A Nicarágua é um dos mais pobres países sobre a Terra, com menos população do que Gales, mas na década de 1980, sob os reformistas sandinistas, ela foi considerada em Washington como uma “ameaça estratégica”. A lógica era simples; se o mais fraco escorregar, estabelecendo um exemplo, quem mais tentaria a sua sorte?
O grande jogo da dominância não dá imunidade nem mesmo ao mais leal “aliado” dos EUA. Isto é demonstrado por talvez os menos conhecido dos golpes de Washington – na Austrália. A história deste golpe esquecido é uma lição saudável para aqueles governos que acreditam que uma “Ucrânia” ou um “Chile” não lhes podiam acontecer.
A deferência da Austrália para com os Estados Unidos faz a Grã-Bretanha, em comparação, parecer um traidor. Durante a invasão americana do Vietname – a qual a Austrália implorou para aderir – um responsável em Canberra divulgou uma queixa rara a Washington: que os britânicos sabiam mais acerca dos objectivos estado-unidenses naquela guerra do que os seus camaradas de armas nos antípodas. A resposta foi suave: “Temos de manter os britânicos informados para mantê-los felizes. Vocês estão connosco seja o que for que aconteça”.
Esta declaração foi brutalmente posta de lado em 1972 com a eleição do governo trabalhista de Gough Whitlam. “Embora não considerado como de esquerda, Whitlam – agora com 98 anos – era um social-democrata independente, orgulhoso, proprietário e de extraordinária imaginação política. Ele acreditava que uma potência estrangeira não deveria controlar os recursos do seu país e ditar a sua política económica e externa. Ele propôs “recuperar o controlo” e falar com uma voz independente a Londres e Washington.
No dia seguinte à sua eleição, Whitlam ordenou que a sua equipe não deveria ser “verificada ou perturbada” pela organização de segurança da australiana, ASIO – então, como agora, devedora de favores à inteligência anglo-americana. Quando seus ministros condenaram publicamente a administração Nixon/Kissinger como “corrupta e bárbara”, Frank Snepp, um oficial da CIA naquele tempo estacionado em Saigão, disse posteriormente: “Disseram-nos que os australianos podiam muito bem ser encarados como colaboradores dos norte vietnamitas”.
Whitlam quis saber se e porque a CIA estava a dirigir uma base de espionagem em Pine Gap, próximo de Alice Springs, ostensivamente uma instalação conjunta australiana/americana. Pine Gap é um aspirador de pós gigante o qual, como revelou recentemente o denunciante Edward Snowden, permite aos EUA espiar sobre tudo. Na década de 1979, a maior parte dos australianos não fazia ideia de que este enclave estrangeiro secreto colocava seu país na linha de frente de uma potencial guerra nuclear com a União Soviética. Whitlam sabia claramente o risco pessoal que estava a assumir – como demonstram as minutas de uma reunião com o embaixador dos EUA. “Tente apertar-nos ou fazer-nos saltar”, advertiu ele, “[e Pine Gap] tornar-se-á um pomo de discórdia”.
Victor Marchetti, o oficial a CIA havia ajudado a montar Pine Gap, contou-me depois: “Esta ameaça de fechar Pine Gap provocou apoplexia na Casa Branca. As consequências eram inevitáveis … uma espécie de Chile foi posto em movimento”.
A CIA havia acabado de ajudar o general Pinochet a esmagar o governo democrático de outro reformador, Salvador Allende, no Chile.
Em 1974, a Casa Branca enviou Marshall Green para Canberra como embaixador. Green era um arrogante, uma figura muito experiente e sinistra no Departamento de Estado que trabalhava nas sombras do “estado profundo” (”deep state”) da América. Conhecido como o “mestre do golpe”, ele havia desempenhado um papel central no golpe de 1965 contra o presidente Sukarno na Indonésia – o qual custou um milhão de vidas. Um dos seus primeiros discursos na Austrália foi ao Australian Institute of Directors – descrito por um membro alarmado da audiência como “um incitamento aos líderes de negócios do país a levantarem-se contra o governo”.
As mensagens top-secret de Pine Gap eram descodificadas na Califórnia por um empreiteiro da CIA, a TRW. Um dos descodificadores era o jovem Christopher Boyce, um idealista que, perturbado pelo “engano e traição de um aliado”, se tornou um denunciante. Boyce revelou que a CIA havia-se infiltrado na elite política e sindical australiana e referia-se ao governador-geral da Austrália, sir John Kerr, como “o nosso homem Kerr”.
Com a sua cartola negra e fato coberto de medalhas, Kerr era a corporificação do império. Ele era o vice-rei australiano da Rainha da Inglaterra num país que ainda a reconhece como chefe de estado. Seus deveres eram cerimoniais, mas Whitlam estava inconsciente, ou preferiu ignorar, os antigos laços de Kerr com a inteligência anglo-americana.
O governador-geral era um membro entusiasta da Australian Association for Cultural Freedom, descrita por Jonathan Kwitny do Wall Street Journal, no seu livro, The Crimes of Patriots, como uma elite, um grupo em que se entra só por convite … revelado no Congresso como sendo fundado, financiado e geralmente dirigido pela CIA”. A CIA “pagava a viagem de Kerr, construía seu prestígio … Kerr continuava a ir à CIA por dinheiro”.
Em 1975, Whitlam descobriu que o MI6 britânico estava desde há muito a operar contra o seu governo. “Os britânicos estavam realmente a descodificar mensagens secretas vindas ao meu gabinete de negócios estrangeiros”, disse ele posteriormente. Um dos seus ministros, Clyde Cameron, contou-me: “Sabíamos que o MI6 plantava microfones na reuniões do gabinete para os americanos”. Em entrevistas na década de 1980 com o jornalista americano de investigação Joseph Trento, responsáveis executivos da CIA revelaram que o “problema Whitlam” fora discutido “com urgência” pelo director da CIA, William Colby, e o chefe do MI6, sir Maurice Oldfield, e que foram feitos “arranjos”. Um vice-director a CIA disse a Trento: “Kerr fez o que lhe disseram para fazer”.
Em 1975, Whitlam soube de uma lista secreta de pessoal da CIA na Austrália mantida pelo chefe do Australian Defense Department, sir Arthur Tange – um mandarim profundamente conservador com um poder territorial sem precedentes em Canberra. Whitlam pediu para ver a lista. Sobre ela está o nome, Richard Stallings que, sob cobertura, havia montado Pine Gap como uma instalação provocadora da CIA. Whitlam agora tinha a prova de que estava à procura.
Em 10 de Novembro de 1975, foi-lhe mostrada uma mensagem telex top secret enviada pelo ASIO em Washington. Esta provinha de Theodore Shackley, chefe da Divisão da Ásia Oriental da CIA e uma das mais infames figuras desovadas pela Agência. Shackley fora chefe da operação da CIA com base em Miami para assassinar Fidel Castro e chefe de estação no Laos e no Vietname. Havia recentemente trabalhado no “problema Allende”.
A mensagem de Shackley foi lida a Whitlam. Incrivelmente, ela dizia que o primeiro-ministro da Austrália era um risco de segurança no seu próprio país.
No dia anterior Kerr havia visitado a sede do Defense Signalas Directorate, o NSA da Austrália cujos laços com Washington eram, e permanecem, estreitos. Foi informado sobre a “crise de segurança”. Pediu então uma linha segura e passou 20 minutos a conversar em voz baixa.
Em 11 de Novembro – o dia que Whitlam devia informar o Parlamento acerca da presença secreta da CIA na Austrália – foi convocado por Kerr. Invocando a arcaica “reserva de poderes” do vice-rei, Kerr demitiu o primeiro-ministro democraticamente eleito. O problema estava resolvido.