Os comentadores ocidentais invariavelmente abusam da palavra "nós" para falar em favor dos poderosos que vêem o resto da humanidade como utilizável ou descartável. O "nós" é universal agora. A Tunísia chegou primeiro, mas o espectáculo sempre prometeu ser o Egipto.
Como repórter, tenho sentido isto ao longo de anos. Na Praça Tahrir (Libertação) do Cairo em 1970, o ataúde do grande nacionalista Gamal Abdul Nasser ondeava sobre um oceano de povo que, com ele, havia vislumbrado a liberdade. Um deles, um professor, descreveu o passado desgraçado como "homens maduros a apanharem bolas de cricket para os britânicos no Cairo Club". A parábola era para todos os árabes e grande parte do mundo. Três anos depois, o Terceiro Exército Egípcio atravessou o Canal de Suez e invadiu fortalezas de Israel no Sinai. Ao retornar deste campo de batalha para o Cairo, juntei-me a um milhão de outros na Praça de Libertação. O seu auto-respeito restaurado era se fosse uma presença – até que os Estados Unidos rearmaram os israelenses e provocaram uma derrota egípcia.
Depois disso, o presidente Anwar Sadat tornou-se o homem da América através do suborno habitual de mil milhões de dólares e, por isso, foi assassinado em 1980. Sob o seu sucessor, Hosni Mubarak, dissidentes vieram à Praça da Libertação sob o seu próprio risco. Enriquecido pelos homens de Washington, o mais recente projecto americano-israelense de Mubarak é a construção de uma muralha subterrânea atrás da qual os palestinos de Gaza fossem aprisionados para sempre.
Hoje, o problema para o povo na Praça da Libertação já não reside no Egipto. Em 6 de Fevereiro, o New York Times informava: "A administração Obama lançou formalmente o seu peso numa transição gradual no Egipto, apoiando tentativas do vice-presidente do país, general Omar Suleiman, para articular um compromisso com grupos da oposição... A secretária de Estado Hillary Clinton disse que era importante apoiar o sr. Suleiman pois ele procura desactivar protestos de rua..."
Tendo-o salvo de supostos assassinos, Suleiman eé, com efeito, o guarda-costas de Mubarak. A sua outra distinção, documentada no livro de investigação de Jane Mayer, The Dark Side, é como supervisor dos "voos de rendição" americanos para o Egipto, onde pessoas são torturadas a pedido da CIA. Ele também é, como revela a WikiLeaks, um favorito em Tel Aviv. Quando perguntaram ao presidente Obama se encarava Mubarak como autoritário, a sua resposta rápida foi "não". Chamou-o de pacificador, reflectindo aquele outro grande tribuno liberal, Tony Blair, para quem Mubarak é "uma força para o bem".
O pavoroso Suleiman é agora o pacificador e a força para o bem, o homem do "compromisso" que supervisionará a "transição gradual" e "desactivará os protestos". Esta tentativa de sufocar a revolta egípcia recorrerá ao facto de que uma proporção substancial da população, desde homens de negócio a jornalistas e pequenos responsáveis, tem cuidado do seu aparelho. Num certo sentido, eles reflectem aqueles na classe liberal do Ocidente que apoiaram a "mudança em que você pode acreditar" de Obama e o igualmente falso "cinemascópio político" de Blair (Henry Porter no Guardian, 1995). Não importa quão diferente eles pareçam e se apresentem, ambos os grupos são os apoiantes domesticados e os beneficiários do status quo.
Na Grã-Bretanha, o programa Today da BBC é a sua voz. Aqui, desvios sérios do status quo são conhecidos como "Deus sabe o que". Em 28 de Janeiro o correspondente em Washington, Paul Adams, declarou: "Os americanos estão numa situação muito difícil. Eles querem ver alguma espécie de reforma democrática mas também estão conscientes de que precisam líderes fortes capazes de tomar decisões. Eles encaram o presidente Mubarak como um baluarte absoluto, um aliado estratégico chave na região. O Egipto é o país, juntamente com Israel, sobre o qual a diplomacia americana no Médio Oriente está absolutamente dependente. Eles não querem ver qualquer coisa que salte de uma situação caótica para francamente Deus sabe o que".
O medo de Deus sabe o que exige que a verdade histórica da "diplomacia" americana e britânica tão grandemente responsável pelo sofrimento no Médio Oriente seja suprimida ou revertida. Esquecer a Declaração Balfour que levou à imposição do Israel expansionista. Esquecer o patrocínio anglo-americano dos jihadistas islâmicos como "baluarte" contra o controle democrático do petróleo. Esquecer o derrube da democracia no Irão e a instalação da tirania do xá e a carnificina e destruição no Iraque. Esquecer os aviões de caça americanos, as bombas de fragmentação (cluster), o fósforo branco e o urânio empobrecido cujo desempenho é testado sobre crianças em Gaza. E agora, na causa da prevenção do "caos", esquecer a negação de quase toda liberdade civil básica no contrito "novo" regime de Omar Suleiman no Cairo.
O levantamento no Egipto desacreditou todos os estereótipos dos media do Ocidente acerca dos árabes. A coragem, determinação, eloquência e generosidade daqueles na Praça da Libertação contrasta com os "nossos" especiosos traficantes do mercado com os seus falsos al-Qaeda e Irão e suas suposições irrefutáveis, sem ironia, quanto à "liderança mora do Ocidente". Não é de surpreender que a fonte recente de verdade acerca do abuso imperial do Médio Oriente, WikiLeaks, esteja ela própria sujeita à covardia, ao pequeno abuso naqueles jornais auto-congratulátórios que estabelecem os limites do debate da elite liberal em ambos os lados Atlântico. Talvez estejam preocupados. Por todo o mundo, a consciência pública está a levantar-se e a ultrapassá-los. Em Washington e Londres, os regimes são frágeis e muito pouco democráticos. Tendo há muito deitado abaixo sociedades no estrangeiro, eles agora estão a fazer algo semelhante em casa, com mentiras e sem um mandato. Para as suas vítimas, a resistência na Praça da Libertação do Cairo deve parecer uma inspiração. "Não pararemos", disse uma jovem egípcia na TV, "não iremos para casa". Tente juntar um milhão de pessoas no centro de Londres, decididas à desobediência civil, e tente imaginar o que podia acontecer.
Fonte: Resistir.