Eram 1800 policiais armados, muitos carros blindados e helicópteros sobrevoando o terreno. Na madrugada de 22 de janeiro invadiram a comunidade, derrubaram casas, atearam fogo em outras, aterrorizaram dezenas de crianças, levaram ao desespero centenas de mães, ameaçando as pessoas com armas pesadas, sequer permitindo que muitos pudessem levar alguns pertences de suas moradias. Nem cadeirantes, outros entrevados e animais domésticos foram poupados. Foi uma ação de guerra, acobertada pela sentença de uma juíza da cidade e avalizada por um desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Uma comunidade onde reinava solidariedade e sentido de pertença foi totalmente destruída. As pessoas agora vagam por aí, muitos sem onde morar, humilhados e ofendidos em sua dignidade, esperando que o poder público lhes compense com alguma moradia minimamente decente. A grande maioria está desempregada, passa fome e vive da misericórdia de pessoas solidárias.
Eu e minha companheira Márcia que trabalhou por 20 anos no lixão de Petrópolis e ajudou a criar aí uma comunidade autônoma e que conhece, por experiência, o descaso do poder público para com os pobres, fomos recebidos com música e pétalas de rosas que eram jogados sobre nossas cabeças e aos nossos pés. Pensei, aqui reina alegria e espírito fraterno. Aqui o amor venceu o terror.
Sim o amor triunfou mas a que custo. Quando sentamos em roda na sala e cada uma das pessoas, a maioria mulheres, começou a contar suas tribulações, as violências covardes que sofreram, as humilhações por que estão passando três meses após a tragédia, ficamos estarrecidos. Na medida em que ouvia os depoimentos, crescia em mim a iracúndia sagrada dos profetas Amós e Oséias que lançavam maldições em nome de Deus contra aqueles que oprimem os pobres e acrescentam mais sofrimento aos que já vivem sofrendo.
Curiosamente, as mães não falavam tanto delas. Falavam dos filhos e filhas ainda hoje aterrorizados pelo estrondo das bombas, pelo ruído ensurdecedor dos carros blindados e pelo barulho dos helicópteros fazendo voos rasantes. Mal dormem, ficaram traumatizadas por aquelas figuras sinistras, os policiais, quais agentes do mal que vêem nos programas infantis da televisão.
Enxugar as lágrimas
Sucedia-se a narração da via-sacra de cada uma das mulheres e de uns poucos homens, um deles, um rapaz sobrevivente de uma bala nas costas, com dificuldades de andar e desempregado. Essa via-sacra parece ter mais estações de sofrimento do que aquela do Filho de Deus que padeceu entre nós. Todos choravam e todos se consolavam, abraçando-se e enxugando-se reciprocamente as lágrimas, como faria a Magna Mater, a grande Mãe com seus filhos e filhas desconsolados.
Vários voluntários, em sua maioria mulheres, acompanham e dão apoio à Associação das Mulheres de Pinheirinho. Duas jornalistas, entre outras, merecem ser citadas, pois abandonaram tudo para se dedicarem totalmente a estas mulheres desamparadas: Andrea Luswarghi e Ana Luisa Lacerda. Seus nomes estão no lugar de outras tantas voluntárias. Elas realizam a missão própria do Messias que é enxugar lágrimas, manter viva a esperança e reforçar os laços de união e de solidariedade entre todos.
Efetivamente, apesar da dor, todas testemunhavam: "confiamos em Deus; temos Deus dentro de nós; Deus nos vai dar força para refazer nossas vidas; vamos continuar lutando por nossos direitos e vamos dar um futuro aos nossos filhos e filhas".
À noite falei para mais de 700 pessoas, numa grande quadra de esportes do SESC sobre um tema caro à cidade, orgulhosa de seu progresso: "Como fazer de São José dos Campos, uma cidade dos sonhos". Logo no início disse sem meias-palavras:"Não posso falar sobre este tema sem mostrar profundo constrangimento. Como pode uma cidade se propor um sonho se ela permite o massacre e o terror como ocorreu em Pinheirinho? Pinheirinho somos todos nós". O auditório explodiu em aplausos pois entendeu a contradição. O sonho era para que exatamente nunca mais ocorresse um Pinheirinho.
Permito-me algumas poucas reflexões. Como teólogo não posso deixar de lembrar dos salmos de perseguição. Aí se diz que os poderosos confabulam entre si, se organizam para tomar mais terras, acumular mais riquezas, dominar mais pessoas. Mas Deus, de lá dos céus, olha para baixo e ri deles, pois são meros homens, não têm poder, apenas arrogância. E Deus desce para ficar do lado das vítimas. Aqui ocorreu algo semelhante. Num youtube, a juíza, cujo nome sequer merece ser citado, diz que se fizeram muitas reuniões com os policiais, com o poder público, com o judiciário. E as reuniões com os representantes da comunidade? Eles não contam: são jeca-tatus, ignorantes, óleo queimado. Predomina ainda a mentalidade da casa-grande e do senhor de escravos. Bem dizia Joaquim Nabuco e o repetia com frequência Darcy Ribeiro:"não basta acabar com a escravidão, é preciso acabar com sua obra". A sua obra é uma mentalidade das elites que têm ainda o escravo e o pobre dentro da cabeça e os consideram como um joão-ninguém, incapaz de cidadania.
Propriedade X humanidade
No massacre de Pinheirinho se violaram os princípios básicos de uma ética humanitária: vale mais a vida humana que a propriedade material. A vida funda um direito último, a propriedade um direito secundário e sempre referida à sua função social.
O ser humano deve ser tratado humanamente, especialmente os indefesos e vulneráveis como as crianças, os idosos, os incapacitados e as mães. Aqui tudo foi levado de roldão como se tocassem gado para dentro de um curral.
O mais espantoso não é o que a juíza autorizou fazer mas o que ela disse numa entrevista, registrada num youtube acessível pelo Google: "a polícia desempenhou um serviço admirável, com competência e com honra; é motivo de orgulho para todos nós". Essa juíza deve ter lido muito Nietzsche que fala da inversão dos valores: onde nós dizemos "massacre" ela diz "serviço admirável". Onde nós dizemos "terror" ela diz "honra e orgulho para todos nós". Essa juíza perdeu todo sentido da lei que sempre cai sob o juízo ético do direito. Ela identificou a "lei" que pode ser injusta com o "direito" que a julga.
Por fim, esse massacre e esse terror mostram a qualidade de nossa democracia. Ela foi feita principalmente para as elites oligárquicas que articulam em seu benefício os poderes da política, do judiciário e da polícia, deixando as grandes maiorias à margem do contrato social. Numa sociedade como a nossa, com as desigualdades abissais que a caracterizam, a democracia aparece como farsa, pois toda democracia se funda sobre a igualdade básica de todos os cidadãos e sobre seus direitos garantidos, pouco importa a cor de sua pele, o seu grau de instrução e o nível de seu poder aquisitivo. Isso, em grande parte, não vale ainda para a nossa democracia reducionista e farsesca.
Os responsáveis maiores são o governador do Estado que chefia a Polícia Militar e o prefeito da cidade sob cujo comando está a polícia civil. E ainda a juíza e o desembargador que conferiram caráter legal às ações. Não sei como dormem. Mas suponho que seus travesseiros estão enxarcados das lágrimas das mães desesperadas e cheios dos gritos das crianças aterrorizadas. Basta deixarem vir à tona um pouco de humanidade que seguramente ainda possuem, para ouvirem esses clamores. Estes chegam ao céu. E Deus é aquele que escuta o clamor do oprimido e do injustamente violado. O Deus das mães de Pinheirinho não é o mesmo Deus do governador, do prefeito, dos juízes e dos policiais. O Deus vivo e verdadeiro ama a vida, cobra a justiça e exige o direito. Este Deus foi negado em Pinheirinho.
Nem tudo vale neste mundo. E Cristo morreu também para confirmar que nem tudo vale, como no caso de Pinheirinho; que o poder deve servir à vida e não à propriedade e que a justiça, o direito e a compaixão devem prevalecer sobre quaisquer outros valores.