A insurreição foi universal: foi imediatamente possível, para todos nós ao redor do mundo, nos identificarmos com ela, reconhecermos sobre o que se tratava, sem a necessidade de nenhuma análise cultural das características da sociedade egípcia. Em contraste com a revolução de Khomeini no Irã (na qual os esquerdistas tiveram que contrabandear sua mensagem para dentro do quadro predominantemente islâmico), aqui o quadro é claramente aquele de um chamado secular e universal por liberdade e justiça, tanto que a Irmandade Muçulmana teve que adotar a linguagem das demandas seculares.
O momento mais sublime ocorreu quando muçulmanos e cristãos cópticos se envolveram numa oração comum na Praça Tahrir do Cairo, cantando "Nós Somos Um!" – providenciando a melhor resposta para a sectária violência religiosa. Aqueles neoconservadores que criticam o multiculturalismo em nome dos valores universais da liberdade e da democracia agora estão enfrentando o seu momento da verdade: você quer liberdade e democracia universais? É isto o que as pessoas estão demandando no Egito, então por que os neoconservadores estão intranquilos? É porque os protestantes no Egito mencionam liberdade e dignidade com o mesmo fôlego que pedem justiça social e econômica?
Desde o início, a violência dos protestantes tem sido puramente simbólica, um ato de desobediência civil radical e coletiva. Eles suspenderam a autoridade do Estado – não foi apenas uma libertação interior, mas um ato social de quebra das correntes da servidão. A violência física foi cometida pelos capangas contratados de Mubarak, que entraram na Praça Tahrir em cavalos e camelos, batendo nas pessoas. O que a maioria dos protestantes fez foi se defender.
Embora combativa, a mensagem dos manifestantes não tem sido de matança. A demanda era para que Mubarak partisse, abrindo assim o espaço para a liberdade no Egito, uma liberdade da qual ninguém esteja excluído – o chamado dos manifestantes para o exército, e mesmo para a odiada polícia, não era "morte para vocês!", mas "nós somos irmãos! Juntem-se a nós!". Esta característica claramente distingue uma demonstração emancipatória de uma populista de direita: embora a mobilização de direita proclame a unidade orgânica do povo, é uma unidade sustentada num chamado para a aniquilação dos inimigos designados (judeus, traidores).
Então, onde estamos agora? Quando um regime autoritário se aproxima de sua crise final, sua dissolução tende a seguir dois passos. Antes de seu colapso efetivo, uma ruptura surge: de repente, as pessoas sabem que o jogo acabou, elas simplesmente não têm mais medo. Não é apenas que o regime perde sua legitimidade; seu próprio exercício de poder é percebido como uma reação de pânico impotente. Todos nós conhecemos a clássica cena dos desenhos animados: o gato chega num precipício, mas continua caminhando, ignorando o fato de que não há mais chão debaixo de seus pés; ele começa a cair apenas quando olha para baixo e percebe o abismo. Quando perde sua autoridade, o regime é como um gato sobre o precipício: para que caia, ele só precisa ser lembrado de olhar para baixo...
Em "Shah of Shahs", um clássico relato sobre a revolução de Khomeini, Ryszard Kapuscinski localizou o momento preciso dessa ruptura: num cruzamento em Teerã, um único manifestante se recusou a obedecer um policial que gritou com ele para que se movesse, e então o constrangido policial retirou-se. Em questão de horas, toda Teerã sabia do incidente, e embora as lutas estivessem acontecendo pelas ruas há semanas, todo mundo de alguma forma soube que o jogo havia acabado.
Algo semelhante estará ocorrendo no Egito? Por alguns dias, no início, parecia que Mubarak já estava na situação do gato proverbial. Então nós vimos uma bem planejada operação de sequestro da revolução. A obscenidade disso foi de tirar o fôlego: o novo vice-presidente, Omar Suleiman, um ex-agente da polícia secreta responsável por torturas em massa, se apresentou como a "face humana" do regime, a pessoa para vigiar a transição para a democracia.
A luta de resistência no Egito não é um conflito de visões, é um conflito entre uma visão de liberdade e um agarramento cego ao poder, que usa todos os meios possíveis – terror, escassez de alimentos, cansaço puro e simples, suborno com aumento de salários – para esmagar o desejo de liberdade.
Quando o Presidente Obama saudou o levante como uma forma legítima de expressão de opinião, que precisava ser reconhecida pelo governo, a confusão foi total: as multidões no Cairo e em Alexandria não queriam que suas demandas fossem reconhecidas pelo governo, elas negavam a própria legitimidade do governo. Elas não queriam o regime de Mubarak como parceiro num diálogo, elas queriam que Mubarak fosse embora. Elas não queriam simplesmente um novo governo que ouvisse suas opiniões, elas queriam reformatar o Estado inteiro. Elas não têm uma opinião, elas são a verdade da situação no Egito. Mubarak entende isso muito melhor do que Obama: não há espaço para acordos aqui, assim como não havia quando os regimes comunistas foram desafiados no final dos anos 1980. Ou todo o edifício de poder de Mubarak vem abaixo, ou a revolta será cooptada e traída.
E quanto ao medo de que, depois da queda de Mubarak, o novo governo será hostil em relação a Israel? Se o novo governo for a expressão genuína de um povo que orgulhosamente desfruta de sua liberdade, então não haverá nada a temer: o antissemitismo só pode crescer em condições de desespero e opressão (uma reportagem da CNN, oriunda de uma província no Egito, mostrou como o governo está espalhando rumores de que os organizadores dos protestos e os jornalistas estrangeiros foram mandados pelos judeus para enfraquecer o Egito – o fim da ideia de que Mubarak seria um amigo dos judeus).
Uma das mais cruéis ironias da situação presente é a preocupação ocidental de que a transição proceda de uma forma “legal” – como se o Egito até agora estivesse sob a égide do Estado de Direito. Já estamos nos esquecendo que, por muitos e longos anos, o Egito esteve sob um permanente estado de emergência? Mubarak suspendeu o Estado de Direito, mantendo a nação inteira num estado de imobilidade política, sufocando a vida política genuína. Faz sentido que tantas pessoas nas ruas do Cairo afirmem, agora, que se sentem vivas pela primeira vez em suas vidas. Independentemente do que venha a acontecer depois, o que é crucial é que essa sensação de "se sentir vivo" não seja enterrada pelo pragmatismo político cínico.
10/02/20
Traduzido por Henrique Abel para Diário Liberdade
Fonte: The Guardian