Quando, em 1922, depois de vencer a Guerra Civil contra todos os adversários, os bolcheviques tiveram de retroceder para a NEP (a “Nova Política Econômica” que permitiu uma interferência muito maior da economia de mercado e da propriedade privada), Lenin escreveu um pequeno texto “On Ascending a High mountain” [Escalando uma montanha]. Ele usa o símile de um escalador que tem de recuar ao pé da montanha para empreender uma nova tentativa de atingir o pico, para descrever o que um retrocesso significa num processo revolucionário, i.e., como alguém pode retroceder sem oportunisticamente trair sua fidelidade à Causa. Depois de enumerar os sucessos e fracassos do estado Soviético, Lenin conclui: “Comunistas que não têm ilusões, que não se rendem ao desânimo, e que preservam a força e a flexibilidade ‘para começar desde o começo’ de novo e de novo, frente a uma tarefa extremamente difícil, não estão fadados ao erro (e muito provavelmente não perecerão).” Este é Lenin em seu melhor estilo Beckettiano, ecoando o sentido de Worstward Ho: “Tente novamente. Fracasse novamente. Fracasse melhor” [Try again. Fail again. Fail better]. Sua conclusão – começar do começo de novo e de novo – deixa claro que ele não está falando de desacelerar o progresso e fortalecer o que já se conquistou, mas precisamente descer novamente ao ponto inicial: devemos “começar do começo” e não de onde conseguimos chegar no primeiro esforço da escalada. Em termos kierkegaardianos, um processo revolucionário não é um progresso gradual, mas um movimento repetitivo, o movimento de repetir o começo de novo e de novo… e aqui é exatamente onde estamos hoje, depois do “desastre obscuro” de 1989, o fim definitivo da época que começou com a Revolução de Outubro. Devemos, portanto, rejeitar a continuidade com aquilo que a Esquerda significou nos últimos dois séculos. Embora momentos sublimes como o clímax jacobino da Revolução Francesa e a Revolução de Outubro permanecerão para sempre um momento chave de nossas memórias, essas histórias chegaram ao fim, tudo deve ser re-pensado, devemos começar do ponto-zero.
Alain Badiou descreveu três formas distintas de fracasso para um movimento revolucionário. Primeiro, existe, é claro, a derrota direta: alguém é simplesmente esmagado pelas forças inimigas. Depois existe a derrota na própria vitória: alguém vence o inimigo (temporariamente, pelo menos) pela incorporação da principal agenda política do inimigo (o objetivo é tomar o poder estatal, na forma democrático-parlamentar ou numa direta identificação do Partido com o Estado). Acima destas duas versões existe, talvez, a mais autêntica, mas também mais aterrorizadora forma de fracasso: guiado pelo instinto correto que diz que qualquer consolidação da revolução num novo poder estatal é igual à sua traição, porém incapaz de inventar e impor sobre a realidade social uma verdadeira ordem alternativa, o movimento revolucionário se engaja numa estratégia desesperada de proteger sua pureza pelo recurso “ultraesquerdista” de terror destrutivo. Badiou habilmente chama esta última versão de “tentação sacrificial do vazio” [sacrificial temptation of the void].
Um dos maiores slogans maoistas dos anos vermelhos era: “ouse lutar, ouse vencer”. Mas sabemos que, se não é fácil seguir este slogan, se a subjetividade tem medo não tanto de lutar, mas de vencer, é porque lutar a expõe ao simples fracasso (o ataque não foi bem sucedido), enquanto vencer a expõe ao mais temível dos fracassos: a consciência de que se venceu em vão, que a vitória prepara repetição, restauração. Que uma revolução nunca é algo além de um “entre-dois-Estados”. É daqui que a tentação sacrificial do vazio aparece. O inimigo mais temível das políticas de emancipação não é a repressão pela ordem estabelecida. É a interioridade do niilismo, e a crueldade sem limites que pode acompanhar este vazio.”
O que Badiou diz efetivamente aqui é o exato oposto do “Ouse vencer!” de Mao – deve-se ter medo de vencer (de tomar o poder, estabelecer uma nova realidade sociopolítica), porque a lição do século XX é que ou a vitória termina em restauração (retorno à lógica de poder do Estado) ou é capturada pelo ciclo auto-destrutivo da purificação. É por isso que Badiou propõe substituir purificação por subtração: em vez de “vencer” (tomar o poder) devemos criar espaços subtraídos do Estado. Ele não está sozinho. Um medo ronda a (o que quer que reste da) esquerda radical de hoje: o medo de confrontar-se diretamente com o Poder de Estado. Aqueles que ainda insistem em lutar contra o Poder estatal, deixado sozinho no comando, são imediatamente acusados de ainda estarem presos ao “velho paradigma”: a tarefa de hoje é resistir ao Poder estatal recuando de sua esfera de atuação, subtraindo-se dele, criando novos espaços fora de seu controle. Este dogma da esquerda contemporânea é melhor capturado pelo título do novo livro-entrevista de Tony Negri: Adeus, Senhor Socialismo!. A ideia é que a época da velha esquerda em suas duas versões, reformista e revolucionária, ambas as quais pretendiam tomar o poder do Estado e proteger os direitos coorporativos da classe trabalhadora, acabou.
Mas esta análise se sustenta? A primeira coisa a fazer é empreender uma fórmula mais complexa do Partido-Estado como a figura que definiu o Comunismo do século XX: sempre houve uma lacuna entre os dois, o Partido permaneceu a semiescondida sombra obscena que remontava à estrutura do Estado. Não há necessidade de demandar uma nova distância política em relação ao Estado: o Partido É esta distância, sua organização dá corpo a uma forma fundamental de desconfiança do Estado, dos seus órgãos e mecanismos, como se precisassem ser controlados, mantidos sob vigilância a todo tempo. Um verdadeiro Comunista do século XX jamais aceitou completamente o Estado: sempre teve de haver uma agência vigilante fora do controle das leis (do Estado) e com poder de intervir no Estado.
Segundo ponto. 1989 representou não apenas a derrota conjuntural do socialismo de estado e das sociais-democracias ocidentais – a derrota vai muito mais fundo. O raciocínio da Esquerda após 1989 era: a estratégia de tomar o poder falhou miseravelmente em seus objetivos, de modo que a Esquerda deveria adotar uma estratégia diferente, a primeira vista mais modesta, mas, de fato, muito mais radical: recuar do poder estatal e concentrar-se em transformar diretamente a própria textura da vida social, as práticas cotidianas que sustentam todo o edifício social. Esta posição teve a forma mais elaborada com John Holloway: “como fazer uma revolução sem tomar o poder?”. A principal forma de democracia direta de multidões “expressivas” no século XX foram os chamados conselhos (“sovietes”) – (quase) todo mundo no Ocidente os amava, até mesmo liberais como Hannah Arendt que percebia neles um eco da velha vida grega na pólis. Ao longo da era do Socialismo Realmente Existente, a esperança secreta dos “socialistas democráticos” era a democracia direta dos “sovietes”, os conselhos locais como formas de auto-organização do povo; e é profundamente sintomático como, com o declínio do Socialismo Realmente Existente, essa sombra emancipatória que rondava a todo o momento também desapareceu – não será esta a maior confirmação do fato que a versão-conselho do “socialismo democrático” era apenas um duplo espectral do “burocrático” Socialismo Realmente Existente, a transgressão inerente sem substancial conteúdo positivo propriamente seu, i.e., incapaz de servir como o princípio organizador e permanente de uma sociedade? O que tanto Socialismo Realmente Existente como a democracia-de-conselhos tem em comum é a crença na possibilidade de uma organização autotransparente da sociedade que superasse a “alienação” política (aparelhos estatais, regras institucionalizadas da vida política, ordem jurídica, polícia etc. – e não seria a experiência básica do fim do Socialismo Realmente Existente precisamente a rejeição desta característica comum, a resignada aceitação pós-moderna do fato de que a sociedade é uma rede complexa de “subsistemas”, razão pela qual um certo nível de “alienação” é constitutivo da vida social, de forma que uma sociedade totalmente autotransparente é a utopia com potenciais totalitários. Não a toa que o mesmo vale para as práticas contemporâneas de “democracia direta”, das favelas a cultura digital “pós-industrial” (as descrições das novas comunidades “tribais” de hackers não evocam frequentemente a lógica da democracia-de-conselhos?): todas tem de apoiar num aparelho de estado, i.e, por razões estruturais, elas não podem dominar todo o espaço. A máxima de Negri “não há governo sem movimentos” deve ser contestada com “não há movimentos sem governo”, sem o poder estatal que sustente o espaço para os movimentos. É esta tensão entre democracia representativa e direta expressão dos “movimentos” que nos permite formular a diferença entre um partido político democrático comum e o Partido “mais forte” (como o Partido Comunista): um partido político comum assume plenamente sua função representativa, toda sua legitimação é dada pelas eleições, enquanto o Partido considera secundário o procedimento formal das eleições democráticas em relação à dinâmica propriamente política dos movimentos que “expressam” sua força.
Fonte: Blog da Boitempo.