«Tinha uma alternativa» disse o jornalista, «injecção letal ou pelotão de fuzilamento». «Caramba!» disse a apresentadora. Intervalo para uma lufada de spots publicitários de comida de plástico, pastas de dentes, bandas gástricas, o novo Cadillac. Seguiu-se a guerra no Afeganistão, apresentada por um correspondente com colete anti-bala. «Eh!, está calor», disse no ecrã dividido. «Tenha cuidado», disse a apresentadora. «E agora vejam». Eram imagens reais em que uma câmara mostrava um homem incomunicável numa cela.
No dia seguinte cheguei ao Pentágono para uma entrevista com um dos altos funcionários que trabalha na guerra para o presidente Obama. Tive de percorrer um longo caminho por corredores decorados com fotos de generais e almirantes engalanados de galões. A sala de reuniões foi feita especialmente para isso. Era azul, de um frio árctico, sem janelas nem qualquer outra coisa para além de uma bandeira e duas cadeiras: acessórios que criavam a sensação de austeridade. A última vez que estive numa sala idêntica no Pentágono, um coronel chamado Hum interrompeu bruscamente a minha entrevista com outro funcionário que trabalha na guerra quando perguntei porque é que tantos civis inocentes morriam no Iraque e no Afeganistão. Então eram milhares; agora são mais de um milhão. «Desligue o gravador»!, mandou.
Desta vez não havia nenhum coronel Hum, só uma delicada recusa de recolher testemunhos de soldados, pois era «uma coisa comum» que se ordenasse aos soldados que «matassem todos os filhos de p...». A Associeted Press disse que o Pentágono gasta 4.700 milhões em relações públicas: isto é, para ganhar os corações e as mentes não de membros das tribos afegãs recalcitrantes, mas de estadunidenses. A isto chama-se «domínio da informação».
O poder imperial estadunidense flui através de uma cultura mediática onde a palavra imperial é um anátema. Mencioná-la é uma heresia. As campanhas coloniais são realmente «guerras de percepção», escreveu o actual comandante David Petraus, onde os media popularizam os termos e as condições. «Narrativa» é a palavra acreditada porque é pós-moderna e carente de contexto e verdade. A narrativa do Iraque é que a guerra está ganha, e a narrativa do Afeganistão é que esta é uma «guerra boa».
Que nada disto seja verdade pouca importância tem. Promovem a «grandiosa narrativa» de uma ameaça constante e a necessidade da guerra permanente. «Vivemos num mundo de ameaças escalonadas e entrecruzadas», escreveu o célebre colunista do New York Times, Thomas Friedman, «que, a qualquer momento, tem a capacidade de derrubar a imagem do país».
Friedman apoia o ataque ao Irão, cuja independência é intolerável. É a psicopatia de uma grande potência que Martin Luther King descreveu como «fornecedora da violência ao mundo». Mataram-no a tiro.
Em toda a cultura popular corporativa se aplaude a psicopatia, desde o espectáculo televisivo de um homem que escolhe o pelotão de fuzilamento em vez da injecção letal, a Terra Hostil [Hurt Locker], filme vencedor do Óscar, e o aplaudido Restrepo, um novo documentário belicista. Os realizadores de ambos os filmes negam e dignificam a violência da invasão como «apolítica». No entanto, por trás da fachada caricatural há um propósito sério. Os EUA estão envolvidos com forças militares em 75 países. Há mais de 900 bases militares dos EUA em todo o mundo, muitas delas junto às portas das fontes de combustíveis fósseis.
Mas há um problema. A maioria dos estadunidenses opõe-se a estas guerras e aos milhares de milhões que elas custam. Que a lavagem do cérebro fracasse tão amiúde é a maior virtude dos EUA. Isto deve-se, frequentemente, a corajosos inconformistas, particularmente os que emergem da margem do poder. Em 1971, o analista militar Daniel Ellsberg divulgou documentos conhecidos como «papéis do Pentágono» que desmentiram quase tudo o que dois presidentes dos EUA tinham afirmado sobre o Vietname. Muitas destas pessoas com acesso a informação nem sequer são renegadas. Tenho uma secção na minha agenda repleta de nomes de ex-agentes da CIA que me expressaram as suas opiniões. Isto é impossível acontecer na Grã-Bretanha.
Em 1993, C. Philip Liechty, o oficial de operações da CIA em Jacarta nos dias da invasão assassina de Timor Leste pela Indonésia, descreveu-me como o presidente Gerald Ford e o secretário de Estado Henry Kissinger tinham dado «luz verde» ao ditador Suharto e forneceram secretamente as armas e a logística que este necessitava. Com a chegada dos primeiros relatórios ao seu escritório começou a mudar de opinião. «Fui enganador», disse. «Senti-me mal».
Melvin Goodman é agora um erudito na Universidade Johns Hopkins em Washington. Esteve na CIA mais de 40 anos e chegou a analista principal sobre a União Soviética. Há dias, quando nos encontrámos, descreveu o trabalho durante a Guerra Fria como uma série de exageros da «agressividade» soviética que ignoravam, intencionalmente, o conhecimento da inteligência de que os soviéticos estavam empenhados em evitar a qualquer preço uma guerra nuclear. Arquivos oficiais desclassificados de ambos os lados do Atlântico confirmam este ponto de vista. «O que importava aos partidários da linha dura em Washington», disse, «era em que medida uma ameaça podia ser explorada». O actual secretário da Defesa, Robert gates, como director-adjunto da CIA nos anos oitenta, exagerou permanentemente a «ameaça soviética» e, disse, Goodman faz agora o mesmo «com o Afeganistão, a Coreia do Norte e o Irão».
Pouco mudou. Nos EUA, em 1939, W.H.Auden escreveu:
«enquanto morrem as grandes esperanças
De uma década má e desonesta:
Ondas de rancor e medo
Correm sobre as iluminadas
E obscurecidas terras do planeta
Oprimindo nossas vidas privadas;
Assomam fora do espelho
A cara do Imperialismo
E do erro internacional.»
Tradução de José Paulo Gascão.
Fonte: O Diário.