Podem pois respirar de alívio os nossos políticos, comentadores a soldo e fazedores de opinião que ainda há semanas lamentavam a falta de estratégia e as hesitações de Obama e da União Europeia. Afinal, ainda não vai ser desta que os bárbaros vão invadir o império e privar-nos do gás e do petróleo que sustenta o bem-estar e o progresso das "nossas" democracias e faz a miséria dos povos ricos em matérias-primas.
Obama, ao contrário do bronco que o antecedeu, sabe que os recursos militares, financeiros e económicos do seu país e dos seus aliados europeus não são infinitos. Por isso em vez de levar tudo a eito com a desculpada do combate ao terrorismo, implementado e a liberdade e a democracia à bordoada nos países com povos incultos e atrasados que teimam em não ter em grande conta as potências ocidentais e ainda não perceberam o que é bom para eles, optou por um registo manhoso. Se as massas populares já não suportam os ditadores nossos aliados e se revoltam aos milhões, o melhor é não antagonizar as revoltar populares e ir tentando controlá-las à distância e procurara revertê-las a seu favor, mesmo que isso implique deixar o antigo aliado entregue ao seu destino. Começa-se com os apelos à calma e à negociação, e se necessário aposta-se em alguém próximo do regime, moderado e moderno, de preferência com algum curriculum oposicionista, para que o petróleo, o sangue da "nossa" economia, continue a correr livremente. Não só se evitam as chatices políticas e os custos económicos que os massacres e as invasões militares sempre acarretam, como sai tudo muito mais barato e com menos perguntas. Ao mesmo tempo que permite às potências imperiais assumirem um ar humanista e de paladinos dos direitos humanos e das liberdades democráticas, remetendo para o esquecimento o facto dessas ditaduras caídas em desgraça só se terem podido manter no poder durante décadas graças ao apoio generoso dos EUA e das potências europeias.
Mas a novidade esgota-se aqui. Ao contrário do que muitos imaginaram, as ditaduras norte africanas e do médio oriente não vão cair umas atrás de outras, como um dominó. Basta compararmos a atitude da UE e dos EUA face à repressão na Líbia e no Baharaime, o aval que deram à invasão deste emirato pela Arábia Saudita, para percebermos que os donos do mundo não vão abrir mão da influência e do controlo que detêm na área, que continuam a considerar que há os bons e maus ditadores, orientando-se pelo mesmo velho guião de sempre. Pelo que vamos continuar a ser instruídos por governantes e imprensa sobre a justeza e a necessidade de se apoiar os bons ditadores e a de eliminar os maus, como nos explicou o primeiro-ministro britânico num rasgo de rara clarividência ao nos esclarecer que não podemos comparar a Líbia e o Baharaime. É que na Líbia, disse, o ditador Kadafi massacra o seu povo há 30 anos e reprime as manifestações à bala. Enquanto que no Bahhraim o rei apenas se limita a repor a ordem e a evitar o caos. O rei do Baharaime pode fazer o mesmo que Kadafi mas, diz-nos o primeiro-ministro, não é a mesma coisa! – explica, sem explicar nada. Dualidade de critérios que não será estranha ao facto de ser neste emirato que está instalada a maior base americana do Golfo Pérsico, a qual precisa de um poder submisso ao interesse norte-americano, que não condescenda com o sentimento anti-americano partilhado pelos povos árabes nem tenha tentações nacionalistas. O alinhamento noticioso e a rapidez com que os governos dos EUA e da União Europeia tomaram partido contra Kadafi (num claro contraste com os apelos à negociação quando se tratou da Tunísia e do Egipto), a começar nas fantasiosas notícias sobre o bombardeamento das manifestações pela aviação – onde estão as provas, as imagens desses bombardeamentos, que a acontecerem teriam causado não dezenas mas milhares de vítimas – o anúncio diário e continuado da queda eminente do líder líbio e do continuo reforço e apoio popular aos rebeldes, a proclamação francesa e italiana (caninamente papagueada pelo nosso ministros dos estrangeiros) de que o regime de Kadafi já não existia, tinha terminado, faz lembrar a campanha de desinformação contra os sérvios quando do desmembramento da Jugoslávia. Também na altura fomos bombardeados com notícias e relatos fabricados e/ou ampliados denunciando as atrocidades e os massacres cometidos pelo aliado dos EUA caído em desgraça e despromovido, o ditador Milosevik (apelidado de novo Hitler), ao mesmo tempo que eram silenciados os massacres e as atrocidades cometidas pelos croatas e as milícias muçulmanas. Tal como agora, foi em nome da protecção das populações (na altura os muçulmanos e os kosovares) que a NATO interveio bombardeando humanitariamente os sérvios. Com os tristes resultados que se conhecem.