Não é à toa que há entre os brasileiros uma frase que diz que o ano, no Brasil, só começa após o carnaval. Melhor assim, pelo menos este ano: que os trabalhadores aproveitem essa festividade, que relaxem, pois o restante do ano será extremamente cansativo, recheado de grandes desafios.
Podemos elencar três desses, profundamente interligados: este ano a crise mundial se apresenta no país com a máxima força; as eleições presidenciais; e, por fim, a grande tarefa organizativa de construir uma nova direção para o movimento dos trabalhadores e demais setores explorados e oprimidos.
Lula e empresários querem que os trabalhadores continuem a pagar pela crise
Com a crise capitalista mundial iniciada em 2008, como em todas as crises, a burguesia internacional e seus agentes desenvolveram ideologias para se agarrarem, tanto para propagandear midiaticamente e acalmar as classes exploradas, como para aplacar as suas incertezas quanto ao futuro. Uma das que mais repercussão teve foi a “tese do descolamento dos emergentes”, principalmente do chamado BRIC1. A realidade rapidamente deixou claro, com o impacto sentido pela Rússia, que não havia fundamento para tal hipótese: num sistema mundial, de inter-relação, mais precisamente de dominação imperialista, pensar que ao as potências centrais entrarem em crise os países dependentes não sentiriam os efeitos disso. Mesmo assim, o governo Lula propagandeou essa ideologia: primeiro, “a crise não viria”; depois, “seria uma marolinha”; e, por fim, quando a realidade não permitia mais escamoteamentos, “o Brasil foi o último a entrar na crise e o primeiro a sair”.
Ao contrário do que Lula e sua equipe dizem, a crise está longe do fim. Há, é verdade, uma recuperação parcial e temporária, mas suas conseqüências continuam a se apresentar para a classe trabalhadora, do Brasil e do Mundo, materializando-se em diminuição de salários, retiradas de direitos, sucateamento dos serviços públicos e, principalmente, desemprego. Por falar nisso, no dia 20 de janeiro passado, o Ministério do Trabalho anunciou os números para 2009 do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), que mostra a diferença entre o total de contratações e demissões no mercado formal de trabalho (ou seja, relativa as vagas com carteira assinada e contratos formais), que mostra uma desaceleração na criação de empregos. Desde 2003 não havia uma geração tão pequena de empregos como a do ano passado, apenas 995 mil, contra 1.452.204 empregos gerados em 2008. Em dezembro, fecharam-se 415.192 vagas de empregos formais. É verdade que esse é normalmente um período de demissões, mas esse ano foi muito superior ao esperado, com 1.483.673 demissões, e as contratações somando apenas 1.068.481. Ou seja, em relação a dezembro de 2008, quando a crise chegou forte ao Brasil, dezembro de 2009 teve apenas 58 mil demissões a menos (1.542.245 trabalhadores em 2008).2
A produção física industrial brasileira em 2009 teve a maior queda desde 1990, com uma retração de 7,4%. Com a acentuada queda do investimento doméstico e das exportações de manufaturados e commodities, o setor produtor de bens de capital, teve a maior queda no acumulado no ano, com a produção encolhendo 17,4%. Mesmo com todas as políticas de diminuição de impostos feita pelo governo Lula, o setor de produção de bens de consumo duráveis teve uma queda em sua produção da ordem de 6,4% em 2009.3
Em dezembro de 2009, a única coisa que cresceu foi o déficit em transações correntes brasileiras, o pior da história: o déficit foi de US$ 24,3 bilhões. Um rombo de quase 6 bilhões de dólares só no último mês de 2009. Essa conta (que mede o valor total de bens e serviços negociados com o exterior) teve esse resultado principalmente pelo crescimento das remessas de lucros das multinacionais às matrizes que, apenas em dezembro, enviaram US$ 5,3 bilhões (se destacando nisto a indústria automobilística, a que mais recebeu subsídios e isenções do governo brasileiro). As previsões mais otimistas do próprio governo para 2010 estimam um saldo negativo de US$ 40 bilhões4. O que assinala uma ampliação da dependência do país, num momento em que o imperialismo aprofunda sua ofensiva sobre os países dependentes do mundo para manter seus programas de salvamento de suas empresas: a primeira medida após a posse de Obama foi transferir do Orçamento Público para as empresas e, principalmente, bancos falidos, US$ 787 bilhões5.
Ou seja, em 2010 a luta contra as demissões, em defesa dos salários, contra o desvio de dinheiro público para o auxílio da patronal, e contra as ofensivas do imperialismo, terão que se aprofundar.
O desafio de intervir no debate eleitoral desconstruindo a falsa polarização PT X PSDB
Como em todos os anos de Copa do Mundo, o Brasil terá mais uma eleição presidencial6. E, como nas duas últimas eleições, haverá uma falsa polarização eleitoral entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB). Com a diferença de que nesta eleição Lula estará fora da disputa direta (apesar de jogar desde o ano passado todo o seu peso para consolidar e transferir votos para sua candidata, a ex-guerrilheira Dilma Rousseff).
Falamos em falsa polarização, pois apesar de ser (como sempre são as eleições) uma expressão distorcida da luta de classes, de fato não há entre José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT) uma diferença real de política. Os dois representam um só projeto, mesmo que com rostos diferentes: o neoliberal.
Serra é o retorno da burguesia diretamente como o agente implementador de suas políticas, sem intermediários, como nos tempos do príncipe das trevas Fernando Henrique Cardoso (FHC). E Dilma é a continuidade da Frente Popular (governo de aliança entre as principais direções do movimento operário e a burguesia, para gerir a crise do Estado burguês). Porém, do ponto de vista das políticas implantadas são exatamente iguais: os governos de Lula e de FHC fizeram enormes programas de salvamento de empresas, desviando dinheiro público para fins privados; os dois disputam o título de governos que menos fizeram pela reforma agrária (Lula conseguiu inclusive superar FHC como o presidente que menos assentou sem-terras na História); os dois privatizaram (é verdade que FHC muito mais, até porque pouco ficou para Lula privatizar), etc.
E, como é impossível um Estado burguês sem corrupção, até mesmo a bandeira petista de “ética na política” caiu por terra. Os petistas haviam se agarrado à ela como diferenciador em relação aos governos recheados de escândalos de FHC, principalmente depois que a política de viés classista fora deixado de lado. É difícil enumerar a totalidade de escândalos nos dois governos Lula, por isso citemos só alguns dos mais famosos: o “mensalão”, sistema (copiado do PSDB de Minas) de pagamento de propinas mensais a deputados e senadores; a “máfia das sanguessugas”, que desviou cerca de R$ 100 milhões da verba para a compra de ambulâncias (novamente, sistema copiado de FHC, já que o esquema iniciou-se ainda no governo FHC, quando o Ministro da Saúde era José Serra); o uso de cartões corporativos por autoridades governamentais para fins pessoais, etc. Mais recentemente, Lula colocou toda a máquina do Executivo Federal para auxiliar José Sarney, ex-presidente da república (1985-1989), a manter-se na presidência do senado federal, mesmo após uma série de denúncias.7
A grande diferença que podemos apontar entre FHC e Lula (e, assim, entre Dilma e Serra) é que o PT, como principal direção da classe trabalhadora, com grande influência sobre direções no campo, e apoiado pelo PCdoB, que dirige a UNE (União Nacional dos Estudantes), consegue frear os movimentos organizados e as mobilizações contra o projeto neoliberal. Outra diferença não relaciona-se com uma política diferente, mas com uma conjuntura distinta: Lula foi favorecido por uma conjuntura internacional mais favorável durante a maior parte de seu governo, com o crescimento econômico mundial e dos preços de commodities de exportação brasileiras.
De resto mais nada, até mesmo na utilização de instrumentos assistencialistas para a cooptação dos setores mais miseráveis deste país Lula superou FHC, com o programa Bolsa-família. Ah, e não podemos esquecer: Lula também superou seu antecessor em seu apoio às políticas do imperialismo, ao dirigir a ocupação militar no Haiti, que está recolonizando aquele país e lançando-o numa miséria ainda maior.8
É preciso superar a falsa polarização que se está construindo na sociedade brasileira: a imprensa dá espaço apenas às duas candidaturas, discutindo as estratégias de campanha delas, criticando uma ou outra, mas impedindo que um real debate sobre os destinos do país seja feito. Os trabalhadores precisam construir nas ruas, mas também nas eleições (por mais que a democracia burguesa não seja um campo da nossa classe) um projeto que está bem distante dos apresentados pelo PT e PSDB, com um programa real de superação da crise: frentes de obras públicas; estabilidade no emprego; estatização sobre controle dos trabalhadores das empresas que demitirem e das ex-estatais privatizadas; fim das transferências de recursos públicos ao grande empresariado (nenhum centavo a mais de dinheiro público para fins privados); reforma agrária; retirada das tropas brasileiras do Haiti, etc. Não é possível construir um programa que supere a crise do capital se este não for um programa que vá para além do mesmo capital: um programa socialista que rompa com o imperialismo. E, nem o PT, e muito menos ainda o PSDB, defendem tal programa.
Construir uma Nova Central sindical, popular e estudantil: independente, internacionalista e combativa, para lutar contra a exploração e as opressões, rumo ao socialismo!
Por fim, a maior tarefa que a classe trabalhadora brasileira enfrentará este ano é a de construir uma nova direção para os movimentos proletários, populares e de juventude. Tarefa esta que determina em grande parte a possibilidade de sucesso nas outras tarefas (mesmo que esta sofra os reflexos também das outras).
Durante o ciclo de lutas ocorridos na década de 80, que se iniciaram com as lutas operárias no ABC paulista, e que teve como maior dirigente o próprio Lula, foram construídos ou reconstruídos diversos instrumentos de luta importantíssimos: a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a UNE (União Nacional de Estudantes, reconstruída após o fechamento pela ditadura) e, como direção política, o Partido dos Trabalhadores (PT).
Sobre este último já tratamos em parte anteriormente, por isso, sem entrar em muitos detalhes, podemos dizer que esse partido seguiu o mesmo caminho de vários outros mundo afora: sob o impacto da restauração capitalista do Leste e a pressão dos aparatos sindicais e da institucionalidade burguesa foi se acomodando ao jogo eleitoral e abandonando seu programa socialista (no caso do PT este nunca foi claro), aproximando-se da burguesia e colocando-se como o “mais eficiente gestor do regime burguês”. Seu caráter de classe vai mudando, muitos dirigentes vão se convertendo de uma burocracia operária em uma nova burguesia.
E, como a CUT sempre esteve atrelada ao PT, a degeneração deste levou a degeneração daquela, levada para o campo da pactuação de classes e traição das bases. Esse processo de domesticação da CUT, que se processa ao longo de toda a década de 90, teve uma salto qualitativo a partir da chegada do PT ao governo. Desde então, o atrelamento ao governo é total. Da mesma maneira a UNE, dirigida pelo PCdoB (que também sofreu o mesmo processo do PT), tornou-se uma repartição não-oficial do Ministério da Educação (MEC).
Porém, além das ligações políticas entre os membros do governo e os dirigentes cutistas, há outra razão para o atrelamento: dinheiro. Só entre janeiro e julho do ano passado, as centrais pelegas receberam R$ 74 milhões de imposto sindical. Esta é uma “contribuição” forçada extraída pelo Estado de todos os trabalhadores, sejam filiados ou não, a qual anteriormente a CUT e o PT eram contrárias, quando ainda não eram governo. E, nos últimos sete anos, segundo a Controladoria Geral da União (CGU), a CUT, Força Sindical e outras centrais pelegas receberam R$ 261,2 milhões, dinheiro que em parte também provém de outra fonte de recurso, o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).9
Não por acaso essas centrais pelegas, a CUT e CTB (dirigida pelo PCdoB), Força Sindical, UGT, NCST e CGTB, irão realizar uma Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat) em apoio ao governo. Nas palavras de o presidente da CUT, Artur Henrique, este encontro: “(...) será um instrumento de mobilização e ação sindical que contribuirá no processo eleitoral, demarcando campo com a direita”10. Ou seja, não será um espaço para a organização dos trabalhadores para a luta contra a crise econômica, mas para organizar o apoio à candidata governista Dilma Rousseff.
Por isso que já há alguns anos entidades vem se organizando por fora dessas centrais, rompendo com elas, para construir alternativas por fora do controle governamental: primeiro surgiu a CONLUTAS (Coordenação Nacional de Lutas), a mais forte, maior e mais consolidada; e depois, uma articulação ainda com peso e organicidade menores, mais com algumas entidades representativas e direções também combativas, a Intersindical. Felizmente, no fim do ano passado, nos dias 1° e 2 de novembro, o Seminário Nacional de Reorganização, realizado em São Paulo, votou para os dias 5 e 6 de junho, na cidade de Santos (SP) a realização de um Congresso Nacional da Classe Trabalhadora. Este CONCLAT, diferentemente do governista, terá como centro não as eleições, mas as lutas. Fundamentalmente tratará da unificação das diversas alternativas que foram construídas ao longo do governo Lula em uma Nova Central. Neste Congresso farão parte, além da CONLUTAS e Intersindical, outras entidades e agrupamentos: o Movimentos dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST); o Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL); a Pastoral Operária de São Paulo e o MAS.
Este Congresso terá como tarefa a construção de uma Nova Central, diferente das anteriores: com democracia pela base; independente de governos e patrões; autônoma em relação aos partidos; que tenha como prioridade à luta direta; internacionalista e socialista. Mas, muito ainda preciso se avançar, principalmente no debate sobre a composição dela, principal polêmica do Congresso: a CONLUTAS defende uma estrutura mais ampla, que possa unificar todos os que queiram lutar, não só o movimento sindical e popular, como também o estudantil e contra as opressões. Outros querem uma central mais fechada, restrita, que exclua estes dois últimos setores. No entanto, o importante é que estas diferenças se resolvam com os debates e a que a base decida. O que é inimaginável, frente aos desafios que temos pela frente, é que a unidade não saia. Uma Nova Central para organizar os explorados e oprimidos é uma necessidade premente!
Estes são os desafios para 2010 dos trabalhadores no Brasil. Por ora, até semana que vem, deixemos os trabalhadores se divertirem e relaxarem. Depois, é hora de irmos à luta!
Notas
1. Brasil, Rússia, Índia e China.
2. Dados extraídos de CRUZ, Diego. DEZEMBRO É MARCADO PELAS DEMISSÕES E A EXPLOSÃO DA REMESSAS DE LUCRO AO EXTERIOR, 2010. Disponível em http://www.pstu.org.br/esp_crise_materia.asp?id=11172&ida=20.
3. Dados extraídos de “Carta IEDI n° 401 - Produção Industrial: Queda Histórica em 2009, Mas Recuperação no Final do Ano”, disponível em http://www.iedi.org.br/.
4. Ver nota 1.
5. CHOMA, Jefferson. Retrospectiva 2009: Obama da mudança à crise. 2009. Disponível em: http://www.pstu.org.br/internacional_materia.asp?id=11113&ida=2.
6. A eleição abrange não só a presidencial, mas a de governadores, deputados federais e estaduais e de parte dos senadores (em uma eleição renova-se 1 senador e na seguinte dois, dos três existentes para cada estado da federação). Os senadores possuem um mandato de oito anos.
7. A corrupção da elite política e econômica é tão grande, que nesse tempo de carnaval não podemos deixar de lembrar do samba de Bezerra da Silva chamado “Se gritar pega ladrão”: “(...)Você me chamou para esse pagode,/e me avisou: "Aqui não tem pobre!"/Até me pediu pra pisar de mansinho, porque sou da cor,/eu sou escurinho.../Aqui realmente está toda a nata: doutores, senhores,até magnata / Com a bebedeira e a discussão, tirei a minha conclusão:/Se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão / Se gritar pega ladrão, não fica um / Se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão / Se gritar pega ladrão, não fica um(...)”
8. Sobre a ocupação militar brasileira a partir de uma leitura dos trabalhadores, são vários os artigos que podem ser encontrados no site do PSTU (http://www.pstu.org.br). Mas sugerimos, em particular, o especial “Fora as tropas do Haiti” e o último “Correio Internacional” editado pela Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI), que pode ser acessado na mesma página.
9. Informações extraídas de “Uma conferência assumidamente governista”, disponível em http://www.pstu.org.br.
10. Idem.