Trata-se do que ele chamou de “viagem de retorno”. Ao criticar os economistas clássicos, Marx dizia que, embora partissem da realidade para desenvolver teoricamente os conceitos econômicos (“[...] começam sempre pelo todo vivo: a população, a nação, o Estado... mas terminam sempre por descobrir, por meio da análise, certo número de relações gerais abstratas que são determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor”), eles pecavam por, ao invés de fazerem a “viagem de volta” à realidade, tiravam as conclusões diretamente do plano do pensamento – onde, como dito, desenvolviam os conceitos. Dizendo de outro modo, ao não fazerem o caminho de volta ao real-concreto, as representações elaboradas pelos economistas “volatilizavam-se em determinações abstratas”, enquanto que a “viagem de retorno”, o método cientificamente exato, segundo ele, possibilitaria que as determinações abstratas reproduzissem, de fato, a reprodução do concreto por meio do pensamento (ou seja, uma análise precisa de um momento da vida social).
É ancorado, portanto, nessa premissa metodológica, que se associa também à visão da dialética como algo externo e real e que é consubstanciada na luta, ora aberta, ora disfarçada, que é travada entre as classes (nas distintas épocas que compõem a História), que este escrito buscará se estruturar. A separação entre o que se pode considerar fato ontológico – como chamou György Lukács no auge de sua maturidade intelectual – do que é posição de valor é também uma observação importante para se ter em conta a trilha metodológica que será perseguida pelo autor dessas linhas. Ademais, crê o referido autor que, ao dispensar esses e outros centrais preceitos metodológicos, muitos autores brasileiros que se inscrevem na tradição marxista erraram em suas previsões do ano de 2015 ao afirmarem ser totalmente fora de propósito a possibilidade de impeachment do atual governo central, ou mesmo não darem o real e o devido crédito à gestação subterrânea que o pensamento – e também a ação – conservador estava galgando. A ausência da análise do ponto de vista da totalidade também aqui explica a dificuldade de se clinicar o referido movimento (esbocei, em abril do ano passado, nesse blog, tal situação no ensaio intitulado “As raízes da escalada conservadora no Brasil atual”). Será, portanto, alinhavando-se nos fatos cotidianos reais, sem abdicar do edifício teórico mencionado, que esse escrito será esboçado. Feita essa consideração preliminar, passemos à análise da matéria: a crise brasileira atual.
A conciliação de classes e a política “classe-contra-classe”
Ao falarmos em conciliação de classes já é de se supor que duas classes com projetos distintos – e, em termos mais precisamente científicos, em si, antagônicas – buscaram, ainda que mantidas suas independências políticas (atestadas no DEM, no PSDB, etc., de um lado, e nos partidos de esquerda, de outro), firmar um acordo de governo nacional; foi o que se chamou, no início, de pacto social. Encabeçado pelo PT e por Lula a partir de 2003, esse projeto foi gestado, segundo nos conta Lincoln Secco no seu História do PT (Ateliê Editorial, 2011), a partir da seguinte constatação: convencida a direção majoritária do PT de que – segundo sua leitura – a única forma de se ultrapassar a parcela de cerca de 30% do eleitorado seria promovendo uma política de alianças mais ampla, o partido decidiu pôr em prática a aliança aberta com setores do empresariado, como foi o caso da chapa Lula/José Alencar (PT/PL), exitosa nas eleições de 2002; era a base, junto com outros fatores evidentemente, do surgimento no cotidiano da política do significativo termo “Lulinha paz-e-amor”. O fato de esse pacto ser encabeçado por um ex-líder operário não deixaria de levantar suspeições, por exemplo, no mercado de ações; a Carta ao Povo Brasileiro viria a público para afirmar que o governo encabeçado pelo PT respeitaria todos os contratos e leis vigentes. Se, por um lado, o compromisso público visava transmitir tranquilidade, por outro, restringiria e muito o campo de ação pelas mudanças a serem postas em prática pelo governo do PT a partir de 2003. Para os nossos fins, interessa dizer que – relativamente consciente, ou plenamente consciente; isso aqui é secundário –, assumido o leme do Estado brasileiro, formatou-se um gabinete ministerial que é a mais cristalina – e também coerente, e é mais para isso que se chama a atenção aqui: para o significado ontológico ou de constatação (pelo menos, de início) – expressão do pacto social proposto: ministros alinhados com o mercado e com bom trânsito com os movimentos sociais – ou os chamados agentes de pressão – passaram a compor a Esplanada dos Ministérios a partir de 2003. Citemos como exemplo o ministério que tem como objeto a produção agrícola: se em geral o Ministério da Agricultura fora assumido por setores ligados ao chamado agronegócio, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) dirigiria mais as suas atenções à pauta dos movimentos sociais do campo (a dura polêmica travada publicamente entre a Ministra da Agricultura, Kátia Abreu, e o Ministro Patrus Ananias, do MDA, sobre o latifúndio corrobora a nossa afirmação). Tal fato, e não importa aqui, uma vez mais, se inteira ou parcialmente consciente, é um elemento comum em todos os governos petistas, e consubstancia rigorosamente a proposta de conciliação de classes (aqui dita em sentido de constatação, e não como juízo de valor). Parte expressiva e altos quadros da esquerda brasileira, desde o princípio, viram em tal fato (a nomeação de ministros alinhados ao mercado) o motivo para não consentir e a base, portanto, para a rejeição absoluta ao governo do PT; a posição diante da problemática da política da conciliação de classes só não é menos problemática para tais críticos por conta do fato de que os efeitos da realização prática de tais políticas exigiriam, no médio prazo, um posicionamento igualmente prático deles: ser contra ou a favor das políticas de ações afirmativas (como cotas nas universidades, políticas de igualdade de gênero, etc.) e de defesa dos direitos humanos? Apoiar – com ressalvas ou não – ou rejeitar a expansão de vagas em escolas de ensino superior tanto via criação de universidades públicas federais quanto por meio de programas de bolsas de estudos (parciais ou integrais), que contemplam, em geral, alunos de baixa renda (ainda que a expansão via rede privada, mercantilizada, nas modalidades presencial ou à distância, não deixe de ser menos problemática tanto para os educadores como para os educandos)? Concordar ou discordar por completo do programa social de habitação popular “Minha Casa, Minha Vida”? Acatar ou rechaçar o programa Bolsa Família que, segundo levantamentos, foi responsável pela erradicação da pobreza extrema no Brasil? Como se colocar diante do Programa Mais Médicos (em especial, no Norte do país), da valorização do salário mínimo, do Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, do Brasil sem Miséria (ligado ao MDS), a diretriz de se atingir 10% do PIB no PNE, etc.? Ainda que, no plano teórico, se aponte os limites estruturais da política de conciliação, e no caso específico, das políticas sociais levadas a cabo pelos governos do PT, não se pode ignorar o fato de que – embora guiados, em geral, por um pragmatismo exacerbado e uma análise econômica equívoca – a intenção subjetiva de seus agentes políticos é conscientemente a chamada inclusão social. E não é apenas a letra morta dos levantamentos que apontam isso; não raramente é comum observar o reconhecimento espontâneo da população mais proletarizada dos efeitos de tais políticas sobre ela (é a sociologicamente chamada “mobilidade social”; e aqui, vale dizer, a relação com esse público assume um caráter mais afirmativo – em relação aos seus direitos – do que nos modos de governo clientelistas de direita).
O arranjo macroeconômico de fundo que iria possibilitar as condições para o implemento das políticas sociais acima mencionadas não iria ser promotor de maiores fissuras estruturais: a política de superávit fiscal foi mantida, a taxa de câmbio permaneceu móvel, os juros foram mantidos em patamar elevado. A conciliação de classes iria exigir menos das elites econômicas – em prol da propalada opção pela governabilidade ao invés da ruptura – do que ela poderia dar. E isso, em si, é um justo mote para críticas das mais acentuadas aos promotores da política de conciliação (numa análise rigorosamente fundada na multilateralidade dos diversos fatos condicionantes da realidade, em especial a do governo em questão, é indispensável ter em mente que, num país como o Brasil, que viu em 1964 seu presidente ser apeado do posto por sinalizar na direção de reformas sociais, uma inflexão ou ruptura mal calculada pode ter efeitos traumáticos; com tal afirmativa, por outro lado, não se busca justificar tais políticas; se faz essa consideração apenas por ser esta situação um dado objetivo da realidade, sendo ela possível de ser suprimida apenas na ideia). Não se pode deixar de considerar também que nas tratativas de alianças de apoio governamental e parlamentar determinados compromissos são permanentemente exigidos/renovados – e não se pode dispensar isso no marco maior da análise.
Em geral, foram (e continuam sendo) assaz tímidas as políticas de taxação de altas rendas, condição para o dispêndio em políticas sociais do fundo público. Este, inclusive, é um dos nós da situação atual: a política de desoneração realizada no passado recente, combinada a outros fatores, evidentemente, mais a manutenção do investimento em políticas sociais, ajuda a descrever o atual quadro fiscal. A forma de enfrentamento proposta pela oposição conservadora é a conhecida contenção/supressão de gastos [com a continuidade e até elevação do superávit primário, a realização de reformas, como a que desvincula o piso da aposentadoria do salário mínimo ou a que flexibiliza a CLT (o negociado prevalecendo sobre o que determina as leis trabalhistas), mudanças nas contribuições sociais PIS/COFINS, revisão da “cobertura” da estabilidade do emprego no serviço público; é só ler o assustador artigo do “velho-novo salvador-da-pátria” Armínio Fraga para o Estado de São Paulo, 13/09/2015, em que o mercador de ilusões propõe, a la Rodrigo Constantino, até mesmo a revisão do capítulo econômico da Constituição Federal, impedindo qualquer regulação do Estado sobre a economia]; é uma terrível mostra do que seria uma política inversa pura de classe-contra-classe. Com todas as limitações e erros do consórcio atual de conciliação de classes, é preferível este último – e não se trata da subjetiva afirmativa do “mal menor”; objetivamente, todos os membros da sociedade brasileira sofreriam, para o bem ou para o mal, as consequências duma mudança de governo, independente das vontades particulares – ao primeiro; não que se deva encerrar nele os propósitos maiores da esquerda brasileira; mas este pode ser o ponto de partida para uma vindoura transformação superior.
A efetivação da política de alianças e o financiamento das campanhas
Como se sabe, cabe ao Poder Legislativo encaminhar para a votação propostas – inclusive as do Executivo – para que as mesmas possam ter – ou não – força de lei. Sem entrar no mérito delas nesse instante, o fato é que esse foi um dos desafios que os governos do PT tiveram objetivamente que encarar. Além das concessões programáticas, um desdobramento previsível da política de conciliação, muita coisa se viu pela grande mídia em torno de barganha política. O fato mais expressivo – e que iria ser responsável pelo maior desgaste ao PT após a sua assunção ao poder – foi o episódio da suposta compra do apoio de deputados por meio de mesada (o chamado “mensalão”). Analisada a questão por um prisma de classe, e sendo essa uma situação interna ao problema da política de alianças (não se pode consentir que deputados que se “põem à venda” tenham convicção ideológica; este é o dado concreto do Parlamento brasileiro, e que, querendo ou não, o PT teve que encaminhar uma solução prática), é possível consentir, olhando a questão a partir do marco maior da efetivação – ainda que assaz moderada – do projeto de conciliação, que tal episódio se inscreveria no marco da ressignificada frase de Maquiavel de que “os fins justificam os meios” (embora haja teses de que as condenações levadas a cabo pelo STF em 2012 foram sem provas, o Supremo sentenciou com pena de prisão o alto escalão do partido). Foi o que, noutro lugar, chamei de “o pedágio (ou o preço) que o PT teve que pagar” para chegar ao poder, ao menos, vale dizer, segundo a leitura que a direção majoritária do partido fez. O fato – que não tivera sido uma invenção do PT (a “compra de apoio” para a emenda da reeleição de FHC seria o caso mais emblemático) – foi, à exaustão, explorado pela mídia, que daria contornos de escândalo inaudito, como se o decoro fosse algo sagrado – e o PT tivesse sido o maior dos hereges – na sociedade que, sem cerimônia, costuma dizer que “todo mundo tem o seu preço”. Em resumo, o fato que se quer evidenciar aqui é que feita a opção pelo caminho das alianças mais amplas – e a maioria dos interlocutores estão menos propensos à ideologia do que a vantagens de todo tipo – uma hora ou outra iria se interpor o problema de como encaminhar a questão no sentido prático-resolutivo. Se com “mensalão”, ou se com “caixa 2”, conforme admitiu à época o ex-presidente do PT José Dirceu, o principal a ser destacado a nosso ver aqui é a subordinação desse mecanismo ao projeto maior – ainda que, como dito, muito tímido e passível de muitas críticas. E isso, em certo sentido, torna a metodologia compreensível, se vista, claro, depurada da hipocrisia burguesa.
O outro grande problema em que se metera o PT diz respeito ao financiamento de campanha (com a tirada progressivamente consciente do horizonte da via revolucionária ou não-institucional). Parear com as grandes máquinas partidárias num país de dimensão continental como o Brasil, com a oposição e a má vontade da grande mídia, certamente não é tarefa fácil. E aqui se interpõe um problema objetivo: os custos (em todos os sentidos, de viagem, de material de campanha, etc.). Segundo o historiador e professor da USP, Lincoln Secco, autor de História do PT, no Congresso do Partido em 1996 um grande rebuliço fora causado ao saber-se de que dinheiro de empreiteira havia entrado em campanhas políticas do partido. Aquilo, como a história provou, era o embrião de uma prática que iria se repetir ulteriormente. E como capitalismo não rima com filantropia, não seria de se estranhar que a maioria das “doações” de campanhas feitas ao partido não fosse desinteressada; e é aqui que surge o problema atual da chamada “Operação Lava Jato”. As campanhas se tornaram eventos milionários; ainda que se possa questionar o profissionalismo das mesmas e os seus elevados custos, a questão aqui a ser colocada é que, do ponto de vista prático, o PT teve que dar encaminhamento a esse problema do financiamento. E, quer queira, quer não, a arrecadação de fundos de campanha não é das tarefas mais fáceis – e aqui talvez concorra mais barganha do que exigência de concessão ideológica (o bolso dos doadores fala mais alto!). O mesmo raciocínio do tópico anterior serve para o daqui: subordinado ao projeto, o problema das fontes de financiamento – já que este é um problema para o qual se precisa encaminhar uma solução prática, isto é, levantar os fundos de campanha – também é relativamente compreensível; ainda que também incida diminuindo a margem de atuação do partido, esse seria também o “pedágio” – segundo o entendimento de sua direção majoritária – que o PT teria que pagar para chegar ao poder (algo coerente com a lógica de não-ruptura com a institucionalidade adotada); é bom registrar que não se fala nada aqui em sentido fatalista. Tudo isso não impedira o partido de manter a bandeira do financiamento público de campanha e de, no limite, levar a cabo a proposta de uma Reforma Política (nas Jornadas de Junho, em 2013, foi levantada oportunamente a bandeira da Constituinte Exclusiva para a Reforma Política e de um plebiscito). Dito abertamente pelos falsos moralistas da grande mídia, a proposta do financiamento público de campanha – uma clara tentativa de conter a promiscuidade entre o público e o privado nas campanhas eleitorais – foi tida como “impraticável” no interior do Congresso Nacional. Os não tão nobres articulistas só não se lançariam a campo para tentar entender por que tanta resistência entre os parlamentares ao fim do financiamento privado de campanhas (as famosas sobras de campanha do ex-presidente Collor talvez ajudem a situar um pouco o leitor sobre esse submundo da política).
Por outro lado, é fato também que vantagens indevidas tenham sido obtidas por integrantes do partido; esses desvios individuais de conduta só seriam agravantes se tivessem a total condescendência do partido, principalmente da direção (o desligamento do ex-secretário-geral, Silvio Pereira, em 2005, é emblemático). A espetacularização midiática desses episódios, com o intuito, ora aberto, ora velado, de passar à opinião pública a percepção de que a agremiação inteira é repleta de corruptos e criminosos, ofuscando e pondo a segundo plano o projeto partidário, além de ter sido bastante exitosa, e é isto que está também na raiz da crise atual, concorre para o que – corretamente – a direção do partido tem chamado de criminalização do PT (abundam-se nos dias correntes os exemplos do perigoso ódio ao PT e aos seus atuais maiores expoentes nos sucessivos, e assustadoramente corriqueiros, atentados às sedes do partido, ao prédio do Instituto Lula, ou mesmo no enforcamento simbólico de bonecos de Lula e Dilma em praça pública! Os níveis de ódio chegaram a um patamar tão assustador que basta estar de trajes vermelhos para que se seja chamado pejorativamente de “petralha” ou, dada a especificidade da situação, ser agredido ou espancado, caso o transeunte tenha o azar de cruzar com uma aglomeração de anti-petistas convictos).
A escalada conservadora
György Lukács, um filósofo marxista nascido em Budapeste, na Hungria, nos últimos anos de sua vida sistematizou sua visão – que chamou de ontológica – da obra de Marx, e não só, buscando, fundado nos germes deixados por ela, desenvolver o marxismo, escreveu que há na vida social dois tipos de ação teleológica: a que visa transformar um dado da natureza (trabalho) e a que visa a convencer outros homens a agir como se queira. Toda a ação humana em sociedade pode ser reduzida a esses dois tipos de posições teleológicas. Seja na educação, nas ciências, na gestão da fábrica, na política, ou mesmo na formação do que aqui chamaremos de correntes de opinião. Em todas essas situações o elemento comum são as posições teleológicas de segundo tipo ou secundárias. Pois bem. Vendo a realidade brasileira do ponto de vista de sua totalidade, é possível entender que – sem perder o caráter espontâneo em vários casos, mas que estão eles, de um modo ou de outro, fundados nesse processo – há um polo impulsionador conservador consciente novo na sociedade nacional. Diferentemente das tradicionais manipulações sutis do noticiário levadas a cabo pela grande mídia – nem tão sutis assim quando analisamos as últimas edições do Jornal Nacional da TV Globo, ou vemos a superação, a cada nova edição, da panfletária Veja –, um polo alternativo passou a dizer – via blogs e com a ajuda inoculadora das redes sociais – em alto e bom som aquilo que o suposto código de boa conduta jornalística das tradicionais redes de TV, rádio e jornais muitas vezes não podia dizer abertamente. Refiro-me aos sites O Antagonista, O Implicante, Spotniks, Folha Política, Diário do Brasil, Mídia sem Máscara e outras várias páginas na rede social Facebook. Esse teria sido o efeito contrário, e inesperado, ao da democratização da informação (via internet) almejado pela esquerda. Na selva em que se tornou a internet para o cidadão médio, isto é, aquele cidadão incapaz de captar o DNA político da informação que lhe corre a tela (isto é, uma imensa parcela da população), sites e mais sites passaram a bombardear notícias difamatórias – muitas delas falsas, inclusive – sobre o governo, o PT e a esquerda (os ataques ao deputado do PSOL Jean Wyllys servem para ilustrar o que se diz aqui); e a cada replique – ou compartilhamento, para ser mais afeito à linguagem cibernética – a corrente de caráter conservador e/ou reacionário é adensada. Poderíamos dizer que o efeito dos smarthphones hoje, a chamada internet ubíqua, analisando a história da comunicação em perspectiva, é similar ao do surgimento do rádio ou da mídia impressa. As redes sociais, acessadas a todo instante via smarthphones, tal qual a famosa frase dita a um repórter pelo seu editor (“Traga as fotos que eu cuido da guerra”) durante a Primeira Guerra, ou a proposital mudança de legenda – também durante a Grande Guerra – para impulsionar a revolta dos chineses por profanação, ou mesmo o famoso episódio da invasão marciana à Terra transmitida ao vivo pelo rádio de Orson Wells, são uma nova forma de comunicação que, tal como fora em suas respectivas épocas a mídia impressa e o rádio, é uma coisa com a qual as pessoas ainda estão se acostumando, principalmente o cidadão médio, o tipo de cidadão com pouca formação e vivência políticas (e isso aqui deve ser objeto de pesquisa para a área da comunicação social). Tendo em vista não ser mais possível (pela própria internet inclusive, por ela também provocar uma desmonopolização do entendimento de qualquer fato, pela sua horizontalidade) manipulações como as vistas na primeira metade do século XX pelos mass media tradicionais, a internet, pelo anonimato da fonte, tornou-se então um instrumento para divulgação em massa de mentira – podemos citar aqui desde a divulgação acrescida de um zero da evolução do patrimônio de uma deputada federal por um partido que se situa no campo da esquerda até a famosa informação (desmentida pelo próprio dono da empresa) de que o filho do ex-presidente Lula era dono da Friboi (e aqui entra a cumplicidade da grande mídia com a mentira: alguma vez alguma emissora de TV fez alguma reportagem desmentindo esse e outros boatos?). Os grupos formados pelo aplicativo WhatsApp são hoje talvez o mais importante canal de divulgação instantânea e em massa dessas notícias difamatórias (e em muitos casos falsas). Outro aspecto novo é o fato de que nas grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, o transeunte é confrontado o tempo inteiro com manchetes – e não notícias – que dão conta dos mais variados assuntos, dentre eles os de política; nas estações de metrô, em bares, elevadores, o cidadão é confrontado com a informação; e o problema maior nem é a informação, mas sim quem fornece a informação – em bares de São Paulo, por exemplo, muitas dessas notícias são oriundas da Veja.
Ademais, os grupos para a ação prática conservadora (MBL, Vem Pra Rua, Revoltados Online), com atuação nas redes sociais, bem como todo o quadro geral do mercado editorial de livros, da posição abertamente conservadora de articulistas em postos estratégicos da mídia, inclusive com uma inflexão mais radical à direita de alguns deles (cito aqui o artigo escrito por Míriam Leitão – “Miséria do debate” – em que ela diz que Rodrigo Constantino e Reinaldo Azevedo emburrecem o debate nacional), todo o caldo cultural conservador que vem perigosamente se adensando, tudo isso foi tratado em maiores detalhes no artigo por mim assinado As raízes da escalada conservadora no Brasil atual, publicado neste Blog da Boitempo, em abril de 2015, e continua tendo validade.
O impeachment e o Golpe
Os historiadores do Brasil Contemporâneo, à exceção do bufão Marco Antônio Villa (comentarista de Veja, Jovem Pan e do Jornal da Cultura), devem estar eufóricos na expectativa do desenlace final dos episódios dos últimos meses. É que uma boa pesquisa historiográfica irá mostrar – num futuro próximo – o quão sórdida tem sido a urdidura que visa tirar a qualquer custo a presidente eleita do Brasil, Dilma Rousseff. Para se ter em conta os últimos acontecimentos, é preciso ampliar o campo de visão para o início desse processo, e que remonta para o término das eleições de outubro de 2014. Prescindir desse campo maior é não capturar o processo de pedido de impeachment em todas as suas fases, isto é, em sua integralidade. Após a divulgação do resultado eleitoral de 2014, a vitória da chapa Dilma/Temer, que passou a ser considerada estreita ainda que com uma margem de cerca de 3 milhões de votos, gerou um grande inconformismo entre os adeptos da chapa derrotada Aécio/Nunes. Jornalistas da grande mídia, como Diogo Mainardi, passaram a responsabilizar o eleitorado nordestino, a quem chamaram de “bovino”, pelo revés. Na rede social Facebook muitos postaram imagem de luto demonstrando incredulidade com o resultado. Logo, surgiriam supostas denúncias de abuso de poder econômico, de urnas não estarem imunes a fraudes e os esperados discursos inflamados no Parlamento. E foi aí, no bojo desse clima de insatisfação, que surgiria a brecha para o pedido de afastamento da presidenta: descobriu-se que o governo havia feito uma pouco significante manobra contábil, que logo fora, pomposamente, batizada de “pedaladas fiscais”. Daí em diante essa passaria a ser a aposta da oposição inconformada com a derrota: cassar o mandato da presidente reeleita. A prova mais contundente da não-aceitação do resultado das urnas foi o pedido feito pelo PSDB ao TSE de cassação da chapa Dilma/Temer – no dia de sua diplomação – e de nomeação do segundo colocado, Aécio Neves, fato que renderia muita galhofa nos memes nas redes sociais.
Mal Dilma tomara posse, a oposição, capitaneada por Aécio Neves, em tom inflamado, passou a acusar a presidenta de “estelionato eleitoral” (tal reivindicação ao senador seria justa se ele tivesse em mente o fato de a presidenta, numa inútil tentativa de ganhar a “confiança” do mercado, ter encarregado o ex-ministro Joaquim Levy a aplicar um ajuste em muito parecido com o seu). O reajuste nas tarifas públicas de energia e dos combustíveis iria fazer com que uma avalanche de críticas caísse sobre a presidenta. Paralelo a isso, o juiz Sérgio Moro, responsável pela “Operação Lava Jato”, passa a ganhar uma notoriedade incomum com o desmonte e a revelação de um esquema de pagamento de propinas na Petrobras. Para começo de conversa, como magistrado, seu papel deveria ser unicamente o de – com a temperança que exige a função – distinguir o que é ilícito em proveito pessoal do que estaria relacionado ao problema do financiamento de campanhas, uma questão que atinge a todos os partidos (a exceção, dos com representantes no Congresso, é o PSOL); este seria o grande serviço que Moro poderia prestar à sociedade, ao contrário da incitação cega do público promovida (as pretensões messiânicas de Moro, e não menos problemáticas, ou mesmo uma visão geral sobre a sua espécie de tese-guia, talvez fiquem mais claras se lido o artigo de sua autoria “Considerações sobre a operação Mani Pulite (Mãos Limpas)”, do não longínquo ano de 2004). O cidadão comum, tragado no seu agitado cotidiano por manchetes e notícias de sucessivas ações policiais, passaria a associar, induzido pela mesma superficialidade do noticiário, toda prisão da Lava Jato a um político ladrão, e, com o desenrolar dos acontecimentos, passaria a ligar – única e exclusivamente – toda a corrupção a um partido, o PT, e aos seus membros. Seria essa uma das principais fontes do ódio ao PT e a seus dirigentes que se vê nos dias em curso. Se mantivesse serenidade e um juízo equânime, Moro trataria de relacionar a maioria dos eventos ligados aos partidos na Petrobras ao problema do financiamento de campanhas eleitorais (a prova retumbante desse fato veio à público com a revelação, estranhamente posta em sigilo logo em seguida por Moro, da “lista da Odebrecht” em que constam nomes de políticos de agremiações tanto da situação como da oposição). Entretanto, os fatos divulgados pareciam mais concorrer para uma espetacularização dos acontecimentos, principalmente midiática, do que contribuir para a ciência clara do problema em todas as suas dimensões por parte da sociedade – não foram poucos, por exemplo, os mandados de condução coercitiva, inclusive do ex-tesoureiro do PT (único tesoureiro de partido preso e condenado). A enxurrada de delações, conduções coercitivas, prisões, sentenças, etc. consagrariam Moro – para o cidadão que viria a ser chamado de “coxinha”, dada a sua ingenuidade, estreiteza de juízo crítico e escassez de fontes alternativas de informação – como uma espécie de “novo herói nacional” [Sérgio Moro seria premiado pelo jornal O Globo como “personalidade do ano” (2015) e ministraria palestras, como para sócios do grupo empresarial LIDE, que tem o empresário João Dória, pré-candidato do PSDB à prefeitura de São Paulo, como proprietário; segundo matéria da Rede Brasil Atual (RBA), para ser sócio do LIDE é preciso ter um faturamento anual igual ou superior a R$ 200 milhões].
Embora vários partidos tivessem sido citados na “Lava Jato”, como o PMDB e o PP, a grande mídia – agindo com grande parcialidade – direcionaria todos os seus holofotes para um único – o PT. A cada prisão de diretor da Petrobras – por ter recebido propina (no exterior, inclusive) para fraudar licitações na estatal –, automaticamente a querela seguinte, junto com a criação de um hostil clima de suspeição, iria girar em torno de quem teria sido o responsável pela indicação/nomeação – provém daí a insistente tentativa de buscar implicar os altos quadros do governo, inclusive a presidenta Dilma, e, mais recentemente pela mão de Delcídio, o ex-presidente Lula. Aliás, é como se a predileção ao roubo tivesse, em todos os casos, ligação direta com quem nomeia ao cargo.
Foi nesse clima de responsabilização do PT por toda a corrupção trazida à tona pela Lava Jato que o Brasil viu – com o explícito apoio da grande mídia, bem como com o aparelhamento do Estado em São Paulo pelo governo estadual com a transferência de horário das partidas de futebol, liberação das catracas do metrô – explodir um movimento encarniçado contra o PT, com expressivas manifestações de rua em todo o país. Mesmo com os fatos mostrando o contrário, como por exemplo a citação em pelo menos cinco delações premiadas do presidente do PSDB, Aécio Neves, ou mesmo a farra das contas na Suíça de Eduardo Cunha, a energia acumulada era exclusivamente canalizada, em forma de ódio, contra o partido do governo – o boneco inflável batizado de “pixuleco”, em que Lula encontra-se vestido em uniforme de presidiário, era a expressão do desejo máximo ao menos dos líderes daquele movimento (a filósofa Marilena Chauí, em palestra na PUC-SP, dias atrás, alerta para o fato de aquela multidão de pessoas não possuir pauta reivindicativa). Os níveis de intolerância atingiriam picos tão elevados que uma nova modalidade de protesto entraria em cena a cada aparição da presidenta da República na TV (no Jornal Nacional, em pronunciamento em rede nacional ou mesmo durante os programas do PT): os chamados panelaços.
A cada acontecimento, como rebaixamento da nota de crédito do Brasil por uma agência de risco, a cada previsão negativa de crescimento para a economia, o tema do impeachment entrava em cena no Congresso e, ardilosamente, pela grande mídia (via articulistas). Dois personagens, inicialmente aliados, mas desde sempre amigos-da-onça, entrariam em cena para, no tabuleiro institucional, mover as peças que, em outras palavras, significaria pôr em marcha o impeachment – que é aqui, na realidade, o pseudônimo oficialesco de Golpe. Trata-se do bestial Eduardo Cunha e de Michel Temer, vice-presidente da República, que se revelaria, com o desenrolar dos fatos, um homem desleal e ambicioso. Cunha – e o exercício da sua presidência na Câmara dos Deputados prova isso – é um sujeito que possui as características condizentes com a de alguém que precisa levar a cabo uma monumental trapaça política como é a de derrubar um presidente da República. Frio, e ao mesmo tempo determinado, Cunha é um daqueles políticos ao qual se distribui a tarefa do “trabalho sujo”; sem remorsos, ele a executa sem guardar dor na consciência; ao contrário, “assume” o personagem e nega até o fim que fizera diferente: a sua declaração numa reunião da CPI da Petrobras de que não possuía contas no exterior é a prova cabal disso. Cínico da unha do dedo do pé até o último fio de sua a cada dia mais parca cabeleira, Cunha sentiu-se um leão por meses a fio na Câmara: manobrou, passou por cima do regimento, votou e aprovou a Lei das Terceirizações, a Redução da Maioridade Penal. Mas, parafraseando o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, no meio do caminho de Cunha haveria de ter uma “pedra”, que, em sentido literal, significaria uma enxurrada de denúncias de corrupção. Para o deleite dos historiadores, pois este é um dos desafios a serem destrinchados (já que não é preciso muito esforço para saber o quão hipócrita é o alto escalão da sociedade nacional), é assustador como, num cenário em que se tem forte aversão contra corrupção, o menos cidadão do que delinquente se mantém incólume na presidência dos deputados (a prontidão do STF, por exemplo, e do alvoroço criado, em barrar a nomeação de Lula para ministro serve para contrastar com o tratamento leniente recebido há meses pelo deputado não só pela mais alta instância do judiciário, pois possui foro privilegiado, mas também pela grande mídia, interessada antes mais no Golpe do que com a moralidade pública; é bom lembrar também que o grampo das conversas entre Lula e Dilma, em que tentou-se num contorcionismo desesperador imputar à Presidenta o crime de obstrução da Justiça, foi vazado um dia antes da cerimônia de posse do ex-presidente). E foi justamente após a representação pedindo a sua cassação por ter mentido à CPI da Petrobras, juntamente com uma série de outras denúncias, que Cunha, utilizando-se da prerrogativa do cargo, aceitou o pedido de abertura do processo de impeachment feito por juristas que alegam que a presidente cometeu crime ao assinar decretos de suplementação orçamentária sem a chancela do Parlamento e praticou as chamadas “pedaladas fiscais” (o nome pomposo, como dito, não deve impressionar). Trocando em miúdos, o debate público no país ficará obstruído por seguidas semanas por conta da presidenta ter tomado dinheiro emprestado numa repartição estatal para cobrir gastos ordinários do governo. Aqui se percebe o quão se encaixa na engrenagem do Golpe um sujeito que reúne em si as características vistas no Eduardo Cunha: é preciso ter frieza e não ter nenhum apreço pela lei, pela institucionalidade, para deflagrar – em tão pífia base – um plano, que por isso, é não só sórdido como ultrajante. Após afoitamente tentar pôr em marcha de uma só vez, com chapa avulsa e voto secreto, numa tentativa típica de sujeitos não zelosos com leis, regras, trâmites institucionais, o STF barrou a Comissão feita à imagem e semelhança dos desejos do ainda então presidente dos deputados. Após idas e vindas, e aqui tem-se (novamente) um farto prato para o deleite e a análise dos historiadores, a Comissão Especial do impeachment tem em suas fileiras ninguém mais, ninguém menos do que o procurado pela Interpol, Paulo Maluf, o impoluto réu no STF, Paulinho da Força, e as figuras bestiais de Eduardo Bolsonaro e do deputado-pastor Marco Feliciano.
A segunda figura a mover-se no tabuleiro institucional para pôr em andamento o Golpe é o vice-presidente, Michel Temer (PMDB). Dias após o presidente dos deputados aceitar o pedido de impeachment, Temer, numa dessas tacadas a impressionar qualquer leitor de livro de História pela ousadia e pelo ato destemido do personagem da trama, lança uma carta em que – e as vestes legais é algo indispensável a todo golpe – assume formal e publicamente o seu ímpeto personalista e revela a todos o seu desprezo com a lealdade condizente a seu cargo, flagrante e assustadoramente demonstrada (pela carta) dias após a presidenta da República ter sido notificada da aceitação do pedido de abertura de impeachment pelo ladravaz Cunha. Em outras palavras, Temer transmite sub-repticiamente um sinal de que ele está a postos, pronto para servir aos golpistas, com quem aberta e despudoradamente se reúne em uma ignóbil conspiração. A última movimentação em direção ao seu objetivo foi o anúncio – a mais ou menos duas semanas da votação do relatório da Comissão do Impeachment – de rompimento do PMDB, do qual Temer é presidente, com o governo, mostrando, de modo irrefutável, toda a sua vileza de caráter.
Qualquer análise, nos dias correntes, que tome o problema do impeachment sem essa dimensão ampliada que remonta ao término das eleições de 2014, como não desmentem os fatos, ao contrário, antes comprovam, incorrerá no erro de uma leitura parcial e incompleta da questão. Todo golpe, por recair sobre os seus defensores, incitadores e executores várias consequências, é algo de difícil admissão pública – precisa ser camuflado! Por ser uma tentativa individual ou de um grupo de – sem respaldo legal – desalojar alguém de imediato de um dado posto, é sempre revestido – ou melhor, travestido – de uma aparente (por ser falsa) legalidade (a moderna história francesa registra vários casos de golpes de Estado). Só pode ser levado a cabo por meio de uma grosseira manipulação dos fatos – e aqui com a cínica cumplicidade de muitos. O atual caso brasileiro se encaixa perfeitamente nessa designação geral de golpe. O que está em jogo no Brasil é um Golpe porque se quer apear do mais alto cargo da República (que fora preenchido a partir de decisão soberana e direta de cada cidadão) o legítimo ocupante buscando-se, de antemão – a partir de um desejo estabelecido a priori, porém publicamente inconfessável –, encontrar, a todo custo, “crimes” e provas que impliquem a presidência para, então, “legitimar-se” de modo farsante o seu impedimento. O que se tem na verdade, desde antes, é a não-aceitação da derrota e o seu não-reconhecimento; a partir disso, e de toda inconformidade e alvoroço causados pós-eleição 2014, surgiu uma brecha (ou o mote) por meio da qual, já que as comprovações de fraudes no sistema de urnas eletrônicas seriam não só complicadas (vale lembrar que o PSDB pediu auditoria junto ao TSE, algo que corresponderia a outrora tradicional “recontagem de votos”, e a mesma concluiu que não houve fraude), o inconformismo com a derrota poderia ter sobrevida; ter-se-ia encontrado, fortuitamente, o motivo “legal” para “vencer” a agora presidenta, e não mais candidata, “justificando”, então, a sua sumária deposição: as pomposamente denominadas “pedaladas” [o pedido de inclusão nos debates da Comissão Especial do impeachment da delação premiada do senador Delcídio do Amaral em que ele diz que Dilma supostamente teria interferido no Judiciário para barrar a Lava Jato é uma prova disso, ou mesmo a acusação obtida por meio de grampos telefônicos (!!) de que ela estaria tentando obstruir a Justiça por avisar à Lula que o seu Termo de Posse no Ministério estava a caminho]. Aos que, movidos pela paixão, ou que estejam com a visão turvada pelo pulular dos acontecimentos, ou mesmo os legalistas, tendem a imputar plena legalidade ao processo de impeachment em curso é só trazer à baila o fato de ex-presidentes, como Fernando Henrique Cardoso, terem se valido do mesmo expediente – sem nada lhes acontecer – para o qual se tenta agora justificar a “razão” para a deposição da presidenta; no mínimo, pela ótica exclusivamente jurídica, tem-se aí um caso para o qual já se tem sentença (jurisprudência); é um processo, para o bem da justiça, natimorto [se outras razões justificarem o impedimento, por outro lado, ficará comprovada a tese de que primeiro se incrimina (o pedido de impeachment), e depois se vai em busca das provas]. Em tal fato, portanto, se revela ruidosamente toda a lógica manipulatória e conjurativa que muitos – e, portanto, caem-lhes bem o adjetivo de golpistas – preferem não observar.
Democracia e transformação substantiva
No comício realizado na Avenida Paulista, em São Paulo, na já histórica sexta-feira dia 18 de março de 2016, Lula, que tem sido objeto de caça dos procuradores do MP paulista (aqueles que revelaram de público a sua ignorância ao não saberem a diferença entre quem foi Hegel e quem foi Engels) e do juiz Sérgio Moro (que, depois de autorizar a condução coercitiva, não só grampeou o ex-presidente, como vazou para a TV Globo uma conversa dele com a presidenta, que tivera, com essa divulgação, a prerrogativa de foro privilegiado violada), discursando para um mar vermelho de cerca de meio milhão de pessoas, disse, entre algumas outras verdades, que não existe outro caminho na sociedade brasileira em que se possa conviver com a diversidade (de ideias) que não seja o da democracia. Para o objeto de sua fala [a convivência entre diferentes (partidos, classes)], no imediato, a sua afirmação está correta; ela só não abrange o fato de que as ideias são, no limite (e sem dedução direta), produtos das classes. Entendendo a democracia não apenas no seu sentido político e abstrato, pois, no capitalismo da época moderna, a igualdade é celestial (citoyen) e a desigualdade é terrena (bourgeois), e uma não se sobrepõe a outra, é perfeitamente admissível a evolução gradual em direção a um autogoverno social em que a liberdade seja plena e universal – “a condição para o livre desenvolvimento de um, seja a condição para o livre desenvolvimento de todos” [supressão das classes] (Marx; Engels. Manifesto Comunista; grifos meu). A alienação dos meios de trabalho é a “pedra” – novamente parafraseando o poeta Drummond – no meio desse caminho; sem a sua remoção, a passagem rumo àquela liberdade continuará obstruída. E, como ela ainda se encontra cravada no “meio do caminho” em que a sociedade brasileira trilha em busca de sua plena emancipação, é mais do que correto afirmar que a divisão em classes – cada dia mais complexa em suas subdivisões – dessa sociedade ainda exige, por ser ela mais preferível do que o arbítrio, a igualdade celestial da democracia. É rigorosamente nesse sentido que os atos em defesa da democracia e contra o Golpe são justos: visam respeitar a vontade da maioria expressa nas urnas e impedir, por intermédio de um golpe, a deposição da presidenta eleita. Nesse sentido, a defesa da legalidade democrática é algo que, em si, deve envolver a todos.
No último dia 18, ao participar da manifestação num estado da região Nordeste, um fato chamou-me a atenção: ouvi, de dois líderes populares, um protesto em favor do direito de comer carne. O que, a princípio, pode parecer algo trivial, deixa de ser na medida em que se atenta para o fato desse componente nutricional passar a integrar a dieta alimentar desse setor da população; o despertar para a política advém exatamente da ameaça de perdê-lo. Desprezar esse episódio aparentemente banal – dentre outros tantos possíveis e correlatos – é, literalmente, abdicar-se da luta econômica do proletariado. Muito do que se vê na onda conservadora – como a reação ao PBF por supostamente incentivar o ócio (é sabido que muitos dos beneficiários têm no programa um “complemento de renda”, pois continuam trabalhando), às cotas raciais, Escola sem Partido – é, sem mais, uma reação pequeno-burguesa a toda essa tímida, porém real, mobilidade social materializada pela ação dos governos do PT. É certo que, se esse projeto de conciliação manter-se de pé, ante o caminho de polarização crescente (sem perspectiva de armistício político) que se vê na sociedade brasileira, é preferível aos que se colocam na perspectiva da classe operária substituir aquilo que G. Lukács chamou de política destrutiva ou catastrófica (Cartas sobre o stalinismo) por uma política de transformação cumulativamente substantiva. Dizendo de outro modo, diante das mudanças em curso (os programas sociais e as mudanças acima mencionadas), e da consequente ascendente polarização da sociedade brasileira, é mais vantajoso para o proletariado lutar em defesa e pela manutenção das conquistas sociais e, ao mesmo tempo, envidar esforços em direção a mudanças qualitativamente superiores, do que abdicar-se da arena em que se trava a luta maior e se inscrever numa cizânia estéril e natimorta. Cito a título de demonstração o seguinte: imagine uma galé cuja maioria dos remadores resolve rumar a oeste; um pequeno grupo discorda por acreditar que eles deveriam remar para leste; o impasse persiste sem solução entre eles e ambos os grupos resolvem remar segundo as suas convicções. É óbvio que, por conta da maioria de remadores, esse barco atracará ou seguirá em direção oeste; isso não invalida o fato de que muitos poderiam ser dissuadidos de remar a oeste e passassem a remar a leste. Mas, quando uma tempestade torrencial se avizinha no horizonte, a solução prática para o impasse precisa ser encaminhada e a embarcação precisa começar a se mover. Essa seria uma situação análoga ao que vivemos no Brasil de hoje. Ainda que a crise estrutural do capital e o pragmatismo petista no trato da questão econômica cobrem no futuro o seu preço, uma sociedade menos hostil a mudanças, ou pelo menos com os soldados proletários dessas mudanças mais armados politicamente, é preferível do que uma sociedade conscientemente gestada para o embrutecimento de seus membros.
*Texto originalmente publicado no Blog da Editora Boitempo.
*Rogério Castro (rogeriocastrouesb@hotmail.com) é Doutorando em Serviço Social pela UFRJ; mestre em Serviço Social pela UFAL. Professor universitário e pesquisador da obra do filósofo marxista húngaro, György Lukács. É autor de artigos em periódicos, jornais e sites especializados. Dentre os trabalhos publicados, destacam-se: “Os 40 anos sem Lukács e o debate contemporâneo nas ciências humanas” (Revista Serviço Social e Sociedade, n. 114); Celso Furtado e a formação do Estado brasileiro em Formação Econômica do Brasil (Revista “Cadernos do Desenvolvimento” do Centro Internacional Celso Furtado, n. 14); O debate sobre o trabalho em Marx (Revista Praia Vermelha, UFRJ, v. 24, n. 2 – no prelo); além do ensaio, pelo Blog da Boitempo, “As raízes da escalada conservadora no Brasil atual”.