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Immanuel Wallerstein

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Em coluna

Espionagem do governo dos EUA

Immanuel Wallerstein - Publicado: Quinta, 03 Outubro 2013 23:11

As fugas de informação minaram a legitimidade do governo dos EUA e é isto que lhes dói, e é por isso que o governo está a ser tão vingativo com os responsáveis por essas fugas.


A espionagem é uma eterna atividade dos governos. Antes, espiavam principalmente outros governos. Hoje, espiam toda a gente, e com isso quero dizer toda a gente mesmo! Todos recentemente tomamos conhecimento, graças às fugas de informação, à Wikileaks e ao jornal britânico The Guardian, o quanto é extenso o alcance dos Estados Unidos, que aparentemente tem o mais abrangente sistema de espionagem de qualquer governo do mundo, em particular o da Agência de Segurança Nacional (NSA).

Por mais que possa parecer estranho aos espiões, muitas pessoas comuns que não são espias nem estão envolvidas em atividades ilegais ficaram surpreendidas por saber que a sua privacidade foi amplamente invadida, e não gostaram da experiência.

O que tem feito a NSA é o que se chama de mining metadata. Trata-se de fazer com que os serviços que transmitem e-mails e chamadas telefónicas entreguem à NSA todos e quaisquer registos que possuam para que a agência analise os “padrões” que supostamente revelariam atividade “terrorista” real ou potencial.

Supostamente, o elemento inicial que suscitaria a suspeita seria alguma comunicação entre alguém fora dos Estados Unidos e uma pessoa dentro deste país. Contudo, este critério depois foi alargado para incluir todas as comunicações entre a pessoa no interior dos Estados Unidos e todas as outras. E logo incluiu todas as comunicações entre estes “outros” e os outros com quem se comunicam. Chegados a este ponto, estamos já a falar de uma rede que inclui virtualmente toda a população dos Estados Unidos.

A justificação legal para esta atividade é a secção 215 do Patriot Act, que permite ao FBI pedir uma autorização para produzir “resultados tangíveis”, no sentido de proteger contra o “terrorismo internacional”. A autorização é adjudicada (sempre com sucesso) pelo Tribunal FISA (Foreign Intelligence Surveillance, Vigilância de Espionagem Externa). Os critérios de julgamento e os argumentos usados pelo governo diante do Tribunal são secretos. Foi esta hoje extensa atividade que revelou Edward Snowden, e que causou todo o escândalo. Para alguns, as revelações foram uma surpresa completa. Para outros, apenas confirmaram o que há muito se suspeitava. Para o governo, foram um grande embaraço.

Houve três principais reações às revelações. A primeira foi a do governo dos EUA. Enquanto o presidente Barack Obama afirmava que o debate sobre estas questões era desejável, e prometia algum aumento de “transparência” no processo de decisão, também processava Snowden da forma mais dura possível, procurando trazê-lo para um tribunal norte-americano para ser julgado e severamente punido.

A segunda grande reação foi a de outros governos pelo mundo afora, que descobriram que eram um objeto ativo da espionagem dos EUA (algo que evidentemente já sabiam). Ao mesmo tempo, as revelações de Bradley Manning e de Edward Snowden juntas também revelaram o grau de cooperação entre os governos da Europa ocidental e do Japão com as operações da NSA.

Mas a mais interessante reação ocorreu no Congresso dos EUA. Até então, a oposição a essas atividades pelos deputados fora bastante marginal. Subitamente, tornou-se de larga escala. Dois membros da Câmara de Representantes, Justin Amash e John Conyers, juntaram forças para propor uma medida que teria restringido a “coleta indiscriminada” destes registos.

Há duas coisas a assinalar acerca da emenda Amash-Conyers. Justin Amash é um republicano de extrema-direita, um chamado republicano libertário. John Conyers é um proeminente e veterano membro da ala “progressista” (ou “esquerda”) do Partido Democrata. A segunda coisa a notar é que foram confrontados por outra dupla inusitada – o presidente Obama e o presidente da Câmara de Representantes, John Boehner.

Era o “establishment” contra os “extremos”. A votação foi 205 a favor (94 republicanos e 111 democratas) e 217 contra ( 134 republicanos e 83 democratas) com 12 abstenções.

A derrota da emenda só foi garantida através de um lóbi mais intenso de Obama e Boehner. Além disso, e mais importante, o próprio autor da Secção 215, o deputado James Sensenbrenner (republicano do Wisconsin), denunciou asperamente o governo por não ter posto em prática a intenção do que ele escreveu. Disse que a menção aos registos “relevantes” tinha a intenção de limitar a autoridade do governo, não de ampliá-la. Também recordou ao “establishment” que a cláusula expira em 2015 e disse: “A menos que se considere que há um problema, ela não vai ser renovada”.

Como ficámos? O governo (seja democrata ou republicano) tentará suavizar a sua retórica em relação aos dissidentes, apesar de continuar a invadir a privacidade de toda a gente. Usarão (ou criarão) conspirações terroristas para justificá-lo. Mas as fugas de informação minaram a sua legitimidade e é isto que lhes dói, e é por isso que o governo está a ser tão vingativo com os responsáveis por essas fugas.

Será que alguma coia como a emenda Amash-Conyers será aprovada em breve? É difícil dizer, mas bastante possível. E se for aprovada, o que acontece? Bem, depende um pouco de quem estiver no poder. Será que Amash seria tão duro em relação a um putativo presidente Rand Paul? Possivelmente não. O que podemos dizer, não obstante, é que a legitimidade e a autoridade do governo dos EUA, internamente, erodiu-se gravemente. Quando se junta isto o grave e contínuo declínio da legitimidade e autoridade geoestratégica, os Estados Unidos começam a parecer um dos países menos estáveis no sistema-mundo, não um dos seus alicerces.

Comentário nº 359, 15 de agosto de 2013

Tradução, revista pelo autor, de Luis Leiria para o Esquerda.net


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