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Ilka Oliva Corado

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Crónicas de uma inquilina

Censurar os párias e iletrados

Ilka Oliva Corado - Publicado: Terça, 01 Março 2016 16:33

Tudo vai bem com meus textos enquanto não apoio as conquistas progressistas dos governos latino-americanos que se uniram ao sonho do menino que vendia aranha (alusão a um conto de Eduardo Galeano). Tudo vai bem com meus textos enquanto me calo frente às injustiças que sofrem os imigrantes que não têm documentos nos Estados Unidos.


Tudo vai bem com meus textos enquanto eu esconda com meu silêncio e indolência as intervenções estadunidenses nos países em desenvolvimento. Enquanto não questiono o papel que desempenham as massas amorfas nessa caldeira de desinformação que nos consome e nos desvincula de um possível despertar como povo.

Tudo vai perfeitamente bem com meus textos enquanto eu, a partir de minha posição de pária, não questiono a falta de integridade de uma ultraesquerda latino-americana que dá punhaladas pelas costas em todo governo que ouse lutar pela libertação de seus povos. Entenda-se que me refiro aos  governos progressistas.  Nem todos os da ultraesquerda estão no mesmo saco, mas em quem couber a luva que busque a maneira de endireitar seu caminho pelo bem de seu povo. De que lado estamos? Ou vamos ir de gol contra, em gol contra?

Enquanto explico com frutas, tudo vai bem com meus textos desde que eu exclua do meu vocabulário, de meus anseios, de meu agradecimento de plebeia os nomes de Fidel, Chávez, Lugo, Lula, Néstor, Maduro, Cristina, Dilma, Evo, Correa e Mujica.

Tudo vai bem desde que me cale e não dê opinião nem mesmo nos inumeráveis casos de feminicídios e violência de gênero. Desde que não me atreva a questionar a misoginia que nos apodrece como humanidade a partir de um patriarcado que nos destroça e que continuamos vendo como norma de uma sociedade impoluta e carola que destila dupla moral.

Talvez não devesse perder tempo escrevendo este artigo, deveria deixar passar, mas não posso, basta! Por escrever sobre os governos progressistas vivendo nos Estados Unidos me chamaram de mercenária; e acrescentam que recebo dinheiro de Cristina e Dilma para falar bem de seus governos.

A mim não têm que perguntar se sou Cristinista, pois está na cara. Que outra coisa eu poderia ser se sou pária? Como pária penso, opino, questiono, amo. Por acaso não dá para ver meu amor por Cristina? Que outra coisa poderia sentir estando no bueiro? Ódio, desprezo, inveja? Jamais. Por esses governantes só se pode sentir amor e agradecimento.  Que outra coisa se pode sentir por Chávez, senão amor? Meus artigos são tendenciosos? Claro, não se pode ser imparcial diante da injustiça; sou ativista e minha voz e minha denúncia estarão sempre do lado do oprimido, sempre estarão com os povos e com o bueiro. De mim não peçam refresco em vez de sangue nas veias.  Não são governos perfeitos, claro, mas não podemos fingir não ver as mudanças visíveis que proporcionaram à América Latina. Basta perguntar à oligarquia mundial que os sentem como dor de úlcera.

Dizem que vivo folgadamente nos Estados Unidos graças ao dinheiro que me enviam esses governos. Como assim, folgadamente? Trabalho como empregada doméstica e quem quiser vir me ajudar a limpar banheiros será bem vindo; que venha ver como ganho meu pão de peito aberto. Será que, por viver nos Estados Unidos, não tenho direito de expressão? Ou será que devo ficar cega e dizer maravilhas de um sonho americano que não existe e que é utilizado para manipular as massas do mundo? Por acaso devo ficar calada vendo como os meios de comunicação lançam bombas midiáticas que paralisam o pensamento crítico das massas?  Não tenho direito de questionar o modo de proceder da oligarquia latino-americana para com seus povos? Não tenho direito de pensar e de sentir, de não concordar? A que tenho direito, então? De calar-me?

Nem sequer há debate, não há nenhum tipo de questionamento, censuram-me e o argumento é minha falta de raciocínio por ser iletrada; e então me chamam de fanática e mercenária. Vejam só! E então pergunto: os párias, por sermos iletrados, não pensamos, não temos matéria cinzenta no cérebro? Somos incapazes de ter opinião própria? Então os párias só servem para carregar o piano, guardar silêncio e, se nos rebelarmos, para apanhar e levar bala? Só servimos como coringa para os letrados que graças às injustiças que vivemos nós, os zé ninguéns, obtêm condecorações, viajar pelo mundo dando conferências e, perante a opinião pública mundial, atrevem-se a dizer-se intelectuais, pesquisadores e jornalistas destacados?

E nós os párias, os pobres, que padecemos as misérias de um sistema corrupto e de uma sociedade apática, devemos ficar em silêncio para não incomodar ninguém. É isso que querem, que nos calemos? Que a denúncia seja feita por quem tem o suporte da educação superior?  Querem que continuemos carregando o piano e engolindo a cólera e a frustração diante de tanto abuso? Se a expressamos somos chamados de ressentidos sociais, de idólatras, de ignorantes.  Claro que somos ressentidos sociais, porque temos veias, coração, sentimos, respiramos com intensidade e gritamos das entranhas de um povo milenar que continua resistindo. Nos querem sedados, indiferentes, silenciosos, ausentes.

Vários meios de comunicação independentes, que justificam sua linha editorial como sendo de caráter incondicional aos povos, censuraram meus artigos que têm a ver com violência de gênero e progressismo latino-americano. Nem falar em mencionar Cristina e Dilma porque a bílis se lhes transforma em fel e discursam contra minha realidade de iletrada. O que tem Cristina que os enfurece tanto? Eu sei, tem uma inteligência de invejar, um caráter de guerreira ancestral, tem beleza natural, e um amor puro pelos marginalizados, não só da Argentina como do mundo. Não puderam com ela como não puderam com Evita.  Não puderam com Dilma que desde menina nadou contra a corrente. Haja mulher para ter resistência, integridade, força e brio de favela marginalizada. Que têm contra Maduro? Não engolem que um motorista de ônibus seja o presidente da minha pátria, a Venezuela. Um pária como presidente, como na Bolívia um indígena ancestral. As coisas estão mudando e muitos querem que permaneçam estagnadas para que sejam os mesmos de sempre a mandar com uma política com matiz oligarca para continuar saqueando nossa Pachamama.

Só quero dizer que todos os meios de comunicação que quiserem poderão me censurar. Poderão continuar me acusando de mercenária sempre que quiserem e de plagiar outros colunistas já que não acreditam que nós, os iletrados, podemos ter opinião própria, mas que deste bueiro onde nasci, cresci e vivo continuarei expressando minha opinião.

E para aqueles que desvalorizam minha opinião por eu viver nos Estados Unidos, só quero dizer que as vozes de resistência são necessárias em todos os países do mundo. Em todos os rincões havidos e por haver, só assim conseguiremos mudar o mundo. E que todos, de onde estejamos vivendo, temos a obrigação humana e moral de não guardar silêncio diante da injustiça. Guardar silêncio nos torna cúmplices.

E para terminar quero dizer que não sou nenhuma jornalista de altos voos, nenhuma escritora vencedora que esteja entre os livros mais vendidos, pois sou antissistema.  Não digo isso para dar-me ares de mártir.  Sou um ser humano entre os milhões que há no mundo, sou um pária, um zé ninguém como os milhares que vivem nos esgotos. Mas sou, não finjo ser. Sou real e desta invisibilidade de povo marginalizado pelo menos questiono a razão da injustiça social, e, não, não gosto das palavras rebuscadas, sou transparente e reta, sou subúrbio. Fica uma pergunta no ar: qual a finalidade de censurar os párias e os iletrados? Por acaso somos perigosos? Perigosos para que, para quem? Será a liberdade de expressão direito de alguns, devido a seu grau de escolaridade e status social?

Tradução de Ana Corbisier/Diálogos do Sul.


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