Os protestos que derrubaram Yanukovich e o seu gangue foram desencadeados pela opção do governo por priorizar a sua relação com a Rússia sobre a integração com a União Europeia. Como era de se esperar, muitos esquerdistas reagiram à noticia dos protestos massivos com o seu habitual tratamento paternalista e racista dos pobres ucranianos: o quão iludidos estão, ainda idealizando a Europa, incapazes de ver que ela está em declínio, e que se juntar à União Europeia só fará da Ucrânia uma colônia econômica da Europa Ocidental, eventualmente levada a posição equivalente à da Grécia… O que esses esquerdistas ignoram é que os ucranianos estão longe de estarem cegos sobre a realidade da UE: plenamente conscientes dos seus problemas e disparidades, a sua mensagem era simplesmente de que a sua própria situação é muito pior. Os problemas da Europa são ainda problemas de rico – lembre-se que, apesar da terrível situação da Grécia, refugiados africanos ainda desembarcam lá en masse, provocando a ira dos patriotas direitistas.
Mas muito mais importante é a pergunta: o que representa a “Europa” a que se referem os manifestantes? Ela não pode ser reduzida a uma única visão: abarca o foco completo, desde elementos nacionalistas e inclusive fascistas até a ideia do que Étienne Balibar chama de égaliberté, “liberdade-na-igualdade” – a contribuição singular da Europa ao imaginário político global, mesmo que seja hoje mais e mais traída pelas instituições europeias –, e ainda, entre esses dois pólos, a ingênua confiança no capitalismo liberal-democrático. O que a Europa deveria ver nos protestos ucranianos é a sua própria imagem, no que tem de melhor e de pior.
O nacionalismo ucraniano de direita é parte de uma renovada onda populista anti-imigrante que se apresenta como a defesa da Europa. O perigo nessa nova direita foi claramente percebida um século atrás por G.K Chesterton que, em seu Ortodoxia, expôs o impasse fundamental dos críticos da religião: “Homens que começam a combater a Igreja em virtude da liberdade e da humanidade acabam por deitar fora a liberdade e a humanidade só para poderem com isso combater a Igreja.”
O mesmo não vale para os próprios porta-vozes da religião? Quantos defensores fanáticos da religião não começaram a atacar ferozmente a cultura contemporânea secular e acabaram a trair toda e qualquer experiência religiosa significativa? E o mesmo não vale também para a recente onda de defensores da Europa contra a ameaça imigrante? No seu zelo em proteger o legado cristão, os novos fanáticos estão dispostos a trair o verdadeiro coração desse legado.
Então o que fazer numa situação como essa? Os liberais do mainstreem estão a dizer-nos que, quando os valores democráticos básicos estão sob ameaça por fundamentalistas étnicos ou religiosos, devemos todos nos unir sob a agenda liberal-democrática de tolerância cultural, salvar o que pode ser salvo, e renunciar sonhos maiores de uma transformação social mais radical. Então, como fica o sonho europeu do capitalismo liberal-democrático? Não se pode saber, a certo, o que espera a Ucrânia no interior da UE, a começar pelas medidas de austeridade. Todos sabemos da conhecida piada da última década da União Soviética sobre Rabinovitch, um judeu que quer emigrar… O burocrata do escritório de emigração pergunta-lhe pela razão, e Rabinovitch responde: “Por dois motivos. O primeiro é que temo que na União Soviética os comunistas perderão poder, e que o novo governo colocará toda a culpa pelos seus crimes em nós, judeus – haverá, mais uma vez, uma política assente no anti-semitismo…” “Mas”, interrompe o burocrata, “isso é treta, nada pode mudar na União Soviética: o poder dos comunistas durará para sempre!” “Bem”, responde Rabinovitch calmamente, “esse é o meu segundo motivo”.
Podemos facilmente imaginar uma conversa semelhante entre um ucraniano crítico e um administrador financeiro da UE. O ucraniano reclama: “existem dois motivos pelas quais estamos em pânico aqui na Ucrânia. Primeiro, tememos que a UE irá simplesmente abandonar-nos à pressão russa e deixar que a nossa economia caia por água abaixo.” O administrador da UE interrompe-o: “Mas pode confiar em nós, não vamos abandonar-vos: vamos controlar-vos rigorosamente e aconselhá-los no que fazer”. “Bem”, responde o ucraniano calmamente, “esse é o meu segundo motivo”.
Então sim, os manifestantes da praça Maidan foram heróis, mas a verdadeira luta começa agora: a luta pelo que será a nova Ucrânia. E essa luta será muito mais dura do que a luta contra a intervenção de Putin. A questão não é se a Ucrânia é digna ou não da Europa, se é boa o suficiente para entrar para a UE, mas se a Europa de hoje é digna das aspirações mais profundas dos ucranianos. Se a Ucrânia for acabar como uma mistura de fundamentalismo étnico e capitalismo liberal, com oligarcas controlando a cena, será um quadro tão europeu quanto o é o da Rússia (ou da Hungria) hoje. Comentadores políticos alegaram que a UE não apoiou a Ucrânia suficientemente no seu conflito com a Rússia, que a sua resposta à ocupação russa e à anexação da Crimeia foi pouco enfática. Mas há outro tipo de apoio que está faltando ainda mais: oferecer à Ucrânia uma estratégia factível de como se desvencilhar do seu impasse sócio-econômico. Para fazer isso, a Europa deverá primeiro transformar-se e renovar o seu compromisso com o núcleo emancipatório do seu legado.
Nas suas Notas para a definição de cultura, o grande conservador T.S. Eliot comentou que há momentos em que a única escolha é aquela entre o sectarismo e a descrença, em que a única forma de manter uma religião viva é efetuar uma fratura sectária no seu corpo principal. Essa é a nossa única chance hoje: é somente através de uma “fratura sectária” do cadáver decadente da velha Europa que poderemos manter vivo o legado europeu de égaliberté. Tal fratura deverá tornar problemáticas as próprias premissas do que tendemos a aceitar como destino, como dados não-negociáveis de nosso estado – o fenômeno comumente designado como Nova Ordem Mundial e a necessidade, através da “modernização”, de nos acomodar a ele.
Dito de forma direta: se a Nova Ordem Mundial que está surgindo for o destino não-negociável de todos nós, então a Europa está perdida e portanto a sua única saída é assumir o risco e quebrar esse feitiço do nosso destino. Somente numa tal nova Europa poderá a Ucrânia encontrar o seu lugar. Não são os ucranianos que devem aprender com a Europa, é a própria Europa que deve aprender a incorporar o sonho que motivou os manifestantes da praça Maidan.
Que mensagem receberão os ucranianos das eleições europeias?
Tradução: Artur Renzo.
Fonte: Blog da Boitempo.