De repente, descobriram que os especuladores financeiros são uns malandros, os offshores abominá veis, o neoliberalismo a causa de todas as desgraças por que a huma nidade está a passar e, mais recen temente, que os salários e prémios dos gestores das empresas públicas são imorais. Comentadores, fazedo res de opinião, associações patro nais, grandes e pequenos patrões, banqueiros, políticos, governantes, gestores, que ainda há menos de dois anos defendiam com unhas e dentes o que condenam agora, es candalizam-se com os ganhos milio nários dos gestores públicos, que num só dia auferem, cada um deles, milhares de salários mínimos anuais. Como se pode pedir sacrifícios aos trabalhadores se aqueles que dis põem do poder de decidir dos seus ga nhos se fazem pagar principesca mente? — moralizam. Ao ponto de os visados, à defesa, hipocritamente dizerem que sim, mas que a culpa não é deles, que apenas se limitam a re ceber aquilo que determinam as co missões de vencimentos e as assem bleias de accionistas. O presidente Cavaco aproveita para ir debitando os seus habituais discursos moralizadores, confirmando que de facto é um escândalo – como se nada tivesse a ver com o assunto, como se não tivessem sido os seus governos a iniciar as privatizações e a defender que os gestores e os políticos tinham de ser muito bem pagos, por só assim se dava dignidade aos cargos e se premiava a competência. O governo, por seu lado, também acha indecente, e toca de propor a re dução das remunerações e pré mios dos gestores.
Mas nenhum destes sobressaltos é para levar a sério. Da mesma forma que, passado o susto inicial, volta ram as antigas práticas especulado ras e a cantiga do "menos Estado" — quando os tão incensados "produ tos financeiros" passaram a não va ler nada e os bancos a ameaçar falir uns atrás dos outros — também, da qui a umas semanas, quando o as sun to já estiver esgotado e não for politicamente relevante, toda esta cambada vai descobrir que "o mérito deve ser devidamente recompensa do", "que afinal os prémios e vencimentos estão em linha com o que se pratica lá fora" (pena que o mesmo argumento não valha quando se trata dos salários dos trabalhadores), da mesma forma que já redesco briu que afinal a crise e a corrupção no nosso país só se ultra passam quan do o "Estado sair da economia e a deixar entregue aos privados".
Muito prosaicamente, a EDP e a ZON já recusaram a proposta do Estado de redução de remunerações e pré mios dos seus gestores, no que foram seguidas pelas restantes empresas públicas ou com forte participação do Estado, que simplesmente ignoraram a directiva governamental. O que não espantou ninguém nem causou qualquer sobressalto, deixando-nos perfeitamente elucidados sobre quem detém o poder real neste país.
E pronto, é a vi da... O governo cumpriu o seu de ver, Cavaco e os deputados também, que mais se lhes pode pedir?
Desiludam-se os que pensam que o capitalismo é regulável. O problema não está no capital financeiro, está no capital.