Mas a verdade é outra: Lopez Mendoza é qualquer coisa, menos um dissidente democrático. É líder de uma facção sediciosa da direita da Venezuela – entre cujos dirigentes se encontra a intragável Maria Corina Machado – que em fevereiro de 2014 se propôs a alterar pela força a ordem constitucional vigente no país e derrubar o governo venezuelano.
Os sequazes de López (a maioria deles mercenários pagos pelos EUA, segundo inapeláveis testemunhos que saíram recentemente à luz) fizeram uso de toda forma imaginável de violência, como incêndios de edifícios públicos e meios de transporte públicos e privados, ataques violentos a universidades e centros de saúde, barreiras nas ruas, espancamento de chavistas e assassinatos.
Como produto desses desmandos, perderam a vida quase 50 pessoas, a maioria delas chavistas ou pessoal das forças de segurança do Estado. López Mendoza foi preso pelo cometimento de tais crimes, incluindo vários de homicídio. Antes que um dissidente detido por suas ideias ou projetos políticos, o personagem de outrora é um delinquente que perpetrou crimes que em qualquer Estado se purgam com condenações extensas e, em alguns países, pena de morte (1).
Mesmo assim, para a imprensa do sistema López é um herói, um democrata perseguido por uma feroz tirania que na Venezuela teria violado todas as liberdades. Se esse personagem fizesse nos Estados Unidos o que fez em seu país seria encarcerado pelo resto da vida, em prisão de segurança máxima. É exatamente o que ocorreu a outro López, Oscar López Rivera, patriota da independência porto-riquenha, que por muito menos do que fez o “López ruim” está preso há 33 anos nos EUA. Para as rameiras midiáticas do império, este López, o bom, não merece uma linha: ao seu injusto encarceramento se agrega o castigo cotidiano do silêncio e a sistemática indiferença a sua condição.
O que fez López Rivera? (2)
Segundo a acusação que o levou à prisão: conspirar contra o governo dos EUA em sua qualidade de integrante da FALN (Forças Armadas da Libertação Nacional de Porto Rico). Como se sabe, essa ilha foi arrebatada da Espanha, junto com Cuba e Filipinas, com o traidor golpe de Washington na guerra de 1898, e permanece desde então sob uma condição colonial. A inabalável adesão dos “boricuas” a sua língua, costumes e cultura ao longo de meio século fez Washington lançar, entre 1948 e 1957, uma brutal ofensiva para “norte-americanizar” esse povo rebelde. Obedecendo, para sua desonra, uma ordem da Casa Branca, a legislatura porto-riquenha se afundou na ignomínia ao estabelecer que eram crimes contra o Estado possuir uma bandeira de Porto Rico, cantar músicas patrióticas porto-riquenhas ou falar a favor da independência da ilha.
Após quase dez anos de escárnio, essa política foi abandonada e a identidade nacional boricua saiu fortalecida. Quando tinha 14 anos, a família de Lopez se mudou a Chicago, e pouco depois ele foi recrutado para a guerra do Vietnã, de onde voltou condecorado com a Medalha de Bronze. Vinculado à FALN, em 1981 cai preso por roubo à mão armada, posse de arma de fogo não registrada e transporte através de via interestadual de veículo roubado, o que foi interpretado pela promotoria como parte de uma “conspiração subversiva” para expulsar pela força os EUA de Porto Rico.
A acusação que serviu para condenar López Rivera foi o estopim de uma série de bombas na área de Chicago, operação que não deixou vítimas fatais. Comentando esse acontecimento, um editorial do Chicago Tribune de 1980 reconheceu que essas bombas “foram postas e programadas para explodir com o único fim de danificar propriedades, não para ferir pessoas” e que o objetivo das FALN era “chamar a atenção para sua causa, em vez de derramar sangue”. O castigo que lhe impôs o juiz foi monstruoso: 55 anos de prisão! Para calibrar os escandalosos alcances da tremenda injustiça que passa por “justiça” nos EUA, a sentença média para um homicídio (que não houve no caso do López “bom”) é de 12 anos e meio.
Mas para López Rivera quadruplicaram a pena e o condenaram a 55 anos de cadeia. Em 1999, segue dizendo Shane Bauer na reportagem que fez para Mother Jones, o presidente Bill Clinton ofereceu clemência a López Rivera e outros independentistas que estavam presos. Esse oferecimento foi feito apesar dos protestos do FBI, do escritório do Promotor Geral dos Estados Unidos, do Escritório Federal de Prisões dos Estados Unidos e da própria esposa do presidente, Hillary Clinton, conhecida ave de rapina disfarçada de progressista, e que para o terror do planeta aspira suceder Barack Obama no trono imperial. É um gesto que o enaltece, e que o emparenta com Antonio Gramsci, quando, da cadeia, rejeitou a envenenada clemência oferecida por Mussolini. López rechaçou a proposta porque se exigia em troca que aceitasse outro crime que não tinha cometido, “conspiração para fugir”, e sancionado com pena muito menor.
Por isso até hoje segue na cadeira. Clinton podia ter lhe concedido um perdão presidencial ao terminar seu mandato, mas não o fez, intimidado pelo aparato repressivo de seu país e a insaciável sede de sangue de sua consorte, que, como se lembrará, estalou em risos ao saber do brutal linchamento de Muammar Kadafi. Tampouco o fez George W. Bush e tudo indica ser muito pouco provável que o fará Barack Obama, que se quisesse começar a ser merecedor do Prêmio Nobel da Paz deveria perdoá-lo já e enviar para casa os três lutadores antiterroristas cubanos (Gerardo Hernández, Antonio Guerrero y Ramón Labañino) e López Rivera, todos os quais jamais deveriam ter sido presos por defender tão nobres causas, sem prejudicar absolutamente ninguém (3).
Teve sorte de nascer na Venezuela o senhor Leopoldo López. Nos Estados Unidos, teriam lhe dado mais que 55 anos. O mais provável, dado que com sua ação foi autor intelectual dos distúrbios que ocasionaram várias mortes, era que sua causa fosse caracterizada como “conspiração subversiva seguida de mortes”. E terminaria seus dias recebendo uma injeção letal ou enviado à cadeira elétrica, diante as complicações que nos últimos tempos a primeira vem tendo.
Mas está na Venezuela e, no lugar de ser um criminoso, pela “conspiração subversiva seguida de mortes”, que o López bom não fez, mas ele sim, na mídia hegemônica e nos políticos intelectuais “bem-pensantes” é exaltado como um arcanjo da democracia, um guardião dos valores republicanos e um exemplo para o mundo. Pela enésima vez se põe de manifesto toda a hipocrisia e o discurso duplo do império e seus leva-traz na América Latina e Caribe. Tinha razão Sun Tzu quando assegurou que “toda guerra se baseia no engano”. E dado que estamos em guerra, terrorismo midiático, complô econômico, “golpes brancos”, “smart power”, e outras lindezas do estilo de mentiras e engano, estão na ordem do dia.
Por isso, o López ruim aparece com um santo e López bom, o patriota porto-riquenho e latino-americano que luta pela autodeterminação de seu povo, permanece em injusta prisão, invisibilizado pela “imprensa séria e objetiva”, durante 33 anos. Mas, claro, enquanto um goza de todas as prerrogativas que o império dispensa a seus peões, o outro é um incansável lutador anti-imperialista, sobre o qual recai não todo tipo de rigor da lei, mas os mais baixos instintos de vingança e castigos que se reservam a quem tem a ousadia de desafiar a prepotência dos Estados Unidos.
Notas:
1) Ver análise que faz Salim Lamrani em “Se a oposição venezuelana fosse francesa...”, em Rebelión, 14 de abril de 2014. A legislação estadunidense é ainda mais dura e contempla, para certos casos, pena de morte.
2) Uma informação atualizada sobre este caso se encontra na nota de Shane Bauer em “Mother Jones”, de 29 de maio de 2014. Pode se ler em http://www.motherjones.com/politics/2014/05/oscar-lopez-rivera-75-years-seditious-conspiracy
3) Cabe aclarar que até a data Washington teve êxito em evitar que o caso de Porto Rico seja reincorporado na agenda do Comitê de Descolonização das Nações Unidas, de onde foi excluído em 1952. De fato, a Corte Suprema dos EUA estabeleceu que “Porto Rico pertence, mas não faz parte dos EUA. “(You belong to us, but are not part of us!). Por isso, os cidadãos porto-riquenhos não podem eleger o presidente dos EUA nem candidatos para ocupar suas bancas na Câmara dos Representantes ou no Senado dos EUA. Só se admite um “delegado comissionado” sem direito a voto, mesmo assim, não no Senado.
Traduzido por Gabriel Brito, do Correio da Cidadania.