e helicópteros sobrevoam Gaza sem temor e disparam seus mísseis sem se preocuparem com o fogo inimigo, porque não há fogo inimigo. Aperfeiçoámos, com as novas tecnologias bélicas, o que Hitler fez em Guernica. Sou amo e senhor de vidas e fazendas. Faço o que quero: posso bombardear casas, escolas, hospitais, o que me der na gana. Meus poderosos amigos (e, sejamos honestos, cúmplices de todos os meus crimes) aceitarão qualquer atrocidade que decida perpetrar. Já o fizeram antes, em inúmeráveis ocasiões e não só connosco: fá-lo-ão quantas vezes for preciso. Sua má consciência ajuda-me: calaram envergonhadamente durante a Shoá, o sistemático genocídio perpetrado por Hitler contra os judeus perante a vista e a paciência de todo o mundo, desde o Papa Pio XII até Franklin D. Roosevelt e Winston Churchill. Calarão também diante do genocídio que metodicamente por etapas estou a realizar em Gaza, porque matar palestinos impunemente é isso, genocídio. Como fazia Hitler quando alguém da sua tropa de ocupação era feito prisioneiro ou morto pelos maquis da resistência francesa ou pelos partisans espanhóis: juntavam dez ou quinze pessoas ao acaso, que tivessem a desgraça de passar pelo lugar, e metralhavam-nos no acto, como escarmento e como advertência didáctica para que seus vizinhos não cooperassem com os patriotas. Nós nem sequer esperamos que matem um dos nossos para fazer o mesmo e fazemo-lo do modo mais covarde. Ao menos os nazis viam os rostos das vítimas cujas vidas cortariam em um segundo; nós não, porque disparamos mísseis a partir de aviões ou navios, ou projécteis a partir dos nossos tanques. Inquieta-nos recordar que tanta crueldade, tanto horror, foi em vão. Seis milhões de judeus sacrificados nos fornos crematórios e milhões mais que caíram por toda a Europa não foram suficientes para evitar a derrota de Hitler. Será diferente desta vez, será que agora nosso horror nos abrirá o caminho para a vitória?

Eufórica por ver tanto sangue árabe derramado uma das minhas deputadas extravasou e disse o que penso: que há que matar as mães palestinas porque engendram serpentes terroristas. Desgraçadamente nem todos em Israel pensam assim; há alguns judeus, românticos incuráveis, que acreditam que podemos conviver com os árabes e que a paz não só é possível como necessária. Dizem-nos que isso foi o que fizemos durante séculos. Não entendem o mundo de hoje, mortalmente ameaçado pelo terrorismo islâmico, e deixam-se levar pela nostalgia de uma época superada definitivamente. Não são poucos em Israel os que caem neste equívoco e preocupa-nos que seus números estejam em crescendo. Mas a partir do governo trabalhamos activamente para contrariar esse sentimentalismo pacifista e, para cúmulo, laico. Laico, num estado no qual para ser cidadão é preciso ser judeu (e temos cerca de 20% de árabes, que viveram na região durante séculos e não são cidadãos) e onde não existe o matrimónio civil, só o religioso!

Para combater estas atitudes contamos com os grandes meios de comunicação (os de Israel e os de fora) e nossas escolas ensinam nossas crianças a odiar nossos indesejáveis vizinhos, uma raça desprezível. Para envolve-los no nosso esforços militar os convidamos a escreverem mensagens de morte nos mísseis que, pouco depois, lançaremos contra essa gentalha amontoada em Gaza. Outras crianças serão as que cairão mortas por esses mísseis amorosamente dedicados pelos nossos. Não ignoro que com minhas acções lanço uma asquerosa escarrada à grande tradição humanista do povo judeu, que arranca com os profetas bíblicos, continua com Moisés, Abraão, Jesus Cristo e passa por Avicena, Maimónides, Baruch, Spinoza, Sigmund Freud, Albert Einstein, Martin Buber até chegar a Erich Fromm, Claude Levy-Strauss, Hannah Arendt e Noam Chomsky. Ou com judeus extraordinários que enriqueceram o acervo cultural da Argentina como León Rozitchner, Juan Gelman, Alberto Szpunberg e Daniel Barenboim, entre tantos outros que seria muito longo enumerar aqui. Mas esse romantismo já não conta. Deixámos de ser um povo perseguido e oprimido; agora somos opressores e perseguidores.

Utilizam-se duras palavras e frases para qualificar o que estamos a fazer. Covardia criminosa, delito de lesa humanidade, por agredir com armas mortíferas uma população indefesa, dia e noite, hora após hora. Mas por acaso não merece a mesma qualificação o que fizeram os Estados Unidos ao lançar bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki? E quem os reprova? Terrorismo de Estado? Digamos antes realpolitik, porque desde quando meus e amigos e protectores do Ocidente se preocuparam com o Terrorismo de Estado ou as violações dos Direitos Humanos que eles mesmo cometem, ou um aliado ou peão? Apoiaram durante décadas quantos déspotas e tiranos povoaram esta terra, sempre que fossem funcionais aos seus interesses: Saddam Hussein, Xá da Pérsi, Mubarak, Ali, Mobutu, Osama Bin Laden. E, na América Latina, Videla, Pinochet, Geisel, Garrastazú, Stroessner, "Papa Doc" Duvallier, Somoza, Trujillo, Batista e muitíssimos mais. Assassinaram centenas de líderes políticos anti-imperialistas e Obama continua a fazê-lo ainda hoje, onde todas as terças-feiras decide quem da lista de inimigos dos Estados Unidos, que lhe é apresentada pela NSA, deve ser eliminado com um míssil disparado de um drone ou mediante uma operação de comandos. Por que haveriam de se escandalizar com o que está a acontecer em Gaza? Além disso precisam de mim como gendarme regional e base de operações militares e de espionagem numa região do mundo com tanto petróleo como o Médio Oriente – e sabem que para cumprir com essa missão não só não devem manietar-me como é preciso contar com seu inquebrantável apoio, o que até agora jamais me foi negado.

Sei também que estou a violar a legalidade internacional, que estou a desobedecer a resolução nº 242, Novembro de 1967, do Conselho de Segurança da ONU, que por unanimidade exige que me retire dos territórios ocupados durante a Guerra dos Seis Dias de 1967. Não cumpri essa resolução durante quase meio século, sem ter de enfrentar sanções de nenhum tipo como as que arbitrariamente se impõem a outros, ou as que aplicam a Cuba, Venezuela, Irão e, antes, ao Iraque depois da primeira guerra do Golfo. Razões desta tolerância? Meus lobistas nos Estados Unidos são poderosíssimos e têm um punho na Casa Branca, no Congresso e na Justiça. Segundo Norman Finkelstein (um mau judeu, inimigo do estado de Israel) a indústria do holocausto goza de tal eficácia extorsiva que impede perceber que quem agora está a produzir um novo holocausto somos nós, os filhos e netos daqueles que padeceram sob os nazis. Por isso, apesar de as vítimas mortais em Gaza já superarem os 500 palestinos (contra 25 soldados do nosso exército, um dos quais foi morto por erro pelas nossas próprias forças, segundo informou esta segunda-feira 22 de Julho o New York Times ) o presidente Obama fez um apelo estúpido para evitar que israelenses e palestinos ficassem presos nos "fogo cruzado" desta confrontação. Pobre dele se houvesse dito que aqui não há "fogo cruzado" nem confrontação alguma e sim um massacre indiscriminado de palestinos, uma horrível "limpeza étnica" praticada contra uma população indefesa! Nosso lobby o crucificaria numa questão de horas! Agora que nossas tropas entraram em Gaza teremos que sofrer algumas baixas, mas a desproporção continuará a ser enorme.

Claro, não posso evitar que me qualifiquem tecnicamente como um "estado canalha", porque assim se denominam os que não acatam as resoluções da ONU e persistem em cometer crimes de lesa humanidade. Mas como os Estados Unidos e o Reino Unido são violadores em série das resoluções da ONU, e portanto também eles "estados canalhas", seus governos foram invariavelmente solidários com Israel. Para além da perturbação que por momentos possam ocasionar estas reflexões, precisamos completar a tarefa iniciada em 1948 e apoderar-nos da totalidade dos territórios palestinos: iremos deslocá-los periodicamente, aterrorizando-os, empurrando-os para fora das suas terras ancestrais, convertendo-os em eternos ocupantes de infectos campos de refugiados na Jordânia, na Síria, no Iraque, no Egipto, onde seja. E se resistirem os aniquilaremos. Podemos fazer isso pela nossa esmagadora força militar, pelo apoio político do Ocidente e pela degradação e putrefacção dos corrupto e reaccionários governos do mundo árabe que, como era previsível (e assim nos haviam assegurado nossos amigos em Washington e Londres) não se importam minimamente com a sorte dos palestinos.

A tal extremo chega nossa barbárie que até um amigo nosso, Mario Vargas Llosa, se escandalizou quando em 2005 visitou e Gaza e surpreendeu-nos com críticas de insólita ferocidade. Chegou a dizer, por exemplo: "pergunto-me se algum país no mundo teria podido progredir e modernizar-se nas condições atrozes de existência da gente de Gaza. Ninguém me contou, não sou vítima de nenhum preconceito contra Israel, um país que sempre defendi ... Eu vi com meus próprios olhos. E sinto-me enojado e sublevado pela miséria atroz, indescritível, em que mofam, sem trabalho, sem futuro, sem espaço vital, nas covas estreitas e imundas dos campos de refugiados ou nessas cidades apinhadas e cobertas pelo lixo, onde passeiam ratos à vista, essas famílias palestinas condenadas só a vegetar, a esperar que a morte venha por fim a essa existência sem esperança, de absoluta desumanidade, que é a sua. São esses pobres infelizes, crianças e velho e jovens, privados já de tudo o faz humana a vida, condenados a uma agonia tão injusta e tão larvar como a dos judeus nos guetos da Europa nazi, os que estão agora a ser massacrados pelos caças e os tanques de Israel, sem que isso sirva para aproximar um milímetro a ansiada paz. Pelo contrário, os cadáveres e rios de sangue destes dias só servirão para afastá-la e levantar novos obstáculos e semear mais ressentimento e raiva no caminho da negociação" [1]

Mas nada do que diga Vargas Llosa, e tantos outros, nos fará mossa: somos o povo eleito por Deus (ainda que os iludidos estado-unidenses também acreditem nisso), uma raça superior e os árabes são uma pestilência que deve ser removida da face da terra. Por isso construímos esse gigantesco muro na Cisjordânia, ainda pior do que erigiram em Berlim e que foi apropriadamente caracterizado como o "muro da infâmia". Nossos lobbies foram muito eficazes ao tornar invisível esta monstruosidade e ninguém fala do nosso "muro da infâmia". Reconheço que nossa traição aos ideais do judaísmo nos inquieta. Não era isto o que queriam os pais fundadores. Convertemo-nos numa máquina de usurpação e despojamento colonial que já não mantém nenhuma relação com nossa venerável tradição cultural. Alguns dizem que Israel é o judaísmo como Hitler era o cristianismo. Por isso é que por vezes nosso sonho é perturbado e as mortes e sofrimentos que causámos durante tanto anos – e que para sermos sinceros começaram muito antes de nascer o Hamas – acossam-nos como o fantasma de Hamlet. Mas retrocedemos horrorizados diante da possibilidade de uma paz que não queremos porque perderíamos os territórios arrebatados durante tantos anos, encorajaríamos a turbamulta árabe que nos rodeia e faríamos perder milhares de milhões de dólares aos nossos amigos do complexo militar-industrial estado-unidense, que é o verdadeiro poder nesse país, assim como aos seus sócios israelenses que também lucram com este estado de hostilidades permanentes. Por isso continuaremos nesta guerra até o fim, ainda que com os riscos que esta atitude possa desencadear.

Nota:

[1] Mario Vargas Llosa, "Morir en Gaza", El País (Madrid), 11 Enero 2009, en:http://elpais.com/diario/2009/01/11/opinion/1231628411_850215.html.


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