No entanto, este artigo não é para arrolar as "magníficas" características deste narrador de jogos futebolísticos. Não é sobre ele, diretamente, que falaremos. Seu nome só entra aqui por um motivo: pela antipatia popular que gerou uma brincadeira e ganhou grande proporção, tendo efeitos inusitados que nos ajudarão a abordar alguns temas em torno de elementos onipresentes na atualidade: as ONG's.
A FALSA CAMPANHA AMBIENTAL "CALA A BOCA GALVÃO":
A insatisfação com o locutor gerou uma campanha-galhofa intitulada "Cala a boca, Galvão!" Inclusive, alcançando o primeiro lugar nos "trend topics" da rede social Twitter, sinal da popularidade. Contudo, o verdadeiro motivo para essa dimensão toda da campanha é um vídeo postado no youtube (para ver o vídeo, clique aqui). Neste vídeo, em inglês, diz-se que "Cala a boca Galvão" significaria "Salvem Galvão". Neste caso, quem estaria sendo salvo não seria, obviamente, o locutor, mas uma "espécie de pássaro rara típica da amazônia brasileira e ameaçada de extinção pelo aquecimento global". O vídeo teria sido criado pelo "Instituto Galvão", dedicado à preservação dessa espécie, cujo nome científico seria "SILENTIUS GALVANUS". Cada tweet com a frase "CALA A BOCA GALVAO" doaria, automaticamente, dez centavos de dólar à "causa".
A verdade, no entanto, é que essa campanha é falsa, sendo apenas mais uma parte dessa brincadeira na internet: não existe nenhuma ave nomeada Galvão; "cala a boca" não significa "salve" em português; não há doações de verdade, e nem mesmo existe tal instituto. Porém, essa brincadeira nos permite tirar algumas lições importantes sobre processos de manipulação que envolve o "mercado" das "ONG's".
O MERCADO DAS "ONG's":
A falsa campanha que abordamos foi criada com o intuito de ser uma mera brincadeira. Contudo, ela conseguiu mobilizar não só no mundo virtual, como no real: na estreia da seleção brasileira, na Copa do Mundo na África do Sul, estava lá uma faixa em letras garrafais escrita "CALA A BOCA GALVAO!". Apesar de ter sido retirada em menos de dois minutos, apareceu na televisão de todo o mundo, e foi assunto comentado na mídia mundial.
E, porque em tão pouco tempo essa campanha ganhou tanto corpo? Acreditamos que se deve à alguns fatores que relacionam-se com sua forma: toda a sua apresentação, tanto em vídeo, como no cartaz (acima reproduzido) remete as campanhas tradicionais das ditas "Organizações Não-Governamentais". Apresenta-se um dado problema (no caso a extinção do "Galvão"); o local do problema, é claro, está num país de Terceiro Mundo (eufemisticamente chamado atualmente de "país em desenvolvimento", no caso o Brasil). Neste caso a sensação de ligação com o problema, além do apelo visual da apresentação da "espécie ameaçada" (mostra-se o papagaio, associação a pena do animal às penas usadas no mundialmente famoso carnaval do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, entre outros artifícios) é construída através da utilização do tema do aquecimento global, grave e em voga nos debates. Para acabar de ganhar um colaborador, apela-se para o emocional, o afetivo, utilizando imagens de pessoas pobres em luta. Por fim, apresenta-se uma forma de "cooperação" rápida e simples (neste caso o tweet).
A língua usada para a campanha é o inglês, de forma não só a ludibriar com a pseudo-tradução, como por ser a primeira ou segunda língua dos principais financiadores mundiais dessas organizações. Para reforçar a "seriedade" da campanha coloca-se ao lado do logo de uma fundação fictícia o logo do governo brasileiro e de órgãos governamentais voltados para o meio-ambiente, além de ser na forma bem feito, tanto o cartaz como o vídeo. Este último ainda utiliza-se de imagens de alta qualidade de um longa-metragem brasileiro que estrou alguns meses atrás.
Estas técnicas permitem às "ONG's" que ganhem a atenção de "colaboradores" (leia-se financiadores) para as suas instituições. Inclusive criam-se cursos, assessorias e todo um mercado publicitário voltado para a disputa de "nichos de mercado" do auto-intitulado "terceiro setor" (diferenciando-se de empresas e governos). A mesma lógica empresarial e capitalista de concorrência se impõe. Uma forma lúdica e interessante de conhecer o funcionamento desse processo é através do filme "Quanto vale ou é por quilo?"N, do cineasta brasileiro Sérgio Bianchi. Este é uma crítica ácida às "ONG's", expondo todos os esquemas e pilantragens que transformam a miséria e a destruição de muitos em lucro de poucos. Para saber mais sobre esse filme sugerimos o artigo de Wilson H. Silva, chamado "'Quanto vale ou é por quilo': quando a miséria dá lucro".
O VERDADEIRO CARÁTER DAS "ONG's" E SUAS FUNÇÕES PARA O CAPITAL:
Este artigo, pela sua dimensão, não pode abordar todos os aspectos em torno das ONG's. Como um excelente artigo de introdução sobre a história das ONG's e seu papel na implementação do neoliberalismo, vale à pena a leitura de "Organizações Não-Governamentais: o que se oculta no 'Não'?", da Doutora Joana Aparecido Coutinho. Nele a autora mostra como essas organizações foram crescendo e se disseminando nos anos 60 e 70, participando de lutas contra ditaduras (mesmo que tendo existido algumas que colaboraram nos processos de golpes) e de ajuda humanitária. Mas, à ampliação houve também a mudança de caráter e campo na luta de classes: das primeiras que se colocavam no campo progressista, favorecendo a participação popular, como as assessorias de movimento populares e centro de educação popular, estas foram se bandeando para o lado oposto, para o campo da burguesia (com raras exceções).
É claro que muitas das mais "sérias" e "importantes" ONG's, mesmo com sua relevância até hoje, como a Anistia Internacional, não eram objetivamente criadas pelo campo dos trabalhadores, mas acabavam mesmo sem caráter de classe sendo progressivas. No entanto, mesmo estas, sob pressões de financiadores e governos do imperialismo, com sua parcialidade acabam por limitar-se, sendo instrumento indireto do imperialismo. Dois rápidos exemplos: a Anistia Internacional não se posicionou favoralvemente à Anistia Ampla, Geral e Irrestrita no fim da ditadura militar brasileira. Isso mesmo, ela tinha a mesma posição da ditadura brasileira, sendo favorável à anistia apenas aos prisioneiros por consciência, excluindo aqueles que resistiram ao terrorismo de Estado com a luta armada. Outro exemplo é a constante crítica aos Estados Operários Burocratizados (hoje já não existentes, todos já restauraram o capitalismo) e à países do Terceiro Mundo, e o total silêncio durante anos ao desrespeito aos Direitos Humanos nos países de Primeiro Mundo e às repressões aos movimentos sociais e sindicatos. Óbvio que as denúncias em relação às ditaduras burocráticas eram justas, como as são contra os governos do Terceiro Mundo. O problema é o silêncio frente os imperialistas e suas violações dos Direitos Humanos (vide os bombardeios na Iugoslávia, as diversas prisões secretas dos EUA, etc.) e principalmente, das grandes empresas multinacionais que desrespeitam direitos sociais e econômicos.
Há, no entanto, diversas outras ONG's às quais o epíteto de sérias seria bem difícil: as filantrópicas. Os estudos mostram que aqueles à quem estas propõem atender, são exatamente aqueles que menos recebem. Seu papel na verdade, em sua maioria, é duplo: um econômico e outro ideológico. O primeiro, ao gerar toda a economia em torno ao assistencialismo (em muitos casos, falcatruas), dissipando recursos públicos entre as entidades. Além disso, reforçam marcas de empresas que se apresentam, pela criação de "Fundações" e "ONG's", como "socialmente responsáveis". E, a marca e o markentig geram um lucro muito maior de retorno, ainda mais se contarmos com as generosas isenções de impostos. Ou seja: a mesma empresa que explora, que cria os males do capitalismo, apresenta-se como campeã do "bom-mocismo". Em alguns casos, isto chega às raias do absurdo, quando empresas que exploram os baixos salários e mão de obra barata no terceiro mundo, fazem campanhas como a reversão da venda de um hambúrguer num certo dia do ano para uma fundação de amparo à crianças doentes.
O outro papel é menos visível, porém, mais efetivo: o seu discurso anti-estatal corrobora a ofensiva do pensamento neoliberal, colaborando com a privatização de vários setores de atendimento social, de educação e saúde. Ao mesmo tempo, centra a solução do problema no indivíduo, não na sociedade. Dessa forma, a causa dos problemas também é transferido para os indivíduos. A saída torna-se não a mudança da sociedade, mas a "compaixão" do assistencialismo.
Dessa maneira, abundam as iniciativas assistenciais, casadas com a privatização: por exemplo, um andar inteiro de uma escola municipal no Rio de Janeiro foi dado para o programa "Criança esperança" (da Rede Globo)!
ONG'S: INSTRUMENTO DE APAZIGUAMENTO SOCIAL
No entanto, o seu maior papel em favor do capitalismo, explica o porquê desse sucesso: desviar a vontade de participação dos indivíduos em ações que tornem o mundo melhor. E, essa missão as ONG's realizam muito bem. Dessa forma, ao invés de se organizarem trabalhadores e pequeno-burgueses em movimentos sindicais e populares que pudessem, dirigidos por revolucionários, servir para a superação do capitalismo (causa de nossos males), acabavam envolvidos por lutas reformistas e por um assistencialismo inócuo. Isso é possível por dois motivos: tática do imperialismo e as direções burocráticas.
O imperialismo, desde a derrota americana no Vietnã e, em particular a partir de Carter, tem se utilizado de uma tática contra-revolucionária chamada "reação democrática". Pela dificuldade de ganhar a população de seu país para intervenções diretas contra-revolucionárias (mesmo que as utilizando pontualmente) apela-se para o desvio das lutas e ascensos populares para um "aprofundamento da democracia burguesia", como as Assembléias Constituintes. Desta forma, fecha-se no próprio regime a crise.[1] Ressalva-se aqui que, se essa é a tática principal, isso não exclui o uso da força militar. Essa tática do imperialismo casa-se exatamente com o período de maior crescimento das ONG's, não por acaso financiadas por esses governos.
O outro elemento que permite esse desvio de energia das massas são as direções burocráticas. Os desvios nas áreas ambiental e de direitos humanos nos ex-estados burocráticos levaram à que estes não tivessem autoridade moral para combater essas entidades. Também afastaram os trabalhadores da Europa Ocidental das saídas revolucionárias, pois se "aquilo era o socialismo, eles não queriam".
Essas mesmas direções burocráticas, fora dos ex-estados operários burocratizados (muitos PC's, social-democratas, "socialistas", democrata-cristãos, petistas, etc.) pelas suas práticas afastam os trabalhadores da participação da vida dos movimentos populares e sindical. Deixam aqueles que querem lutar e participar frente a única possível: o "voluntariado social".
Por fim, isso agrava-se pela falta de debates e atuação, inclusive dos revolucionários, em várias áreas importantes: direitos humanos, meio-ambiente, gênero e opressões. Essa situação só tem se revertido (à passos de cágado, diga-se de passagem) nas últimas duas ou três décadas. Deixou-se assim um enorme espaço para os reformistas e suas "propostas" inviáveis.
Bem, para terminar e aproveitar o ensejo deste artigo, quero dizer só mais uma coisa: "Cala a boca, Galvão!".
Nota
[1] A exceção à essa tática são os dois governos Bush filho, graças ao 11 de setembro.