E esta diferença é, indiscutivelmente, o retrocesso brutal na capacidade de mobilização das esquerdas - política e social - manifestada naquele período. Foi ali, principalmente, que o pensamento e a afirmação de "um outro mundo é possível", ou da explicitação do objetivo estratégico do socialismo, ocupou corações e mentes de quem participava das lutas. Nas ruas, nas entidades da sociedade civil organizada, nas edições locais do Fórum Mundial Social, o que estava em jogo não era uma proposta “melhorista” do capitalismo. O que estava em jogo era a perspectiva de desconstrução do regime essencialmente perverso predador. O que estava em jogo era a necessidade de contestar uma globalização financeiro-especulativa profundamente degradante do ambiente existencial, com sua lógica da competitividade tentando se sobrepor ao sentido de necessária convivência solidária e fraterna entre povos como garantia de sobrevivência existencial da sociedade humana.
No Brasil, nem mesmo a vitória de Fernando Henrique Cardoso em 1994 foi capaz de frear essa tendência combativa. Pelo contrário. Foi justamente aí que se radicalizou o processo de mobilizações e ocupações de Brasília por grandes manifestações onde movimentos sociais - com destaque para o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - e partidos da esquerda combativa não temiam em se afirmar até como revolucionários, consequentes com a afirmação de socialistas que guardavam em seus documentos programáticos. E tão fortes se mostraram tais mobilizações que, no final do mandarinato neoliberal, privatista, subalterno aos desígnios políticos e econômicos do grande capital internacional, o candidato dos maganos à sucessão presidencial se apresentava sob o bordão do "continuísmo sem continuidade", sabendo-se lá o que isso queira dizer para além de dissimular seu verdadeiro fundamento conservador.
É aí que se dá a tragédia. O início de uma era saída da imensa esperança de mudança que se transforma num período de imensas decepções e traições, programáticas e ideológicas. A era nascida da chegada de Lula ao Planalto. Quando tomamos conhecimento de que o até então líder inconteste e referencial de um partido onde muito se discutiu no embate reforma x revolução - onde Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e este escrevinhador viveram amplos períodos de desconfiança como "reformistas”-, era na verdade uma "metamorfose ambulante" depois de garantir "nunca ter sido de esquerda".
E para que, tal transformismo?
Para consolidar o que seu próprio porta-voz de primeiro mandato, o insuspeito acadêmico André Singer, até hoje a ele ligado, definia como "pacto conservador de alta intensidade" conformado sob a astúcia de um "reformismo fraco". Ou seja; uma deliberada decisão de governar sem incomodar os de cima - pelo contrário, criando condições que nunca teriam tido antes para "lucrar tanto". Sob a garantia de uma política assistencial de baixo custo, acobertando práticas antissociais gritantes, como o ataque à Seguridade Social que os petistas haviam combatido no governo neoliberal anterior. Era o lulopragmatismo. Que vinha para estiolar os movimentos sociais mais populares, sobre os quais mantinha prestígio histórico, e imensa quantidade de gordura para queimar por conta de bolsas-família e cestas-básicas, e os da aristocracia operária a partir dos quais fincara seus alicerces de poder - os sindicalistas do ABC.
Mais ainda. Com sua reconhecida intuição política; com o simbolismo do "presidente-operário", neutralizava boa parte de uma intelectualidade de esquerda que tudo faria, na sequência, para evitar o "mal maior": o retorno dos tucanos ao poder. Funcionou enquanto durou a ilusão das commodities a preços tentadores no comércio externo. Funcionou porque a parte assistencial - onde se distribuía a 11 milhões de família, anualmente, o que somente os dois maiores bancos privados lucravam em apenas 9 meses destes mesmos períodos anuais - garantia realmente a ascensão de segmentos miseráveis à possibilidade de um consumo despolitizado que se garantia por generosa política de créditos. Nunca, também, linha branca e montadoras de automóveis tiveram tanta isenção tributária.
Mas castelo de areia não tem vida permanente. O que permitira a pantomima dos dois governos Lula se desmorona no estelionato eleitoral da reeleição de Dilma. A perplexidade se instala com o absurdo de ver a representante do governo, dito, popular-democrático, assumir na íntegra o programa antissocial do candidato da direita reacionária que havia derrotado nas vésperas. As consequências do estelionato eleitoral não se fizeram esperar. As pesquisas reduzem a pó o que havia sido a vitória do veto contra a candidatura da restauração conservadora, na medida em que o fora derrotado prevalecia como realidade conjuntural. E Dilma se atolou de forma comprometedora. Não ganhou nada, com sua traição, entre os que escolheram para se submeter, e jogou no lixo o apoio que havia recebido de forças até então dispersas da esquerda combativa, num segundo turno vencido por um "beiço de pulga".
Dava aí o ponto final na costura do processo transformista iniciado 12 anos antes. Commodities em queda por todo o mundo. Refluxo econômico nas potências capitalistas importadoras de nossa matéria prima. Descontrole geral sobre o fluxo da dívida. Caos e imprevisibilidade na previsibilidade de um até tsunami. Clima ideal, portanto, para o golpe armado pelos que não têm nenhuma divergência programática com seu governo, mas que com ela disputam o controle da chave do cofre que guarda o botim.
Onde vamos dar?
Difícil prever. Talvez, impossível. Vivemos aquelas fases históricas em que vaca não reconhece bezerro nos diversos campos da sociedade e das instituições republicanas. E onde a direita encontra ânimo para mobilizar seus trogloditas, nostálgicos de peito aberto e alto tom de voz, da ditadura.
Conclusão?
A crise da esquerda tem sua origem e razão, gerou-se, no transformismo imposto ao PT pela perspectiva do poder pelo poder em que o "Lulinha, paz e amor" se abraçou na sua opção pessoal. Pela traição ideológica e programática.
A saída?
A saída depende de que tipo de sociedade pretende quem faz a pergunta. Para nós da esquerda combativa, não há outra. Confluência de esforços, combate ideológico permanente onde movimentos espontâneos - como essa genial mobilização dos estudantes paulistas na ocupação de suas escolas -, e resistir ao golpe proposto pelos que defendem um impeachment que não resultará em nada além de mais do mesmo.
E Luta que Segue! Pois morrer no áspero é nossa sina.