Neste processo o PT enfrentou várias crises. Nos anos oitenta, quando a situação política evoluía à esquerda pela mobilização mais ativa dos trabalhadores e da juventude, o PT teve rupturas pela direita: uma ala moderada rompeu com o partido, porque o PT não apoiou a Aliança Democrática que elegeu a chapa Tancredo/Sarney. Nos anos noventa, quando a situação política evoluía à direita, e as pressões burguesas pela estabilidade do regime eram mais intensas, a direção do PT, decidiu expulsar a Causa Operária e a Convergência Socialista, duas correntes trotskistas, que constituíram, respectivamente, o PCO e o PSTU. Em 2003, depois da eleição de Lula, a direção do PT não hesitou em expulsar Heloísa Helena e os deputados que vieram a formar o PSOL.
Foi, porém, em 2005, que o PT atravessou a crise mais séria de sua história. Uma parcela do núcleo duro de sua direção foi decapitada, politicamente, pela crise aberta pelas denúncias do mensalão. Apesar de indisfarçável satisfação das frações majoritárias da classe dominante com o governo Lula desde o primeiro mandato, a oportunidade aberta pela crise do mensalão precipitou uma ofensiva política burguesa, com eco nas ruas, nas fábricas e nas universidades, que fez Lula tremer no Palácio do Planalto. O mensalão obrigou o PT a sacrificar Zé Dirceu e dezenas de líderes, e deixou o partido desmoralizado entre os setores mais críticos do ativismo operário e popular, em boa parte da vanguarda estudantil mais lutadora, e nos meios da intelectualidade de esquerda mais honesta. O PT preservou, contudo, uma influência majoritária no proletariado. Entre 2003 e 2010, Lula fez um governo que recebeu aplausos quase unânimes do que há de mais reacionário no Brasil e no mundo: de Maluf a Delfim Neto, de Michel Temer a Henrique Meirelles, de Bush a Sarkozy, de Merkel a Putin, não faltaram entre os maiores banqueiros, empreiteiros e latifundiários vozes dispostas a admitir em público o deslumbramento das classes dominantes de todos os continentes com Lula e o PT. Não fosse isso o bastante e, não obstante o impressionante desmascaramento do financiamento eleitoral através de relações obscenas com o empresariado – uma rotina de corrupção que o PT sempre denunciou - Lula surpreendeu pela resiliência de sua autoridade na classe operária.
Apesar desta trajetória incrível, não há porque não lembrar que a formação em 1979/80 de um PT sem patrões, que evoluiu para a influência de massas, rapidamente, nas grandes cidades do Estado de São Paulo, liderado por um líder grevista metalúrgico, sem relações internacionais sólidas foi um fenômeno político admirável e até extraordinário, porém, imprevisto. Nos final dos anos setenta, a maior parte da burguesia brasileira e os líderes políticos da ditadura ainda temiam, seriamente, o espaço político que o PCB por um lado, e Brizola e Arraes por outro, poderiam ocupar quando viesse a anistia. Era a etapa histórica da guerra fria. Foi um tempo de anticomunismo mais primitivo.
O PT e Lula são hoje muito sobreestimados, mas seria injusto não lembrar que foram subestimados quando apareceram na vida política nacional em 1979/80. Tão desdenhado foi o PT até 1982 que uma parcela da imprensa e da mídia da época não se preocuparam muito com a impressionante liderança de Lula entre os operários do ABC e, por isso, lhe permitiram uma visibilidade política que nunca foi cedida, por exemplo, a Prestes.
No entanto, depois da fundação da CUT em 1983 a política da burguesia e da mídia em relação ao PT mudou. O processo de transição democrática que a ditadura perseguia estava sendo ameaçado pelas aparições de Lula e pelo papel do PT inspirando o proletariado de todo o país a lançar-se à luta sindical e política. Ser petista era ser um igualitarista radical. Quando o peso de uma vanguarda militante de centenas de milhares de ativistas começou a ser sentido, sobretudo, durante a campanha pelas Diretas, o PT passou a ser considerado, seriamente, como um inimigo, e Lula como um perigo. Depois da eleição de Erundina para a Prefeitura de São Paulo, em 1988, foi criado o segundo turno nas eleições majoritárias para blindar o perigo de novas vitórias petistas. A militância petista fazia a diferença nas greves, nas ocupações e, também, nas eleições.
Este livro fazia falta por duas razões. Primeiro, porque ainda está por ser narrada uma história da metamorfose do PT que vá além da louvação. Não é polêmico que o PT de 2010 é irreconhecível, se comparado com o de 1980/1989. Não faltam publicações que elogiam a transformação de Lula e do PT. Não faltaram autores para enaltecer o que tem sido explicado como amadurecimento do PT, ou para exaltar o que foi interpretado como a grandeza da maturidade de Lula. A segunda razão é que a versão liberal desta transformação – consolidação de uma máquina burocrático-profissional de milhares de militantes, adaptação aos limites do regime democrático-liberal - afirma, grosso modo, a tese de que a direção do PT mudou porque compreendeu que precisava moderar as suas posições políticas para poder se construir como um partido, eleitoralmente, forte, capaz de disputar eleições para os executivos, e não somente ser uma representação parlamentar dos movimentos sociais, sobretudo, do movimento sindical. Em outras palavras, esta tese argumenta que a direção do PT realizou um espantoso giro à direita para se aproximar dos trabalhadores e ganhar votos. Como toda meia verdade, essa é também uma meia mentira: o contorcionismo político da direção do PT, evidentemente, não foi feito para se aproximar do povo, mas para se aproximar da burguesia.
O que ainda estava por ser escrito era uma história crítica do PT que contextualizasse no tempo e no processo social da luta de classes como aconteceram essas mudanças político-ideológicas. Este livro começa a preencher esta ausência. As premissas teóricas dessa história não precisam ser reinventadas. As idéias do PT mudaram porque os homens e mulheres à frente do PT mudaram. Ensina uma boa escola historiográfica que para explicar o passado e, em especial, para elaborar uma história das idéias políticas dos partidos nas sociedades contemporâneas, é bom admitir que as cabeças acompanham o chão que os pés pisam. E a direção do PT deixou de pisar as portas de fábrica, e passou a pisar os tapetes dos parlamentos e dos palácios. Deixou de correr os riscos que são inerentes às lutas operárias e populares, e escolheu o conforto das concertações sentados à volta de mesas cercados de autoridades que representam a riqueza e o poder. Como se diz nas ruas, pegaram o gosto pela coisa. Este livro nos relembra que o PT não nasceu assim.
Outra questão é definir qual foi a natureza das mudanças. Não parece ser muito polêmico que o PT nunca foi um partido revolucionário, embora muitos militantes honestos que combatiam pela revolução brasileira tenham militado, com abnegação e despojamento, em suas fileiras . O PT surgiu como um partido operário com um projeto de representação independente da classe trabalhadora, mas com um projeto político de reformas para a regulação do capitalismo brasileiro. O PT nasceu das lutas que aceleraram a crise final da ditadura militar. O PT nasceu do impulso social da mobilização operária, uma força social de choque tão poderosa entre 1978 e 1981, que uma parcela majoritária da classe média urbana, sobretudo entre a juventude, se deslocou à esquerda e ultrapassou os limites do que era a oposição democrática liderada por Ulysses Guimarães e o MDB. O PT surgiu como uma frente política que unificou, em torno da liderança de Lula e de um grupo de sindicalistas que emergiram de uma dissidência da burocracia sindical – uma pequena parcela da casta de líderes profissionais que vegetavam em aparelhos sindicais, relativamente ricos, mas esvaziados - os ativistas da esquerda católica, os sindicalistas combativos que organizavam as oposições sindicais, a intelectualidade reformista de inclinações social-democratas, e os militantes da esquerda marxista de variadas tradições (autonomistas, castristas, estalinistas que estavam fora do PCB e do PCdB, trotskistas) que estavam estruturando variadas organizações.
Em dez anos, entre 1979 e 1989, em função da decisão política de ser oposição à abertura lenta, gradual e controlada da ditadura militar - a estratégia de transição para democracia perseguida pelos governos Geisel e Figueiredo, sob a inspiração do general Golbery – o Partido dos Trabalhadores logrou ser o pólo de atração do que havia de melhor e mais destacado na geração de lutadores sociais que estiveram à frente dos maiores movimentos de massas da década, diminuindo a autoridade do MDB de Montoro e Tancredo quando eleitos governadores em São Paulo e Minas Gerais, e deslocando a influência que poderia ter sido atraída pela liderança de Brizola, eleito governador no Rio de Janeiro, ou até do PCB de Prestes.
Este livro nos diz como o PT se fez grande nos anos oitenta. Estes foram os anos em que a direção do PT e Lula ganharam, merecidamente, o seu prestígio político. Defenderam as greves, apoiaram o nascimento do MST, ajudaram o movimento estudantil, acolheram o movimento de mulheres, ampararam o movimento popular urbano de luta por moradia, auxiliaram o movimento negro e, não menos importante, enfrentaram a ditadura, lançaram a campanha pelas Diretas, e denunciaram o acordo que culminou no Colégio Eleitoral permitindo, finalmente, a posse de Sarney. Mas, depois de 1988, quando assume a Prefeitura de São Paulo, o PT começou a mudar. Não foram muitos os que viram o ovo da serpente. O livro de Cyro Garcia merece ser lido, também, porque o autor foi um dos pioneiros na luta política para defender o PT contra as pressões, socialmente, hostis que se abatiam sobre a direção do partido.
Compreender estas pressões nos remete à história da luta da classe trabalhadora para entender o destino do PT. Foi ao longo desses trinta anos que se desenvolveu a experiência de milhares de greves das mais variadas categorias que revitalizaram os sindicatos. Aconteceu, também, o aprendizado superior das greves gerais dos anos oitenta. Houve os comícios imponentes de Lula em 1989, com centenas de milhares de pessoas nas ruas. A luta dos aposentados depois do plano Zélia/Collor comoveu o país. Sem esquecer a greve histórica dos petroleiros de 1995, a marcha do MST de 1997 sobre Brasília, um ano depois do massacre de Eldorado de Carajás, e tantas outras lutas populares. Mas, nesses combates parciais a classe trabalhadora brasileira sempre foi mais radical em suas ações do que em suas reivindicações. Moveu montanhas, para reivindicar muito pouco. O horizonte de sua resistência defensiva era a defesa do salário devorado pela inflação, um pouco de terra para assentar famílias ou construir uma casa, a defesa das aposentadorias ou, quando muito, mais verbas para educação e saúde.
Somente por duas vezes, nesse intervalo histórico de três décadas de crescente confiança na direção de Lula, do PT e da CUT, as massas populares conseguiram irromper na cena política com a força grandiosa de sua mobilização política nas ruas, ameaçando o governo de plantão. De resto, a massa do povo, incluindo os setores da classe trabalhadora mais organizados, aceitaram os limites da democracia liberal que estabelece que a mudança deve ser esperada, disciplinadamente, de dois em dois anos. Seu programa, mesmo quando agiam com métodos revolucionários – derrubar governos nas ruas é uma ação revolucionária, mesmo quando as mobilizações são pacíficas - era reformista.
A mobilização por objetivos políticos foi, portanto, incomum, inusitada, o Brasil não é a Bolívia. Para derrubar governos odiados, então, foi excepcional. As massas populares e a juventude descobriram nas Diretas e no Fora Collor que sua ação era poderosa, mas, ficou claro, também, com a posse de Sarney e de Itamar, que era mais fácil se juntarem contra Figueiredo e contra Collor, do que se unirem a favor de um projeto comum. O socialismo, uma referência vaga para milhões, não era mais que uma aspiração de maior justiça, sem que o ódio ao capitalismo tivesse ainda amadurecido, e mesmo na sua forma difusa, não era um programa que unificasse os trabalhadores e os setores médios plebeus. Foram às ruas expressando o gigantismo de sua força, imensas maiorias de pobres, remediados e deserdados em um país enorme, urbanizado em pouquíssimas décadas, e muito jovem. Instintivamente, procuraram as bandeiras igualitaristas, mas na forma de justiça social, não igualdade social, portanto, ainda nos limites da colaboração de classes.
Espreguiçaram-se, e a classe dominante tremeu, improvisando rapidamente um recuo organizado. Só depois das mobilizações de massas em 1984 e 1992, e não antes – o que faz toda a diferença, e ajuda a compreender a ausência de resistência a Lula em 2002 - a burguesia aceitou que a hora do fim do regime militar tinha chegado em 1984, ou que Collor era um aventureiro a ser descartado. As classes dominantes aprendem com a experiência histórica. Diante da crise do governo FHC, e vendo as rupturas provocadas pelas revoluções políticas nos países vizinhos da América do Sul, especialmente, na Argentina, aceitou que um governo Lula seria uma solução preventiva.
Em resumo, as massas fizeram muito em 1984 e 1992, mas para conquistar muito pouco: a estabilidade do regime democrático, ou seja, o princípio da alternância que foi, afinal, decisivo para a eleição do PT em 2002. Fizeram muito, mas não o fizeram de forma independente. Em 1984, o PT e Lula cumpriram um papel progressivo na co-direção da luta final contra a ditadura, mas tinham influência minoritária. Ainda assim, seus limites sociais (a tendência à submissão aos humores dos setores burgueses aliados) e políticos (um deslumbramento com as pressões democráticas da institucionalidade) já se manifestaram: vacilaram na hora decisiva – na convocação da greve geral no dia 25 de abril – quando a emenda foi a voto no Congresso, capitulando a um ultimato de Tancredo Neves.
Em 1992, quando já possuíam influência majoritária, o lugar de Lula e do PT foi regressivo, ou seja, reacionário: coube a eles o papel de bombeiros assegurando a posse de Itamar que era, fora de Minas, um ilustre desconhecido, embora estivesse, quase acidentalmente, na vice-presidência. A CUT, o PT e Lula se legitimaram nesse processo, mas a classe trabalhadora não estava nem social, nem politicamente à frente da maioria popular explorada. Não dirigia, foi acaudilhada. Nem as Diretas, nem o Fora Collor, foram construídas com uma plataforma que destacasse as reivindicações de classe. O programa que levou milhões à luta não era senão democrático. Não surpreende que os grandes combates se deram nos limites de alianças com dissidências burguesas, como o MDB de Ulysses Guimarães e Tancredo Neves em 1984, e Orestes Quércia e Brizola em 1992.
A burguesia brasileira, admitamos, demonstrou uma impressionante capacidade de adaptação e concertação. Suas frações mais lúcidas aceitaram sem pestanejar um acordo com o MDB de Tancredo Neves, descartando Maluf, e sacrificaram Collor, engolindo Itamar. Nas duas oportunidades, antes que milhões estivessem dispostos a ir às ruas, uma recessão terrível tinha se abatido sobre a nação. As duas recessões foram precipitadas por ondas de choque externo: a moratória mexicana de 1982 e a recessão mundial do início da década dos noventa. A classe trabalhadora e a juventude não toleraram o desemprego em larga escala, e o saqueio de seu padrão de vida, já por si, historicamente, muito baixo. Não esperaram o calendário eleitoral. Obtiveram vitórias parciais. As eleições diretas não vieram em 1985, mas Figueiredo não fez seu sucessor e o ciclo militar acabou. Não conquistaram eleições gerais em 1992, mas Collor caiu. Vitória parciais, quando era possível ir muito além, deixaram um sabor amargo para a vanguarda operária e socialista.
Mas este livro argumenta com razão que as posições políticas não são o único parâmetro para compreender o PT. Permanecem vivas as controvérsias de fatores para a apreciação histórica dos partidos políticos. Partidos podem ser julgados pela história de suas linhas políticas, as campanhas públicas em que se engajam, e de suas lutas políticas internas; pelo confronto entre suas posições quando estão na oposição, e quando estão no poder; pelo programa para a transformação da sociedade, ou até pelos valores e idéias que inspiram sua identidade; pela composição social de seus membros - militantes ou simpatizantes - ou dos seus eleitores, ou da sua direção; pelo regime interno do seu funcionamento; pelas formas de seu financiamento; ou pelas suas relações internacionais. Os partidos são sujeitos políticos coletivos, portanto, são uma representação das diferentes classes e frações de classe na luta pelo poder. Podem ou não ser úteis à luta pelo poder e por este critério devem ser, também, avaliados.
Todos estes critérios são válidos, e a construção de uma síntese exige uma apreciação da sua dinâmica de evolução. Porque, como tudo que existe, os partidos se transformam e, não poucas vezes, estas mudanças são de tal forma qualitativas, ou estarrecedoras, que eles se tornam irreconhecíveis, quando comparados ao que foram originalmente. Só não se pode é julgar um partido por aquilo que ele pensa sobre si próprio. Para aqueles que usam o marxismo como método de análise das relações sociais e políticas, todos estes elementos são significativos, mas uma caracterização de classe é, finalmente, inescapável, para um juízo dos partidos políticos. Não é um mérito menor deste livro enfrentar com coragem este desafio.
Existem, grosso modo, dois caminhos teóricos para o marxismo tentar explicar como o PT se transformou em um apêndice do lulismo, ou seja, em um partido que consegue, por exemplo, atrair um volume maior de doações dos capitalistas, nas eleições presidenciais de 2010, para a candidata que Lula escolheu e impôs ao partido, Dilma Rousseff, do que a candidatura Serra. Estes dois caminhos não se excluem, ao contrário, se completam.
Para se decifrar o PT, reconhecendo-o como uma singularidade histórica, ou seja, como um problema instigante, porque original, pode-se recorrer aos instrumentos de uma análise político-sociológica: essa análise, mais atenta às mudanças estruturais da natureza social do partido, vai recortar no objeto de estudo, por exemplo, as posições políticas do partido e a evolução de suas bases sociais de apoio, entre eles o apoio eleitoral, e de financiamento, para concluir o que mudou no caráter de classe do partido.
Considerado este ângulo político-sociológico, este livro nos dirá que o PT nasceu como um partido operário com influência minoritária de massas até 1987, e majoritária na classe trabalhadora a partir de 1989; com uma corrente majoritária na direção, desde a fundação, liderada por um bloco político que uniu uma fração da burocracia sindical com aspirações de classe pequeno-burguesas, com um coletivo de líderes de origem na intelectualidade militante que veio da geração de 68, ou acadêmica; um núcleo dirigente que aceitava o papel de caudilho de Lula, simultaneamente, como porta-voz público e como Bonaparte interno de suas variadas agrupações; um programa democrático-radical de reformas, ou seja, de regulação social do capitalismo, que se convencionou denominar de democrático-popular; relações internacionais híbridas que uniam o apoio de uma parcela da hierarquia católica, via Holanda e Alemanha (com relações institucionais minoritárias no Vaticano), o apoio de uma parcela da social-democracia internacional (via PS francês e SPD alemão), o apoio de uma parcela do aparelho estalinista internacional (via Cuba e, posteriormente, da Alemanha Oriental); e, finalmente, mas não menos importante, com uma ala esquerda muito fragmentada em diversas organizações, porém, com a peculiaridade da presença de alguns milhares de trotskistas. Este critério irá valorizar a relação da CUT com os Fundos de pensão a partir dos anos noventa, em plena era das privatizações.
Mas uma interpretação político-sociológica seria estéril sem um enfoque histórico. É o que este livro nos apresenta também. Era presumível que a maioria do povo trabalhador e das novas classes médias urbanas depositassem esperanças, depois das eleições da Constituinte de 1986, e da consolidação de um calendário eleitoral estável, com direito à alternância, no dinamismo de um país que sempre mudou pouco e muito lentamente, mas mudava. A obra da urbanização gerou o maior parque industrial entre os países periféricos, e construiu no entorno de dez mega-cidades, grandes regiões metropolitanas com mais de um milhão de pessoas.
Uma maioria do povo reconciliou-se com o resultado do Colégio eleitoral de 1985. Uma avalanche votou no PMDB do plano Cruzado em 1986. Para Sarney foi um fogo de palha: ardeu, intensamente, pelo sucesso temporário do congelamento dos preços. Súbito, apagou, porque a inflação voltou e mais inflamada. Sarney chegou ao poder com enorme apoio no Congresso Nacional, mas refém do PMDB, e tendo que administrar um país em situação pré-revolucionária. Depois foi a hora do PT, em São Paulo, com Erundina. A parcela mais radicalizada do povo votou PT para dizer basta a Sarney, um voto de protesto contra a superinflação, exasperado em função da invasão da CSN pelo Exército em 1988. O país se dividiu em 1989, mas, de novo, uma maioria arriscou em Collor. Confiaram em Fernando Henrique Cardoso em 1994, pelo plano Real, e ainda em 1998, como um crédito pela estabilização da moeda.
Não obstante a pressão de inércia reacionária de um país culturalmente muito atrasado, onde o medo de represálias sempre foi muito efetivo para neutralizar a ação coletiva do povo, e politicamente pouco organizado, a maioria da classe trabalhadora organizada nos sindicatos foi evoluindo à esquerda, aceleradamente, nos anos oitenta, e chegou a protagonizar duas greves gerais, em 1987 e 1989 que, ainda quando parciais, conseguiram dimensão nacional. Das ilusões no PMDB girou para a oposição ao governo Sarney, e levou Lula ao segundo turno em 1989. Já as classes médias urbanas evoluíram à esquerda nos anos finais da ditadura, mas depois se dividiram: uma maioria deslocou-se para o apoio a Collor em 1989, e depois sustentou com euforia o apoio ao plano Real. Depois da desvalorização da moeda em 1999, os setores médios se afastaram, lentamente, do governo FHC e do PSDB, que sangravam com sucessivos escândalos de corrupção, enquanto o PT girava à direita, despudoradamente, e se aproximaram de Lula. Acabaram por se encontrar somente em 2002.
A maioria do povo desorganizado permaneceu como base eleitoral dos partidos burgueses, herdeiros da Arena e do PMDB, ao longo dos vinte anos que separaram 1982, quando voltaram a ocorrer eleições para governadores, e 2002 quando Lula foi eleito. Em resumo: primeiro, nos anos oitenta, os setores organizados do proletariado e a juventude estudantil, mas, depois, com o passar dos anos, na virada do século, as classes médias e as maiorias populares apostaram, também, na mudança de suas vidas pela representação política que o PT e Lula ofereciam, porém, sempre por dentro das regras do regime democrático. Uma promessa de reformas com poucos riscos de confronto com os poderosos interesses do capital.
O contraste entre a experiência dos seus pais, entre as décadas de 1950 e 1980, e das últimas três décadas parece, hoje, devastador. Cada geração retira conclusões refletindo, comparativamente, sobre um repertório de lições herdadas. A terrível, porém, inescapável lição de que a vida não vai melhorar sem luta, se abate sobre os ombros de milhões de sacrificados pelo desemprego em suas famílias; pelas seqüelas do retorno de epidemias antes erradicadas, como a pneumonia e a dengue; pelos salários congelados; pelo colapso da escola pública; pelo aumento da delinqüência; pelo esgotamento da migração para os EUA, Europa e Japão; e, finalmente, pela desmoralização das organizações e descrédito dos líderes em que confiaram.
A reeleição de Lula em 2006 foi alicerçada nos ventos favoráveis da situação econômica mundial entre 2003-2007, sobretudo, a preservação da inflação baixa e a diminuição do desemprego que permitiram o acesso ao crédito, e a extensão de políticas públicas como o Bolsa-Família. A etapa de aprendizado sindical-parlamentar – cunhada na tradição marxista como a estratégia alemã, por analogia com a história da socialdemocracia mais poderosa do mundo – só se esgota no calor de uma situação revolucionária que ainda não se abriu. A colaboração de classes é um projeto que renasce uma e outra vez, enquanto os trabalhadores não ganharem suficiente confiança em si mesmos e suas lutas. As massas podem abandonar seus chefes de ontem, sem renunciar às quimeras de seus sonhos. Podem, também, se reconciliar com líderes que as decepcionaram. Os trabalhadores precisam encontrar um ponto de apoio político-sindical, como foi o processo que levou o PCB a se tornar em partido com influência de massas depois de 1945, ou sindical-político, como foi o processo entre 1978-1984 que originou o PT e levou a que ele substituísse a direção anterior, o PCB de Prestes, mas, em suma, uma nova direção, para sepultar suas expectativas.
Ao longo destes trinta anos, o PT se manteve como o partido de maior influência no movimento operário e sindical, contudo, com uma perda de apoio entre os setores mais combativos, em especial, na juventude e entre o sindicalismo do funcionalismo público. Entre os anos oitenta e noventa o PT ampliou a sua audiência nas classes médias urbanas e, sobretudo, deixou de ser uma preocupação para a burguesia brasileira que já o sustentou, materialmente, nas eleições presidenciais de 1994. Entre 1994 e 2002, via Fundos de Pensão e através das participações na gestão de Fundos públicos, a burocracia sindical da CUT, ainda o principal aparelho de apoio social da direção do PT, entrou no mundo dos negócios. Depois da eleição de 2002, o PT passou a ter relações orgânicas com o grande capital brasileiro, e passou a aceitar, depois de 2005, com a crise do mensalão, o novo papel cesarista de Lula como líder incondicional.
Outro caminho para construir uma história do PT seria uma análise histórico-política do partido: essa análise, mais atenta às transformações programáticas e à localização político-social, vai recortar uma periodização da relação do partido com o Estado, o regime político e os governos, para concluir o que mudou na posição que o partido ocupa na sociedade. Considerado este ângulo histórico social, a história do PT pode ser dividida em cinco fases qualitativamente distintas:
(a) entre 1980 e 1985, o PT foi um partido de oposição ao regime militar e ao governo Figueiredo, e principal impulsionador de todas as lutas sociais contra a ditadura e, assim, conquistou a liderança nos movimentos sociais, deslocando o papel que antes de 1964 pertencia ao PCB;
(b) depois da eleição de Sarney no Colégio Eleitoral e, depois da eleição da Constituinte em 1986, mas, sobretudo depois das eleições municipais de 1988, o PT deixou de ser um partido de oposição ao regime, agora um regime democrático-eleitoral, mas continuou sendo um partido de oposição intransigente ao governo, ainda que pressionado à colaboração institucional nos limites da ordem legal;
(c) depois da eleição de Collor em 1989 e, acentuadamente, depois das eleições para os governos estaduais de 1990, o PT deixou de ser um partido de oposição sistemática ao governo Collor. Por isso, a direção do PT se recusou a tomar a iniciativa para começar uma campanha pelo Fora Collor em 1991, quando do 1º Congresso, mas depois que a campanha ganhou sustentação de massas nas ruas em agosto de 1992, apesar do PT, a apoiou;
(d) depois da eleição de FHC em 1994, até 2002, o PT manteve a posição de oposição parlamentar, porém, recusando-se a mobilizar a sua base social de apoio para tentar impedir o governo FHC de governar, mesmo quando em 1999, se abriu a possibilidade de fazer contra FHC um movimento semelhante ao que foi feito contra Collor. Foi nesse processo que se consolidou a liderança de José Dirceu;
(e) finalmente, depois da vitória de Lula, ou mais precisamente depois da Carta aos brasileiros em julho de 2002, ao se transformar em partido de governo, o PT passou a ser o principal suporte da contenção social para garantir a governabilidade de Lula. Foi o governo Lula que freiou, conteve e depois anulou a dinâmica histórica que evoluía na transição de uma situação pré-revolucionária para revolucionária como na Argentina, Venezuela, Bolívia e Equador. O PT foi o partido dirigente do governo Lula que conseguiu, entre 2003 e 2010 - sobretudo depois de 2006 – a estabilização política do regime democrático eleitoral: nenhum dos governos eleitos depois de 1989, nem Collor, nem Itamar, nem Fernando Henrique Cardoso tinha logrado de forma tão duradoura uma aceitação política tão grande, e uma neutralização tão bem sucedida do protesto operário e popular.
Periodizações são discutíveis, mas em um livro de história são inescapáveis. Escrever uma contribuição séria à história do PT não é uma tarefa simples por muitas razões. A primeira e, evidentemente, a mais importante é que o PT permanece sendo o partido mais influente do país. Não obstante essa popularidade, a perspectiva histórica obedece a critérios e tempos diferentes da velocidade vertiginosa da política. A política tem o tempo rápido das flutuações dos humores das classes sociais. Esses humores mudam.
Mudam em função de muitos fatores, em algumas circunstâncias mais rapidamente e, em outras, mais lentamente, porém, mudam. Sarney foi muito popular durante alguns meses de congelamento dos preços em 1986. Collor foi muito popular quando conseguiu controlar a inflação nos meses do primeiro semestre de 1990. Um livro de história equilibrado não deve se curvar diante dos impressionismos das circunstâncias. Deve ir além e procurar desvendar os novelos do fio de Ariadne que permitem sair do labirinto das pressões do presente.
Este é um livro crítico e polêmico de interpretação do PT. Ele apresenta uma hipótese de explicação para a evolução das posições políticas e programáticas da direção do PT que repousa em uma análise das pressões de classe a que o Partido esteve submetido. A dinâmica de adaptação do PT ao regime democrático eleitoral será apresentada simultaneamente ao processo de burocratização de uma geração de ativistas que ascendeu socialmente através da política e se integrou às classes médias acomodadas.
Este livro nos apresenta a história de um partido que, paradoxalmente, nasceu de uma combinação rara de virtu e fortuna, oportunidade e coragem. Aproveitou as possibilidades abertas pela formação de uma nova geração de trabalhadores em processo de industrialização acelerada. Conseguiu atrair amplas parcelas das classes médias desgastadas por duas décadas de ditadura. Da oposição à ditadura militar, evoluiu para oposição ao governo Sarney, mas passou a defender o regime democrático, o que o levou a hesitar na hora da luta para derrubar Collor e, finalmente, colocou-se ao lado da institucionalidade apoiando a posse de Itamar. O giro à direita da direção do PT foi tão rápido que sacrificou dez anos: renunciou à defesa de eleições gerais em 1992, pensando que poderia vencer as eleições em 1994. Só chegou a Brasília com as eleições de 2002.
Toda história política séria é a história de uma luta pelo poder. O imponente na luta da classe trabalhadora pelo poder é que ela vive uma tripla condição de exploração econômica, opressão cultural e dominação política. Por isso é tão dramaticamente difícil. Nas sociedades contemporâneas dos paises centrais, após mais de meio século de estabilidade de calendários eleitorais previsíveis, a luta política tem a aparência de uma rotineira luta entre partidos. E essa luta se resume a uma coreografia aborrecida, e até penosa, de disputa de espaços entre aparelhos eleitorais cada vez mais iguais uns aos outros. Aparelhos que não merecem muita confiança porque, quando chegam ao poder, fazem o contrário do que tinham se comprometido.
Resumo da ópera: o engano no lugar da coerência, a dissimulação no da integridade, o disfarce no da transparência, a máscara no da honradez, enfim, o ardil, a fraude, a falcatrua, no lugar da retidão, da inteireza, da honestidade. A alternância de governos não parece entusiasmar mais ninguém. Nem os defensores do regime democrático que se esforçam em teorizar a sua necessidade, apesar da miséria da corrupção endêmica.
Se todas as lutas operárias e populares do mundo contemporâneo merecem ser preservadas do esquecimento pelo que guardam de admirável, a luta pelo poder, que é quando a classe trabalhadora se eleva acima do patamar das resistências para abraçar a transformação da sociedade, tem algo de grandioso. Se a história do PT teve um início emocionante nos anos setenta, e uma trajetória corajosa nos oitenta, perdeu o impulso nos anos noventa. E o PT que assumiu o governo com Lula em 2002 não merece ser poupado de um julgamento histórico severo. Um ciclo histórico se completou, e a oportunidade do PT ser uma ferramenta para mudar o Brasil a favor da classe trabalhadora e da maioria do povo se perdeu. Outras já estão sendo construídas.
Por último, não posso deixar de dizer ao leitor da minha estima por Cyro Garcia. Meu afeto não deixou de crescer ao longo destes últimos trinta anos. Filho da classe trabalhadora, Cyro foi bancário durante décadas. Foi sempre um ativista incansável. Nos anos oitenta era impensável uma grande manifestação nas ruas da Avenida Rio Branco no Rio de Janeiro sem que Cyro Garcia estivesse em cima do carro de som comandando a agitação. Cyro foi presidente de um dos maiores sindicatos do país e não se deixou corromper pelas pressões do aparelho sindical. Foi deputado federal e não cedeu às pressões parlamentares. Cyro voltou para a Universidade para estudar e concluiu um doutorado na UFF, e hoje é professor universitário de história. Carioca da gema, boa praça como se dizia, antigamente, Cyro é conhecido pelo seu indestrutível bom humor. Este primeiro livro de Cyro Garcia testemunha que o trabalho intelectual pode se unir à militância política com resultados estupendos. Porque a trajetória pessoal de Cyro é indivisível da história da CUT e do PT do Rio de Janeiro. Por último, Cyro é um dos mais honestos militantes revolucionários que conheci.
Valerio Arcary, professor do IFSP (Instituto Federal de São Paulo), é autor de As Esquinas Perigosas da História, situações revolucionárias em perspectiva marxista