Este é um raciocino viciado, assente num pressuposto falso – o de que na sociedade portuguesa há uma clivagem política entre os partidos da esquerda e da direita governativa e parlamentar ao nível das propostas e saídas para a crise (de um ponto de vista anticapitalista e anti-sistema) e que essa clivagem constituiu o cerne das plataformas e das discussões eleitorais. Entra pelos olhos dentro que tal não é verdade – nenhum candidato apresentou um programa popular de combate à crise, opondo-se a que ela seja paga pelos trabalhadores, nem se pronunciou contra o alinhamento político e militar de Portugal com as aventuras imperiais dos EUA e a UE, nem contra a permanência na NATO. A única diferença com alguma substância foi entre os que defendem que a crise tem de ser paga pelos trabalhadores, como advogam o PS, PSD e CDS, e os acham que ela deve ser paga a meias, com ricos e pobres unidos num esforço patriótico e de esquerda (PCP e BE). Ou seja: uma discussão que não põe em causa nem acarreta qualquer ruptura com a ordem institucional e social vigente nem com o sistema político e económico burguês existente. Todos os candidatos disseram que eram pela estabilidade e não queriam abrir qualquer crise política, chegando a criticar Cavaco por, com a sua caturrice, indiciar tal vontade ao afirmar que iria ser um presidente mais interventivo. Nenhum deles disse o que faria relativamente à continuidade de Sócrates à frente da governação nem que iria derrubar o governo do PS e trabalhar para a formação de um outro que pusesse fim à ofensiva contra os pobres e os trabalhadores, declarando-se disposto a afrontar a burguesia portuguesa e os seus patrões do Banco Central Europeu e do Ecofim e a impedir a entrada do FMI no país. Nenhum deles afirmou que só daria posse a um governo que elaborasse outro Orçamento de Estado, favorável aos que menos têm e virado contra os ricos e o grande capital.
Excluindo o candidato do PCP – que, não alinhando no coro geral a favor do Orçamento, ficou-se, como o seu partido, por uma espécie de meia esquerda sempre de mão estendida a qualquer compromisso favorável aos interesses da "economia nacional", do pequeno capital e de uma mitificada burguesia patriótica –, não tem qualquer relação com a realidade afirmar que havia diferenças políticas substanciais entre os candidatos. Os factos mostram o contrário – desde a adesão à União Europeia, todos os governos sem excepção aplicaram políticas de direita; sempre houve continuidade nessas políticas, fosse qual fosse a cor política do governo; as decisões fundamentais da política nacional são decididas em Bruxelas e não pelos governos portugueses, que já não são mais que meras comissões executivas. Por isso falar em governos de esquerda ou de direita no nosso país é desde então mero eufemismo. Não é por acaso que há muito não se consegue saber o que distingue o PS do PSD e se fala de um bloco central de interesses, entidade não formal transversal a estes partidos e que gere o país de acordo com as imposições comunitárias. Também por isso a campanha foi aquele vazio de soluções e ideias face à crise e à governação do país.
Sendo assim, então por que não apelar ao voto no candidato do PCP, como um voto útil contra Cavaco e a direita? Pela simples razão de que a solução para os problemas dos trabalhadores não está no entendimento destes com o grande capital sobre a repartição dos custos da crise, nem é do seu interesse dar-lhe sugestões e conselhos sobre como deve gerir os seus negócios. Poderá ser de uma elite operária e sindical profundamente funcionalizada e burocratizada, mas não da esmagadora maioria dos proletários portugueses.
A lógica do mal menor está profundamente enraizada na esquerda portuguesa que, em nome da derrota da direita, da unidade (por cima), e do "não nos deixarmos isolar das massas", tem sistematicamente abdicado de intervir politicamente e sindicalmente com um programa que isole e diferencie os interesses próprios, de classe, dos proletários. Ao ponto de actualmente a esquerda já não pensar nisso e ser consensual apelidar de sectários e ultrapassados os que não se vergam ao oportunismo ou ao reformismo e persistem neste tipo de preocupações. O drama do proletariado português não está na falta de unidade contra a direita nem na falta de derrotas da direita. Todas as "vitórias" eleitorais da esquerda (isto é, do PS) resultaram em governos e políticas de direita. Delas não veio qualquer benefício para os trabalhadores que, desde o 25 de Novembro, têm vindo a ter os seus direitos, salários e condições de vida continuamente reduzidos e a ver crescer a flexibilização, os despedimentos, a precariedade, as limitações às liberdades sindicais, etc. Por isso o que há a fazer é não continuar a alimentar sonhos - que nunca se concretizam – de que um dia o PS, os liberais e os social-democratas tenham um abalo de consciência e comecem a fazer seus os interesses das classes trabalhadoras.
Enquanto não existir no nosso país uma corrente revolucionária política e ideologicamente independente, não será possível aproveitar uma campanha reformista para intervir numa campanha eleitoral e jogar no terreno do adversário com a táctica do voto crítico. Sem forças para tal, qualquer veleidade nesse sentido é inócua e serve apenas para instilar o reformismo e a descrença entre os deserdados deste país. Como ficou demonstrado no período que decorreu entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro, a burguesia portuguesa só fará concessões se a isso for obrigada por um movimento operário e popular autónomo que a afronte.
Por isso, votar contra Cavaco não era votar num dos outros candidatos. Era não votar, engrossar a abstenção, amesquinhar e apoucar o vencedor.