A palavra “regime” adquiriu na ciência política uma conotação profundamente negativa, visto que não estava presente em sua formulação original. Até meados do século 20, se falava do “regime feudal”, de um “regime monárquico” ou de um “regime democrático” para aludir ao conjunto de leis, instituições e tradições políticas e culturais que caracterizaram um sistema político.
Mas com a Guerra Fria e, depois, com a contrarrevolução neoconservadora, o vocábulo mudou completamente de significado. Em seu uso atual, a palavra é empregada para estigmatizar governos ou Estados que não se ajoelhem ante os ditados de Washington, os quais, por isso mesmo, são qualificados de autoritários e, em não poucos casos, sangrentas tiranias.
Não obstante, uma olhada sóbria em relação ao assunto comprovaria a existência de Estados inequivocamente despóticos que, mesmo assim, os portavozes da direita e o imperialismo jamais classificarão como “regimes”. Na conjuntura atual, proliferam analistas ou jornalistas (inclusive alguns “progres”, meio distraídos) que parecem não ter muitos problemas em aceitar o uso da linguagem estabelecida pelo império. O governo sírio é o “regime de Bashar al-Assad”; e a mesma desqualificação se utiliza na hora de falar dos países bolivarianos. Na Venezuela, o que há é um “regime chavista”; no Equador, “regime Correa”; já a Bolívia, encontra-se submetida aos caprichos do “regime de Evo Morales”.
O fato de que esses três países tenham desenvolvido instituições e formas de protagonismo popular e funcionamento democrático, superiores às existentes nos EUA e na grande maioria dos pauses do capitalismo desenvolvido, é olimpicamente ignorado. Não são amigos dos Estados Unidos e, portanto, seus sistemas políticos são “regimes”.
Os dois pesos e duas medidas aplicados nestes casos evidenciam quando se observa que as infames monarquias petroleiras do Golfo, muito mais despóticas e brutais que o “regime” sírio, jamais são estigmatizadas com a palavrinha em questão. Fala-se, por exemplo, do governo de Abdullah bin Abdul Aziz, mas nunca do “regime” saudita, apesar de neste país não existir parlamento, mas uma “Assembleia Consultiva”, cujos membros são designados pelo monarca e seus parentes e amigos; os partidos políticos estão explicitamente proibidos e o governo é exercido por uma dinastia que se perpetua no poder há décadas.
Exatamente o mesmo ocorre com o Catar, apesar de que nem de longe o New York Times ou os meios hegemônicos da América Latina e Caribe cogita falar do “regime saudita” ou do “regime catariano”. A Síria, em compensação, é um “regime”, apesar de ser um Estado laico no qual até pouco tempo atrás conviviam diversas religiões, existindo partidos legalmente reconhecidos e um congresso unicameral, com representações da oposição. Mas ninguém tira o manto de “regime”. Em outras palavras, um governo amigo, aliado ou cliente dos Estados Unidos, por mais opressivo ou violador dos direitos humanos que seja, nunca vai ser caracterizado como um “regime” pelo aparato de propaganda do sistema. Em troca, governos como os do Irã, Cuba, Venezuela, Bolívia, Nicarágua, Equador e vários mais são invariavelmente caracterizados dessa maneira (1).
Para comprovar de modo ainda mais contundente a tergiversação ideológica que carregam essas caracterizações dos sistemas políticos, basta recordar a forma que os publicitários da direita tipificam o governo dos Estados Unidos, considerado o “non plus ultra” da realização democrática. Isso apesar de, há pouco tempo, o ex-presidente James Carter ter dito que seu país “não tem uma democracia que funcione”.
O que há, na realidade, é um Estado policial, muito habilmente dissimulado, que exerce uma permanente e ilegal vigilância sobre a sua própria cidadania e que o mais importante que fez nos últimos trinta anos foi permitir ao 1% da população enriquecer como nunca antes, à custa do estancamento da renda de 90% da população. Na mesma linha crítica da “democracia” estadunidense (na realidade, uma cínica plutocracia) se encontra a tese do grande filósofo político Sheldon Wolin, que caracterizou o regime imperante em seu país como “um totalitarismo invertido”. Segundo este autor, “o totalitarismo invertido... é um fenômeno que... representa fundamentalmente a maturidade política do poder corporativo e a desmobilização política da sociedade (2).
Em outras palavras, a consolidação da dominação burguesa em mãos dos grandes oligopólios e a desativação política das massas, estimulando a apatia política, o abandono da – e o desdém pela – vida pública, com a fuga privatista até um consumismo desorbitado, somente sustentado por um ainda mais desenfreado endividamento. O resultado: um “regime” totalitário de novo tipo. Uma peculiar “democracia”, em suma, sem cidadãos nem instituições, e na qual o aterrador peso do “establishment” esvazia de todo conteúdo o discurso e as instituições da democracia, transformadas por isso mesmo em uma salada sem gosto e sem graça, incapaz de garantir a soberania popular. Ou de tornar real a velha fórmula de Abraham Lincoln, quando definiu a democracia como “o governo do povo, pelo povo e para o povo”.
Produto dessa gigantesca operação de falsificação da linguagem, o Estado norte-americano é concebido como uma “administração”, isto é, uma organização que em função de regras e normas claramente estabelecidas gerencia a coisa pública com transparência, imparcialidade e apego ao mandato da lei. Na realidade, como assegura Noam Chomsky, nada disso é verdade. Os Estados Unidos são um “Estado Canalha”, que viola como nenhum outro a legalidade internacional, fazendo o mesmo com alguns dos direitos e leis mais importantes do país.
Assim demonstram, para o caso doméstico, as revelações sobre espionagem que a NSA e outras agências vêm fazendo contra o próprio povo dos Estados Unidos, para não falar de atropelos ainda piores, como os que se produzem diariamente na infame prisão de Guantánamo ou na permanente marca do racismo (3).
Proponho, portanto, que abramos uma nova frente da luta ideológica e que, de agora em diante, comecemos a falar do “regime de Obama”, ou o “regime da Casa Branca”, a cada vez que tivermos que nos referir ao governo dos Estados Unidos. Será um ato de estrita justiça, que além do mais melhorará nossa capacidade de análise e contribuirá para higienizar a linguagem da política, emporcalhada e desgraçada pela indústria cultural do império e sua inesgotável fábrica de mentiras.
Notas:
1) Convém lembrar que essa dualidade de critérios morais tem uma larga história nos Estados Unidos. É célebre a anedota que narra a resposta do presidente Franklin D. Roosevelt ante alguns membros do Partido Democrata, horrorizados pelas brutais políticas repressivas de Anastasio Somoza na Nicarágua. FDR se limitou a escutá-los e dizer-lhes: “sim, é um filho da puta. Mas é o ‘nosso’ filho da puta”. O mesmo se poderia dizer dos monarcas da Arábia Saudita e Catar, entre outros. Ocorre que Bashar al-Assad não é o ‘seu’ filho da puta. Daí a caracterização de “regime” sobre seu governo.
2) Conforme seu livro Democracia Sociedade Anônima.
3) Para um exame da sistemática violação de direitos humanos por parte do governo dos Estados Unidos, ou do “regime” norte-americano, ver: O lado obscuro do império. A violação de direitos humanos pelos Estados Unidos, de Atilio Boron e Andrea Vlahusic (livro sem edição brasileira).
Traduzido por Gabriel Brito, do Correio da Cidadania.