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Slavoj Zizek

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Oslo: com amigos como Breivik, a Europa não precisa de inimigos

Slavoj Zizek - Publicado: Quinta, 25 Agosto 2011 02:00

Slavoj Žižek


Há coisas que deveriam nos fazer pensar na autojustificação ideológica de Anders Behring, bem como nas reações ante seu ato homicida. O manifesto desse “caçador marxista” cristão que matou mais de setenta pessoas em Oslo não corresponde exatamente ao disparate de um lunático; ele é apenas uma consequente exposição da “crise da Europa”, que serve como o fundamento (mais ou menos) implícito do nascente populismo anti-imigração – suas próprias inconsistências são sintomas das contradições internas dessa visão. A primeira coisa que de fato salta aos olhos é como Breivik constrói seu inimigo: pela combinação de três elementos (marxismo, multiculturalismo, islamismo), cada um pertencente a um espaço político diferente: esquerda radical marxista, liberalismo multicultural, fundamentalismo religioso islâmico. O velho hábito fascista de atribuir ao inimigo características mutuamente excludentes (“Conspiração judaico-bolchevique plutocrática” – Esquerda radical bolchevique, capitalismo plutocrático, identidade étnico-religiosa) é retomado aqui sob um novo disfarce.

Ainda mais sugestiva é a maneira como a autodesignação de Breivik embaralha as cartas da ideologia radical de direita. Breivik defende o cristianismo, mas continua sendo um agnóstico: para ele, o cristianismo não passa de um constructo cultural em oposição ao islã; é antifeminista e pensa que as mulheres deveriam ser dissuadidas de buscar uma educação superior, mas defende uma sociedade “laica”, apoia o aborto e se declara pró-gay. Seu predecessor a esse respeito foi o político holandês Pim Fortuyn, o populista de direita assassinado no início de maio de 2002, duas semanas antes das eleições nas quais se esperava que tivesse um quinto dos votos. Fortuyn era uma figura sintomática paradoxal: um populista de direita cujas características pessoais, e até mesmo (a maioria de) suas opiniões, eram de uma perfeição quase “politicamente correta”: ele era gay, tinha boas relações pessoais com muitos imigrantes, exibia um senso inato de ironia etc. ­– em suma, era um bom liberal e tolerava tudo, exceto sua postura política básica. O que incorporava, portanto, era a interseção entre o populismo direitista e a correção política liberal – talvez tivesse de morrer por ser a prova viva de que a oposição entre o populismo de direita e a tolerância liberal era falsa, isto é, que estamos lidando com os dois lados da mesma moeda.

Além disso, Breivik combina características nazistas (também nos detalhes – por exemplo, sua afinidade com o sueco Saga, o cantor folk pró-nazista) com a aversão a Hitler: um de seus heróis é Max Manus, líder da resistência antinazista da Noruega. Por fim, mas não menos importante, Breivik é abertamente racista, mas pró-semita e pró-Israel, posto que o Estado de Israel é a primeira linha de defesa contra a expansão muçulmana – ele até quer ver o Templo de Jerusalém reconstruído. Sua figura realiza o derradeiro paradoxo de um “nazirracista pró-semita” – como é possível?

Uma chave nos é dada pelas reações da direita europeia ao ataque de Breivik, cujo mantra foi que, ao condenar seu ato homicida, não deveríamos nos esquecer de que ele abordava “preocupações legítimas sobre problemas legítimos” – a política dominante não está conseguindo lidar com a corrosão da Europa por parte da islamização e do multiculturalismo, ou, citando o The Jerusalem Post, deveríamos usar a tragédia de Oslo “como uma oportunidade para reavaliar seriamente as políticas de integração de imigrantes na Noruega e em outros lugares” (Editorial sobre o Desafio da Noruega, 24/7/2011). (A propósito, seria interessante ouvir uma apreciação semelhante em relação aos atos terroristas palestinos, algo do tipo “esses atos terroristas deveriam servir como uma oportunidade para reavaliar a política israelense”.) Obviamente, há uma referência a Israel implícita nessa avaliação: um Israel “multicultural” não tem chance de sobreviver, o apartheid é a única opção realista. O preço para esse pacto sionista-direitista é que, para justificar a reivindicação à Palestina, é preciso reconhecer retroativamente a linha de argumentação que foi usada previamente, no início da história europeia, contra os judeus: o acordo implícito é que “estaremos prontos para reconhecer sua intolerância para com outras culturas em seu meio uma vez que reconheça nosso direito de não tolerar palestinos em nosso meio”. A trágica ironia desse acordo implícito é que, na história europeia dos últimos séculos, os próprios judeus foram os primeiros “multiculturalistas”: o problema deles era como sobreviver com sua cultura intacta em lugares onde outra cultura fosse dominante. (A propósito, deve-se notar aqui que, na década de 1930, em resposta direta ao antissemitismo nazista, Ernest Jones, o principal agente da “gentrificação” da psicanálise, engajou-se em reflexões estranhas sobre a porcentagem da população estrangeira que um organismo nacional pode tolerar em seu meio sem colocar em perigo sua própria identidade, aceitando com isso a problemática nazista.)

Mas e se estivermos entrando numa nova era na qual irá se impor esse novo raciocínio? E se a Europa tivesse de aceitar o paradoxo de que sua abertura democrática é baseada na exclusão: “não há liberdade para os inimigos da liberdade”, como afirmou Robespierre num passado distante? A princípio, isso é verdade, é claro, mas é neste ponto que precisamos ser bem específicos. De certo modo, Breivik escolheu corretamente seu alvo: não atacou estrangeiros, mas sim pessoas da sua própria comunidade, tolerantes para com estrangeiros intrusos. O problema não é os estrangeiros, mas nossa própria identidade (europeia).

Embora a contínua crise da União Europeia se pareça com uma crise econômico-financeira, ela é, em sua dimensão fundamental, uma crise político-ideológica: o fracasso dos referendos sobre a constituição da UE há alguns anos foi um sinal claro de que os eleitores encaravam a UE como uma união econômica “tecnocrática”, carente de qualquer visão que pudesse mobilizar as pessoas – até os protestos recentes, a única ideologia capaz de mobilizá-las era a defesa anti-imigração da Europa.

Os ataques recentes de homofobia nos Estados pós-comunistas do Leste Europeu deveriam nos servir como um momento de reflexão. No início de 2011, houve uma parada gay em Istambul onde milhares de pessoas saíram em paz, sem nenhuma violência ou outros distúrbios; nas paradas gays que aconteceram na mesma época na Sérvia e na Croácia (Belgrado, Split), a polícia não foi capaz de proteger os participantes, que foram ferozmente atacados por milhares de violentos fundamentalistas cristãos. Esses fundamentalistas, não a Turquia, representam a verdadeira ameaça ao legado europeu; desse modo, quando a UE praticamente bloqueou a entrada da Turquia, deveríamos fazer a pergunta óbvia: que tal aplicar as mesmas regras ao Leste Europeu?  (Isso sem falar no fato estranho de que a principal força por trás do movimento antigay na Croácia é a Igreja Católica, bem famosa por diversos escândalos de pedofilia.)

É crucial colocar o antissemitismo dentro dessa série, como um dos elementos ao lado de outras formas de racismo, sexismo, homofobia etc. Para fundamentar sua política sionista, o Estado de Israel está cometendo um erro catastrófico: decidiu-se subestimar, se não ignorar completamente, o “antigo” antissemitismo (tradicional europeu), concentrando-se em seu lugar no “novo” e alegadamente “progressivo” antissemitismo mascarado como a crítica da política sionista do Estado de Israel. Nesse sentido, Bernard Henri-Levy em seu The Left in Dark Times [Esquerda em tempos sombrios], afirmou recentemente que o antissemitismo do século XXI será “progressivo”; do contrário, não haverá nenhum. Levada até o fim, essa tese nos obriga a modificar a velha interpretação marxista do antissemitismo como um anticapitalismo mistificado/deslocado (em vez de culpar o sistema capitalista, a fúria é voltada para um grupo étnico específico acusado de corromper o sistema): para Henri-Levy e seus partidários, o anticapitalismo de hoje é uma forma disfarçada de antissemitismo.

A proibição implícita, mas não menos eficiente, de atacar o “velho” antissemitismo está ocorrendo no momento exato em que o “velho” antissemitismo está retornando em toda a Europa, especialmente nos países pós-comunistas do Leste Europeu. Podemos observar uma estranha aliança semelhante nos Estados Unidos: como podem os fundamentalistas cristãos dos Estados Unidos que, por assim dizer, são antissemitas por natureza, agora apoiarem intensamente a política sionista do Estado de Israel? Há apenas uma solução para este enigma: não que os fundamentalistas dos Estados Unidos tenham mudado; o próprio sionismo, em sua aversão aos judeus que não se identificam plenamente com a política do Estado de Israel, paradoxalmente tornou-se antissemita, isto é, construiu a figura do judeu que duvida do projeto sionista ao longo de linhas antissemitas. Israel, nesse caso, está fazendo um jogo perigoso: a Fox News, principal voz da direita radical nos Estados Unidos e apoiadora convicta do expansionismo israelense, recentemente teve de rebaixar seu apresentador mais popular, Glenn Beck, cujos comentários estavam se tornando abertamente antissemitas.

O argumento sionista padrão contra os críticos das políticas do Estado de Israel é que, obviamente, como qualquer outro Estado, o de Israel pode e deveria ser julgado e por fim criticado, mas as críticas de Israel fazem mau uso da política israelense de crítica justificada para fins antissemitas. Quando os fundamentalistas cristãos e defensores incondicionais da política israelense rejeitam as críticas esquerdistas das políticas israelenses, sua linha de argumentação implícita não é melhor representada por um maravilhoso cartum publicado em julho de 2008 no diário vienense Die Presse: ele mostra dois austríacos troncudos com pinta de nazistas; um deles segura um jornal e comenta com o amigo: “Veja só como o antissemitismo totalmente justificado está sendo mal usado para uma crítica barata de Israel!” Repetindo: como chegamos a esse ponto?

Há um século, Gilbert Keith Chesterton usou claramente o impasse fundamental das críticas religiosas: “Homens que começam a lutar contra a Igreja em benefício da liberdade e da humanidade acabam jogando fora a liberdade e a humanidade, só para com isso combater a Igreja. [...] Os laicos não destruíram coisas divinas, mas destruíram coisas laicas, se isso lhes serve de consolo”. O mesmo não se aplica aos próprios defensores da religião? Quantos defensores religiosos fanáticos começaram atacando ferozmente a cultura secular contemporânea e acabaram renunciando qualquer experiência religiosa significativa? De maneira semelhante, muitos guerreiros liberais são tão ansiosos para combater o fundamentalismo antidemocrático que acabam jogando fora a liberdade e a democracia, só para com isso combater o terror. Se os “terroristas” estão prontos para destruir o mundo por amor a outro mundo, nossos guerreiros contra o terror estão prontos para destruir seu próprio mundo democrático pelo ódio ao mundo muçulmano. Alguns prezam tanto a dignidade humana que estão prontos para legalizar a tortura – a suprema degradação da dignidade humana – para defendê-la… E o mesmo não se aplica também ao advento recente dos defensores da Europa contra a ameaça de imigração? No seu zelo de proteger o legado judaico-cristão, os novos zelotes estão dispostos a abandonar o verdadeiro cerne do legado cristão. A verdadeira ameaça ao legado europeu são as pessoas como Breivik, o autoproclamado defensor da Europa que matou “por amor” à Europa: com amigos como esse, a Europa não precisa de inimigos. Se Breivik levasse realmente a sério seu amor pela Europa, deveria ter seguido o conselho de seu pai e matado a si próprio.

O advento do ressentimento anti-imigração tem de ser visto contra o pano de fundo de um rearranjo a longo prazo do espaço político na Europa Oriental e Ocidental. Até pouco tempo, o espaço político dos países europeus era dominado por dois partidos principais voltados para todo o corpo eleitoral: um partido de centro-direita (cristão-democrata, liberal-conservador, popular) e um partido de centro-esquerda (socialista, social-democrata), com partidos menores voltados para um eleitorado mais restrito (ecologistas, comunistas etc.). Os últimos resultados eleitorais tanto na parte Ocidental quanto na Oriental indicam o surgimento gradual de uma polaridade diferente. Há um partido centrista predominante que representa o capitalismo global em si, geralmente com uma agenda cultural liberal (tolerância ao aborto, aos direitos dos homossexuais, às minorias étnicas e religiosas etc.). Em oposição a esse partido está um partido populista anti-imigração cada vez mais forte que, em suas margens, está acompanhado de grupos neofascistas claramente racistas. O caso mais exemplar está na Polônia: depois do desaparecimento dos ex-comunistas, as principais organizações políticas são o partido liberal, centrista e “anti-ideológico” do primeiro-ministro Donald Dusk e o partido cristão conservador dos irmãos Kaczynski. Tendências similares são visíveis na Holanda, Noruega, Suécia, Hungria… Pela terceira e última vez, como chegamos a esse ponto?

Depois da desintegração dos regimes comunistas em 1990, entramos numa nova era em que a forma predominante do exercício do poder estatal tornou-se uma despolitizada coordenação e administração especializada dos lucros. A única forma de introduzir paixão nesse campo, de mobilizar as pessoas ativamente, é pelo medo: medo de imigrantes, medo do crime, medo da ímpia depravação sexual, medo do Estado excessivo (com uma sobrecarga de altos impostos e controle), medo da catástrofe ecológica, mas também medo do assédio (o politicamente correto é a forma liberal exemplar da política do medo). Tal política sempre se baseia na manipulação de um ochlos paranoico – a correria assustadora de homens e mulheres assustados. Por essa razão, o grande acontecimento da primeira década do novo milênio se deu quando a política anti-imigração se tornou predominante e finalmente cortou o cordão umbilical que a ligava aos partidos marginais de extrema-direita. Da França à Alemanha, da Áustria à Holanda, no novo espírito do orgulho pela própria identidade cultural e histórica, os principais partidos agora consideram aceitável enfatizar que os imigrantes são convidados que se acomodam aos valores culturais que definem a sociedade anfitriã – “este é o nosso país, ame-o ou deixe-o”.

Os liberais progressivos, obviamente, estão apavorados com esse racismo populista. No entanto, um exame mais minucioso revela como sua tolerância multicultural e seu respeito às diferenças (étnicas, religiosas, sexuais) compartilham com os anti-imigração a necessidade de manter os outros a uma distância apropriada. “Tudo bem com os outros, eu os respeito, desde que não invadam demais meu próprio espaço, pois quando fazem isso, me incomodam – com seu cheiro, sua fala suja, seus modos vulgares, sua música, sua culinária… apoio totalmente ações que afirmem os negros, mas não estou disposto a ouvir rap no último volume.” No mercado atual, encontramos uma série ampla de produtos desprovidos de suas propriedades malignas: café sem cafeína, cremes sem gordura, cerveja sem álcool… e a lista continua: que tal sexo virtual enquanto sexo sem sexo, a doutrina de Colin Powell da guerra sem baixas (do nosso lado, é claro) enquanto guerra sem guerra, a redefinição contemporânea da política como arte da administração especializada enquanto política sem política, até chegar ao atual multiculturalismo liberal tolerante enquanto experiência do Outro destituído de sua Alteridade – o Outro descafeinado que executa danças fascinantes e tem uma abordagem holística ecologicamente sólida da realidade, ao passo que características como a violência contra esposas continuam longe de vista…

O mecanismo dessa neutralização foi mais bem formulado em 1938 pelo francês Robert Brasillach, intelectual fascista condenado e fuzilado em 1945, que se considerava um antissemita “moderado” e inventou a fórmula do “antissemitismo razoável”: “Concedemos-nos a permissão de aplaudir Charlie Chaplin, um meio-judeu, nos filmes; de admirar Proust, um meio-judeu; de aplaudir Yehudi Menuhin, um judeu; e a voz de Hitler é transferida por ondas de rádio cujo nome homenageia o judeu Hertz. [...] Não queremos matar ninguém, nem organizar nenhum pogrom. Mas também pensamos que a melhor forma de impedir as ações sempre imprevisíveis do antissemitismo instintivo é organizando um antissemitismo razoável”. Não seria esta a mesma atitude presente na forma de lidar dos nossos governantes com a “ameaça imigrante”? Depois de rejeitar, como se tivessem razão, o claro racismo populista como “irracional” e inaceitável para nossos padrões democráticos, eles endossam medidas de proteção “razoavelmente” racistas… ou, como nos dizem os Brasillachs atuais, alguns deles social-democratas: “Concedemos-nos a permissão de aplaudir atletas africanos e do Leste Europeu, médicos asiáticos, programadores de softwares indianos. Não queremos matar ninguém, nem organizar nenhum pogrom. Mas também pensamos que a melhor forma de impedir as violentas e sempre previsíveis medidas de defesa anti-imigração é organizando uma proteção anti-imigração razoável”. Essa visão de desintoxicação do vizinho apresenta uma passagem clara da barbárie descarada à barbárie com um rosto humano. Ela pratica o retrocesso de um amor cristão pelo vizinho ao pagão que privilegia sua tribo (gregos, romanos) em oposição ao Outro bárbaro. Ainda que mascarada sob a defesa dos valores cristãos, esta é, em si, a maior ameaça ao legado cristão.

Obviamente, há mais um passo crítico a ser dado: a crítica do racismo anti-imigração deveria ser radicalizada na autocrítica, questionando a cumplicidade da forma predominante de multiculturalismo com aquela que ela critica. Em sua maioria, as críticas da onda anti-imigração limitam-se ao ritual incessante de confessar os próprios pecados da Europa, de aceitar humildemente as limitações do legado europeu e de celebrar a riqueza de outras culturas. Os famosos versos de “Second Coming” [A segunda vinda], de William Butler Yeats, portanto, parecem exprimir perfeitamente as circunstâncias atuais: “Aos melhores falta toda convicção, enquanto os piores estão cheios de uma apaixonada intensidade”. Trata-se de uma excelente descrição da ruptura atual dos liberais anêmicos e os fundamentalistas fervorosos, entre os muçulmanos e os nossos próprios cristãos. “Os melhores” já não são plenamente capazes de se engajar, enquanto “os piores” se engajam no fanatismo racista, religioso e sexista. Como romper com esse impasse?

Em vez de bancar a bela alma lamentando o surgimento recente da Europa racista que tais declarações anunciam, deveríamos direcionar nosso olhar crítico para nós mesmos, perguntando até que ponto nosso próprio multiculturalismo abstrato contribuiu para esse triste estado de coisas. Se todos os lados não compartilharem ou respeitarem a mesma civilidade, então o multiculturalismo transformar-se-á em ódio ou ignorância mútua legalmente regulamentada. O conflito sobre o multiculturalismo já é um conflito sobre a Leitkultur: não é um conflito entre culturas, mas um conflito entre visões diferentes de como culturas diferentes podem e devem coexistir, sobre as regras e práticas que essas culturas devem compartilhar se quiserem coexistir.

Deveríamos, portanto, evitar sermos apanhados no jogo liberal do “com quanta tolerância podemos arcar” – devemos tolerar quando não mandam seus filhos para as escolas públicas, quanto forçam suas mulheres a se vestirem e se comportarem de certa maneira, quando arranjam casamentos para os filhos, quando agridem gays entre seus grupos? Nesse nível, obviamente, nunca somos tolerantes o suficiente, ou somos sempre tolerantes demais, negligenciando os direitos das mulheres etc. A única maneira de romper com esse impasse é propor um projeto positivo universal compartilhado por todos os interessados, e lutar por ele. São muitas as lutas em que “não há homens nem mulheres, tampouco judeus ou gregos”, da ecologia à economia.

Nos seus últimos anos, Sigmund Freud expressou sua perplexidade diante da pergunta: o que quer uma mulher? Hoje, nossa questão é outra: o que quer a Europa? Na maioria das vezes, ela age como um regulador do desenvolvimento capitalista global; outras vezes, flerta com a defesa conservadora de sua tradição. Ambos os caminhos levam à anistia, à marginalização da Europa. A única saída desse impasse debilitante é que a Europa resuscite seu legado da emancipação radical e universal. A tarefa é ir além da mera tolerância aos outros, partir para uma Leitkultur positiva emancipatória que só pode sustentar a coexistência autêntica e a fusão de culturas diferentes, e se envolver na batalha porvir pela Leitkultur. Não basta respeitar os outros: ofereça uma luta comum, pois, hoje, nossos problemas são comuns.

***

Slavoj Žižek  nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009) e os mais recentes Em defesa das causas perdidas e Primeiro como tragédia, depois como farsa(ambos de 2011). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas-feiras.

Traduzido do inglês por Rogério Bettoni


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