É preciso lembrar que ocorreram duas intervenções. A primeira, sob a Resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU, adotada em 17 de março, pedia uma zona de exclusão aérea, um cessar-fogo e medidas para proteção dos civis. Após poucos meses, essa intervenção foi deixada de lado assim que o triunvirato imperialista se uniu ao exército rebelde, atuando como sua força aérea.
No início do bombardeio, a União Africana pediu por esforços diplomáticos e negociações para impedir uma provável catástrofe humanitária na Líbia. Em um mês, os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e outros se uniram à UA, incluindo um importante país membro da Otan, a Turquia.
De fato, o triunvirato ficou um bocado isolado em seus ataques –visando eliminar um tirano caprichoso a quem apoiaram quando foi vantajoso. A esperança era de um regime mais flexível às exigências ocidentais de controle sobre os ricos recursos da Líbia e, talvez, que oferecesse uma base africana para o Comando dos Estados Unidos para a África, Africom, até o momento confinado a Stuttgart.
Ninguém sabe se os esforços relativamente pacíficos pedidos pela Resolução 1973 da ONU, apoiada por grande parte do mundo, teria tido sucesso em impedir a perda terrível de vidas e a destruição que se seguiu na Líbia.
Em 15 de junho, a UA informou ao Conselho de Segurança que “ignorar a UA por três meses e prosseguir com os bombardeios contra o território sagrado da África era despótico, arrogante e provocador”. A UA apresentou um plano para negociações e policiamento dentro da Líbia por forças da UA, juntamente com outras medidas de reconciliação –sem sucesso.
O pedido da UA ao Conselho de Segurança também apresentava o fundamento para suas preocupações: “A soberania tem sido uma ferramenta de emancipação para os povos da África que estão começando a traçar caminhos transformadores para a maioria dos países africanos, após séculos de comércio de escravos, colonialismo e neocolonialismo predatórios. Ataques negligentes contra a soberania dos países africanos são, portanto, o equivalente a infligir novas feridas contra o destino dos povos africanos”.
O apelo africano pode ser encontrado no jornal indiano “Frontline”, mas foi praticamente ignorado no Ocidente. Isso não causa surpresa: os africanos são “não-pessoas”, usando o termo de George Orwell para aqueles inaptos a entrar na história.
Em 12 de março, a Liga Árabe ganhou o status de pessoas ao apoiar a Resolução 1973 da ONU. Mas a aprovação logo desapareceu, quando a Liga não apoiou o bombardeio subsequente contra a Líbia pelo Ocidente.
E em 10 de abril, a Liga Árabe voltou a ser não-pessoa ao pedir à ONU que também impusesse uma zona de exclusão aérea sobre Gaza e suspendesse o bloqueio israelense, sendo virtualmente ignorada.
Isso faz sentido. Os palestinos são um modelo de não-pessoas, como vemos regularmente. Considere a edição de novembro/dezembro da “Foreign Affairs”, que abriu com dois artigos sobre o conflito entre israelenses e palestinos.
O primeiro, escrito pelas autoridades israelenses Yosef Kuperwasser e Shalom Lipner, atribui aos palestinos a culpa pela continuidade do conflito, ao se recusarem a reconhecer Israel como um Estado judeu (de acordo com a norma diplomática: Estados são reconhecidos, mas não setores privilegiados dentro deles).
O segundo, pelo acadêmico americano Ronald R. Krebs, atribui o problema à ocupação israelense; o artigo é intitulado: “Como a Ocupação está Destruindo a Nação”. Que nação? Israel, é claro, prejudicado por manter suas botas no pescoço das não-pessoas.
Outra ilustração: em outubro, manchetes anunciavam a libertação de Gilad Shalit, o soldado israelense que foi capturado pelo Hamas. O artigo na “The New York Times Magazine” foi dedicado ao sofrimento de sua família. Shalit foi libertado em troca de centenas de não-pessoas, sobre as quais sabemos pouco, fora o debate sobre se a libertação delas pode prejudicar Israel.
Nós também não sabemos nada sobre as centenas de outros detidos em prisões israelenses, por longos períodos sem uma acusação.
Entre os prisioneiros não mencionados estão os irmãos Osama e Mustafa Abu Muamar, civis sequestrados pelas forças israelenses que atacaram a Cidade de Gaza em 24 de junho de 2006 –um dia antes da captura de Shalit. Os irmãos então “desapareceram” dentro do sistema carcerário de Israel.
Independente do que alguém pense a respeito da captura de um soldado de um exército inimigo, o sequestro de civis é um crime muito mais sério –a menos, é claro, que eles sejam meras não-pessoas.
Certamente esses crimes não se comparam a muitos outros, entre eles os crescentes ataques contra os cidadãos beduínos de Israel, que vivem em Negev, no sul do país.
Eles estão sendo expulsos sob um novo programa que visa destruir dezenas de aldeias beduínas para as quais eles foram expulsos anteriormente. Por razões benignas, é claro. O Gabinete israelense explicou que 10 assentamentos judeus seriam fundados lá “para atrair uma nova população para Negev” –isto é, substituir não-pessoas por pessoas legítimas. Quem faria objeção a isso?
A estranha raça de não-pessoas pode ser encontrada em toda parte, inclusive nos Estados Unidos: nas prisões que são um escândalo internacional, nas cozinhas, nas favelas e cortiços.
Mas os exemplos são enganadores. A população mundial como um todo está à beira de um buraco negro.
Nós vemos lembretes diários, mesmo em incidentes pequenos –por exemplo, no mês passado, quando os republicanos na Câmara dos Deputados americana barraram uma reorganização virtualmente sem custo para investigação das causas dos eventos climáticos extremos de 2011 e fornecimento de previsões melhores.
Os republicanos temiam que ela poderia ser uma abertura para “propaganda” sobre o aquecimento global, um não-problema segundo o catecismo recitado pelos pré-candidatos daquele que, anos atrás, costumava ser um partido político autêntico.
Pobre espécie triste.
Tradução: George El Khouri Andolfato