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Gustavo Henrique Lopes Machado

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Alétheia

O jovem Trotsky: entre menchevismo e bolchevismo

Gustavo Henrique Lopes Machado - Publicado: Terça, 08 Março 2016 00:00

O pensamento e, sobretudo, as posições políticas de Leon Trotsky no período que antecede a Revolução Russa foram, desde muito cedo, objeto de grandes debates e polêmicas.


E isto não se deu sem motivo. Gozando de grande prestígio pela sua atuação na revolução de 1917 e na direção do Exército Vermelho, Trotsky foi o alvo prioritário da burocracia stalinista quando se tornou o porta-voz de sua oposição. Nesse cenário, as polêmicas e disputas entre Lenin e Trotsky, que se seguiram desde pelo menos o segundo congresso da Social-democracia russa – 1903, quando se deu o seu fracionamento entre Bolcheviques e Mencheviques–, foram largamente difundidas. Com particular intensidade as duras críticas de Lenin à Trotsky realizadas no período entre 1909 e 1912. Não é preciso remontar aqui o que já fora dito e redito um sem-número de vezes. É suficiente mencionar que, com auxílio dessas antigas polêmicas, Trotsky fora convertido em menchevique e em inimigo número um do bolchevismo.

Não sem razão, os trotskistas e o próprio Trotsky se dedicaram, desde então, a mostrar o outro lado da moeda. Particularmente, a mútua admiração que sempre existira entre os dois principais dirigentes da revolução de 1917, a confirmação histórica da teoria da revolução permanente elaborada por Trotsky desde o início do século, seu papel de destaque na revolução de 1905, suas críticas precoces e certeiras a visão estapista da história dos mencheviques e assim por diante. Por outro lado, as diferenças com Lenin foram, regra geral, expostas do seguinte modo: a revolução de 1917 marcou a aproximação de Lenin da teoria da revolução permanente de Trotsky e a adesão desse último à concepção de partido sustentada pelo principal dirigente do partido Bolchevique, reconciliando-os.

Apesar desta conclusão não ser, em suas linhas mais gerais, falsa, distante está de dar conta do cerne das diferenças entre os dois. Em verdade, Lenin raríssimas vezes abordou o tema da teoria da Revolução Permanente. Trotsky, inclusive, sustenta, anos depois, que Lenin sequer havia lido seus escritos sobre o tema. Por outro lado, exceto por um antigo ensaio denominado Nossas Diferenças Políticas, a questão da concepção de partido em Lenin encontra-se praticamente ausente nos escritos conhecidos de Trotsky até a revolução. Qual seria, então, o motivo central do embate entre Trotsky e Lenin no período entre a cisão da social-democracia russa e a revolução de 1917?

Em função das calúnias a que foi sistematicamente submetido, da identificação caricatural do stalinismo com o leninismo, o próprio Trotsky não deixou de nuançar a real natureza de suas divergências com Lenin no período anterior a sua adesão ao bolchevismo. Tratava-se do conciliacionismo ou do centrismo de Trotsky que, em todo período precedente, batalhou pela unidade entre bolcheviques e mencheviques, entre revolucionários e reformistas. Não foi casual que somente em seu último e inacabado escrito, a biografia de Stalin, Trotsky dedicou um espaço considerável a este tema. Por isso, nesse artigo, nos centramos exclusivamente nesse texto, tendo em vista esclarecer o conteúdo central da polêmica de então. Sobretudo, hoje, passados 25 anos do sepultamento definitivo do aparato stalinista no leste europeu, já é chegada a hora de reexaminarmos a questão sem a interpenetração das caricaturas do passado, para dela retirarmos as devidas lições.

O conciliacionismo de Trotsky

É sabido que Trotsky, já na sua juventude, desenvolvera a tese de que somente o proletariado russo poderia assumir o papel dirigente em uma futura revolução nesse país. Mais ainda. Tal revolução, em função da posição social do proletariado, assumiria tarefas imediatamente socialistas. Sua concepção se opunha tanto a visão etapista menchevique-plekanoviana da necessidade de uma longa etapa liberal burguesa na Rússia, assim como a teoria do próprio Lenin que acenava, ainda que temporariamente, na direção de um governo operário-camponês nos marcos de uma República burguesa. Trotsky poderia, nesse caminho, ainda que grosseiramente, ser caracterizado como à esquerda dos Bolcheviques. Como explicar, portanto, o fato de ter batalhado tão persistentemente pela reconciliação entre bolcheviques e mecheviques?(1).

O próprio Trotsky nos explica: em sua antiga acepção, com o irromper de uma “nova Revolução, sob pressão das massas trabalhadoras, as duas frações iriam de qualquer maneira ser compelidas a assumir uma posição idêntica, como o haviam feito em 1905” (TROTSKY, 2012, 354). Em outro lugar, assinala o que seria “calcanhar de Aquiles’ do `trotskismo’: “o conciliacionismo, associado à esperança de uma reencarnação revolucionária do menchevismo” (TROTSKY, 2012, 376). Qual seria o pressuposto teórico dessa visão conciliacionista propugnada por Trotsky? Em que se baseava sua crença de que o menchevismo se envergaria para posições revolucionárias sob o influxo de um processo revolucionário?

Em outra passagem, o revolucionário russo esclarece seus pressupostos: a “política de conciliação crescia nas esperança de que o próprio curso dos acontecimentos pudesse proporcionar a tática necessária” (TROTSKY, 2012, 354). Ou seja, na acepção do jovem Trotsky, as táticas são “proporcionadas” pelo movimento, pelos acontecimentos e não em função do objetivo final, já que este último é engendrado espontaneamente pelo primeiro. Tratava-se unicamente de fomentar um bloco à esquerda e, feito isto, a realidade mesma se encarregaria do resto. Tática e estratégia, meios e fins são separados por um abismo. Tanto é assim que logo em seguida complementa:

“o otimismo fatalista significa, na prática, não apenas repúdio a luta fracional, mas da própria ideia de um partido, porque, se ‘o curso dos acontecimentos’ é capaz de, diretamente, ditar às massas a política correta, qual a utilidade de qualquer unificação especial da vanguarda proletária, da elaboração de um programa, da escolha de dirigentes, do prepara no espírito da disciplina?” (TROTSKY, 2012, 355).

O raciocínio empírico oculto sobre tal equívoco não é difícil de deduzir. Com a reação que se abateu a partir de 1909 na Rússia, a tendência à unidade a todo custo se acirrou nas fileiras da social-democracia. Como explica Trotsky: a “contínua fragmentação do Partido em pequenos grupos, que travam batalhas implacáveis no vácuo, despertou, em muitas frações, o desejo de acordo, de conciliação, de unidade a qualquer preço” (TROTSKY, 2012, 354). Parafraseando Bernstein, como o movimento é tudo e o objetivo final brota espontaneamente desse movimento, a força das posições revolucionarias são medidas em função da dimensão quantitativa do bloco que se contrapõem à classe dominante, independente de seu programa específico. No entanto, a autocrítica de Trotsky foi completa. Destaca que certos “críticos do bolchevismo […] encaram o meu velho conciliacionismo como expressão de sabedoria. Contudo, o seu erro profundo já foi há muito demonstrado tanto na teoria como na prática” (TROTSKY, 2012, 354-355). Tal erro profundo consiste basicamente no seguinte:

Uma simples conciliação de frações só é possível ao longo de uma espécie de linha ‘média’. Mas onde há garantia de que esta diagonal possa coincidir com as necessidades do desenvolvimento objetivo? A tarefa da política científica é deduzir um programa e uma tática de uma análise da luta de classes, não do paralelogramo [sempre instável] de forças secundárias e transitórias, como frações partidárias. Na verdade, a posição da reação era tal que apertava a atividade política de todo Partido dentro de limites extremamente estreitos. A esse tempo, poderia parecer que as divergências não tinham importância e eram, artificialmente, inflamadas pelos dirigentes emigrados. Contudo, precisamente durante o período da reação, o partido revolucionário não poderia forjar os seus quadros sem perspectivas mais amplas” (TROTSKY, 2012, 354-355).
Como se vê, para o Trotsky pós-1917, a elaboração teórica de uma política não se baseia na somatória ou justaposição de partidos ou frações, não se funda em uma linha média tacejada na somatória de várias organizações de esquerda, mas nas “necessidades do movimento objetivo”. Por isso se deduz “um programa e uma tática de uma análise da luta de classes”. É interessante notar que, segundo Trotsky, é justamente em um período de reação que um partido precisa forjar seus quadros em perspectivas mais amplas, isto é, com uma delimitação programática clara e diferenciação permanente, no presente caso, com o menchevismo. Evidentemente, a pressão em sentido oposto foi muito grande. Tanto que, ao tratar da permanência de Stálin no partido Bolchevique naquele período de vacas magras, assinala que, durante os anos de reação, Stalin “não foi um entre as dezenas de milhares que desertaram do Partido, mas um entre as poucas centenas que, apesar de tudo, lhe continuaram fiéis” (TROTSKY, 2012, 357). Nessa altura, o partido Bolchevique que poucos anos antes organizava dezenas de milhares, se viu reduzido a algumas centenas, talvez menos. Isto tornou a posição de Trotsky mais razoável? A unidade com os mencheviques em função do reduzido número de integrantes do partido Bolchevique que, segundo a metáfora de Lenin, a época se assemelhava a uma “criança coberta de abscessos”?

Lenin pensava exatamente o oposto. Conforme nos explica Trotsky, o dirigente bolchevique escreveu em 1911 que, naquele período, numerosos social-democratas  “mergulharam no conciliacionismo, partindo dos motivos mais diversos. Mais consistente que todos era o conciliacionismo expresso por Trotsky, por isso, foi o único a procurar uma ‘base teórica’ para essa política”. Isto fez Lenin ver em Trotsky “a maior ameaça para o desenvolvimento de um partido revolucionário” (TROTSKY, 2012, 355-356). Como se nota, Lenin não apenas combateu as posições de Trotsky, como viu nela a principal ameaça para o desenvolvimento de um partido revolucionário. Mais até que as posições explicitamente reformistas dos mencheviques. Em que se baseava um juízo tão severo?

Em seguida, Trotsky explica a posição de Lenin. “‘Aprendemos na época da Revolução’, escreveu Lenin, em julho de 1909, ‘a falar francês’, isto é, a despertar a energia e o ímpeto direto da luta de massa”. No entanto, o que fazer quando a revolução não está na ordem do dia? Lenin prossegue: “agora precisamos, na fase de estagnação, de reação, de desagregação, aprender a falar alemão, isto é, a trabalhar lentamente… conquistando o terreno polegada por polegada” (TROTSKY, 2012, 356). Seria este ‘falar alemão’, este trabalhar lentamente, a política do conciliacionismo de Trotsky? Da unidade com os mencheviques no intento de fortalecer o bloco político anti-czarista e de colher as migalhas do menchevismo? Absolutamente não. Esta era, na verdade, a posição de Martov, o principal dirigente Menchevique à época. Para Martov, continua Trotsky, “ ‘falar alemão’ significava a adaptação ao semi-absolutismo russo, na esperança de que, gradualmente, se ‘europeizasse’”. Por outro lado, para “Lenin, a mesma expressão queria dizer: a utilização, com ajuda de um partido ilegal, de todas as magras possibilidades legais, no trabalho de preparo de uma nova Revolução” (TROTSKY, 2012, 356-357).

Como se vê, para Lenin, mesmo em um período de reação, as tarefas legais e ilegais são hierarquizadas pelo “trabalho de preparo de uma nova Revolução” e não em um acumular forças de modo indeterminado. Para melhor alçarmos o sentido desse ‘falar alemão’ de Lenin, assim como seu rechaço a toda e qualquer conciliação, é esclarecedor as palavras de Trotsky a respeito da tática de Lenin frente as eleições da DUMA, particularmente no que diz respeito a relação entre partido Bolchevique e Mechevique nesse processo. Feito isso, podemos distinguir com clareza o abismo entre a concepção que procura extrair as táticas dos acontecimentos do dia que passa e àquela que, sem desconsiderá-los, deduz um “programa e uma tática de uma análise da luta de classes”, isto é, das “necessidades do desenvolvimento objetivo”.

A posição de Lenin diante das eleições da DUMA

Se Lenin rejeitava a unidade entre bolcheviques e mencheviques tal como defendera Trotsky, qual seria sua posição diante do processo eleitoral da DUMA? Nesse caso, seria ele adepto do bloco eleitoral em função da fragmentação do movimento revolucionário russo e, particularmente, da drástica redução numérica do partido Bolchevique? Assim Trotsky resume a plataforma eleitoral Bolchevique:

Os bolcheviques empenharam-se na luta eleitoral separados dos liquidadores[mencheviques], e contra eles. Os operários deviam reunir-se sob a bandeira das três principais palavras de ordem da revolução democrática: a república, a jornada de oito horas e a confiscação dos domínios territoriais. Libertar os pequenos burgueses democratas da influência dos liberais, arrastar os camponeses para o lado dos operários – tais eram as principais ideias da plataforma eleitoral de Lenin. (TROTSKY, 2012, 396)

Mesmo no processo eleitoral, em meio a uma ditadura autocrática, os bolcheviques não apenas marchavam separados dos mencheviques, mas contra eles.  “Energicamente, combateu os liquidadores durante a campanha a fim de ter os seus próprios deputados: tratava-se de assegurar um importante ponto de apoio” (TROTSKY, 2012, 399). Teria Lenin lutado tão energicamente contra os mencheviques a fim de conseguir mais deputados? Sem dúvida, os deputados bolcheviques seriam “um importante ponto de apoio”, no entanto,  “toda a sua política orientava-se para a educação revolucionária das massas. A luta da campanha eleitoral nada representava para ele se, após, os deputados social-democratas, na Duma, permanecessem unidos” (TROTSKY, 2012, 399). Ou seja, o critério fundamental não era a eleição de deputados, tampouco a quantidade total de votos, mas a educação revolucionária das massas, o que apenas pode ter como centro a clara distinção das posições dos mencheviques. Em resumo: “procurava proporcionar aos operários todas ‘as oportunidades – a cada passo, com cada ato – para convencerem-se de que nas questões fundamentais os bolcheviques distinguiam-se nitidamente de todos os demais grupos políticos’ “. (TROTSKY, 2012, 399-400).

Mas existe ainda outro aspecto fundamental, largamente explorado por Trotsky em sua autocrítica das posições de juventude em favor das posições bolcheviques. Além de ter sustentado uma posição conciliacionista, ao pressupor que a luta conduz por si mesma à posições revolucionárias, Trotsky não deu o peso devido a base social dos respectivos partidos. Diz ele que o “bolchevismo contava com a vanguarda revolucionária do proletariado e ensinou-lhe como arrastar atrás de si o camponês pobre. O menchevismo contava com a aristocracia operária e inclinava-se para a burguesia liberal” (TROTSKY, 2012, 376-377). Muito embora não exista um vínculo necessário e individualizado entre a composição social e o programa político, este fator produz inclinações em conformidade com as próprias características dos setores sociais envolvidos. Não sem razão, para Lenin, o processo eleitoral era tratado prioritariamente em função de seu trabalho na classe operária. Era nesse setor social que os bolcheviques escolhiam os seus candidatos e avaliavam sua influência. Tanto é assim que, após a eleição da quarta DUMA, os “sete mencheviques, quase todos intelectuais, procuravam colocar os seis bolcheviques, operários com pequena experiência política, sob seu controle”. Diante disso, a posição de Lenin foi a seguinte: se “todos os nossos seis são oriundos dos distritos operários, não devem se submeter em silêncio a um grupo de siberianos” (TROTSKY, 2012, 398). Os siberianos se tratavam, como é sabido, predominantemente de intelectuais.

Por fim, a autocrítica das posições do jovem Trotsky e a síntese das lições extraídas da atuação dos bolcheviques naqueles anos entre 1909 à 1912, em que o partido passara de um restrito agrupamento de militantes a uma forte inserção na classe operária, é assim resumida:

“Todos grupos hostis ao bolchevismo – os liquidadores, os renuncistas, todas as matizes de conciliadores – mostraram-se absolutamente incapazes de lançar raízes na classe operária. Daí Lenin tirou a sua conclusão: ‘Unicamente no curso da luta contra tais grupos pode o verdadeiro Partido Social-Democrata dos operários constituir-se na Rússia’‘ (TROTSKY, 2012, 425)

Considerações finais

Como se vê, apeser do jovem Trotsky estar, desde o começo e em nossa opinião, correto a respeito do caráter e sujeito social da revolução russa, apesar de ter escrito uma das mais brilhantes análises particulares de um processo revolucionário – A revolução de 1905 –, apesar de ter se revelado muito precocemente um grande orador de massas, assim como propagandista; sua posição política se situa entre o menchevismo e o bolchevismo. Independente da maior ou menor justeza de várias de suas posições, mesmo em relação aos bolcheviques, de nada valeriam se, na sua efetividade, se apresentassem mescladas em uma linha média de um agrupamento político que congrega em seu seio revolucionários e reformistas.

É evidente que os bolcheviques tiveram êxito porque conseguiram corrigir a tempo os limites de um programa que acenava unicamente na direção de uma república democrática. No entanto, não teriam sequer a chance de se corrigir, se não estivessem fortemente enraizados na classe operária, com uma organização autônoma e programaticamente independente. Não apenas separados dos mencheviques, mas, sobretudo, “contra eles”.

Notas:

Cabe lembrar que, muito embora, formalmente, se tratasse de frações do Partido Operário Social-Democrata Russo, na realidade eram partidos diferentes, com seus núcleos dirigentes e estruturas independentes. Ainda que tenha ocorrido tentativas de reconciliação manifestas na realização de congressos em comum e, mesmo, por um curto período, a criação de um collegium do Comitê Central que congregava membros de ambas as frações.

Referências:

TROTSKY, Leon; COGGIOLA, Oswaldo. Stalin: Biografia – Estudo preliminar de Oswaldo Coggiola. Editora Livraria da Fisica, 2012, São Paulo.


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