Os historiadores, tal como os jornalistas, desempenham o seu papel mais honroso quando rompem mitos. As veias abertas da América Latina (1971), de Eduardo Galeano, alcançaram isto para o povo de um continente cuja memória histórica fora colonizada e transmutada pela dominância dos Estados Unidos.
A "boa" guerra mundial de 1939-45 proporcionou um inesgotável banho ético no qual as conquistas do ocidente em "tempo de paz" são lavadas. A investigação histórica desmistificadora atravessa-se no caminho. 1939: the countdown to war (2009), de Richard Overy, é uma explicação devastadora da razão porque o cataclismo não era inevitável.
Agora mais do que nunca, precisamos destas limpezas de cortinas de fumo. Os poderosos gostariam que acreditássemos que pessoas como Thompson, Zinn e Galeano já não são necessárias: que vivemos, como disse a revista Time, "num eterno presente", no qual a reflexão é limitada ao Facebook e a narrativa histórica é a reserva de Hollywood. Isto é um enorme logro. Em Mil novecentos e oitenta e quatro, George Orwell disse: "Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado".
O povo da Coreia entende isto bem. A carnificina na sua península a seguir à segunda guerra mundial é conhecida como a "guerra esquecida", cujo significado para toda a humanidade foi há muito suprimido nas histórias militares da boa guerra fria contra o mal.
Acabei de ler The Korean War: A History de Bruce Cumings (2010), professor de História na Universidade de Chicago. Antes vi a entrevista de Cumings no extraordinário filme The Ghosts of Jeju , de Regis Trembley, o qual documenta o levantamento do povo da ilha de Jeju, na Coreia do Sul, em 1948 e a campanha actual dos ilhéus para travar a construção de uma base com mísseis americanos apontada provocatoriamente contra a China.
Tal como a maior parte dos coreanos, as famílias de agricultores e pescadores protestavam contra a divisão sem sentido da sua nação entre Norte e Sul em 1945 – uma linha traçada ao longo do paralelo 38 por um oficial americano, Dean Rusk, o qual havia "consultado um mapa cerca da meia noite no dia seguinte a termos obliterado Nagasaki com uma bomba atómica", escreveu Cumings. O mito de uma "boa" Coreia (o Sul) e uma "má" Coreia (o Norte) fora inventado.
De facto, a Coreia, tanto o Norte como o Sul, tem uma notável história popular de resistência ao feudalismo e à ocupação estrangeira, nomeadamente ao Japão no século XX. Quando os americanos derrotaram o Japão em 1945, eles ocuparam a Coreia e a seguir estigmatizaram aqueles que haviam resistido aos japoneses como "comunas". Na ilha Jeju, foram massacradas até 60 mil pessoas por milícias apoiadas, dirigidas e, em alguns casos, comandadas por oficiais americanos.
Esta e outras atrocidades não relatadas foram um prelúdio "esquecido" para a Guerra da Coreia (1950-53) na qual foram mortas mais pessoas do que as que os japoneses mataram durante toda a segunda guerra mundial. Cumings dá um registo espantoso do grau de destruição das cidades do Norte: Piongyang 75 por cento; Sariwon 95 por cento; Sinanju 100 por cento. Grandes barragens no Norte foram bombardeadas a fim de desencadear tsunamis internos. Armas "anti-pessoal", tais como napalm, foram testadas sobre civis. A soberba investigação de Cumings ajuda-nos a entender porque a Coreia do Norte de hoje parece tão estranha: um anacronismo mantido devido a uma duradoura mentalidade de cerco.
"A maquinaria do bombardeamento incendiário sem obstáculos assolou o Norte durante três anos", escreveu ele, "resultando numa terra devastada e um povo a sobreviver como a toupeira que aprendeu a amar os abrigos de caves, montanhas, túneis e fortificações, um mundo subterrâneo que se tornou a base para a reconstrução de um país e um recordatório para construir um ódio tenaz entre o grosso da população. A sua verdade não é fria, antiquada, de conhecimento inútil". Cumings cita Virginia Wolf sobre como o trauma desta espécie de guerra "confere memória".
O líder guerrilheiro Kim Il Sung começou a combater os militaristas japoneses em 1931. Todas as características do regime que ele fundou – "comunista, estado vilão, inimigo malévolo" – decorrem de uma resistência implacável, brutal e heróica: primeiro contra o Japão, depois os Estados Unidos, os quais ameaçaram atacar com armas nucleares o entulho que os seus bombardeiros haviam deixado. Cumings denuncia como propaganda a noção de que Kim Il Sung, líder da Coreia "má", era um fantoche de Moscovo. Em contraste, o regime que Washington inventou no Sul, a Coreia "boa", era dirigida em grande medida por aqueles que haviam colaborado com o Japão e a América.
A Guerra Coreia tem uma distinção não reconhecida. Foi nas ruínas ardentes da península que os EUA se tornaram o que Cumings chama "um império de arquipélago". Quando a União Soviética entrou em colapso na década de 1990, era como se todo o planeta fosse declarado americano.
Mas há a China agora. A base que actualmente está a ser construída na ilha Cheju confrontará a metrópole chinesa de Shangai, a menos de 300 milhas [483 km] de distância, e o cerne industrial do único país cujo poder económico é provável que ultrapasse o dos EUA. "A China", disse o presidente Obama num documento interno que escapou, "é a nossa ameaça estratégica que emerge rapidamente". Em 2020, quase dois terços de todas as forças navais estado-unidenses no mundo serão transferidas para a região Ásia-Pacífico. Num arco que se estende desde a Austrália ao Japão e mais além, a China será cercada por mísseis dos EUA e seus aviões armados com artefactos nucleares. Será que esta ameaça a todos nós também será "esquecida"?