Ontem e hoje li A Confissão da Leoa, de Mia Couto.
A opinião sobre o livro surge ligada a uma sensação de mal-estar.
De Mia Couto somente tinha lido, há alguns anos, outro livro cujo título esqueci. Recordo que, admirando o seu talento, esse romance deixou memória de um mundo impenetrável, onde se moviam pessoas para mim incompreensíveis.
Agora reencontrei um grande escritor, mas repetiu-se o sentimento do não entendido.
Desconheço Moçambique. Estive três vezes em Angola, meia dúzia de vezes em Cabo Verde, duas na África do Sul e visitei a Guiné-Bissau, São Tomé, a Guine Conakry, a Libéria, o Mali e o Senegal.
Não consigo inserir as personagens de Mia Couto na África subsaariana que conheci. Todas, neste livro, desde Mariamar ao caçador Arcanjo Baleeiro, me aparecem como seres impenetráveis. A minha companheira entende-as; eu não.
O realismo mágico de Mia Couto - se assim lhe posso chamar - não tem pontes a ligá-lo ao dos latino-americanos.
No Peru e na Bolívia, viajando pelas altas planuras andinas, reencontrava nos comuneros de aldeias misérrimas gente com quem podia falar. Pensava compreender neles atitudes, aspirações, lutas. Subia pelo tempo em esforço de imaginação e sentia nos comuneros quechuas ou aymarás do século XX a continuidade dos seus antepassados do incário do século XVI. Conversando com eles, escutando o seu castelhano tosco, tinha a sensação de uma intimidade ilusória, imaginava falar com personagens de José Maria Arguedas e Manuel Scorza.
Com Mia Couto, na aldeia moçambicana de Kulumani, esbarro, no final do século XX, com um muro inultrapassável ao escutar o discurso dos moradores, sejam eles do mundo arcaico ou forasteiros vindos do Maputo.
O romance de Mia Couto fez-me viajar até à Ásia Central. Revi-me entre pachtuns da Fronteira afegã. Uma longa viagem que principiou numa guerra moderna da qual fui espectador e terminou na época de Dario, há dois mil e quinhentos anos, quando o rei dos reis persa atravessou a cordilheira do Hindu Kush rumo à Índia.
Conclui que me sentia próximo daqueles montanheses afegãos que lutaram pelas estradas do tempo contra invasores persas, heftalitas, gregos, árabes, mongóis, turcos, ingleses, russos e americanos, muito longe no espaço e no tempo dos aldeões de Kulumani.
Os pachtuns que conheci há 30 anos, os intelectuais e os montanheses analfabetos, transmitiam, de modo diferente, a herança de uma cadeia de muitas culturas, antagónicas algumas, que se haviam interpenetrado em fusões dolorosas.
Na Kulumani de Mia Couto tudo é diferente, o hoje e ontem não se interpenetram e fundem. Naquela aldeia de Cabo Delgado caminho na escuridão. O amor, os feitiços, o medo, a felicidade, o ódio, os mecanismos da memória, o real e o imaginário, o onírico, o mítico empurram- me para um universo cujas portas me aparecem como inultrapassáveis.
O mal-estar desemboca, paradoxalmente, num sentimento de admiração. Sinto que Mia Couto é um gigante da literatura.
Vila Nova de Gaia, 10 de Julho de 2012.
Em dois dias li Cinzas, romance histórico que é o primeiro de uma trilogia moçambicana: As Areias do Imperador.
Transcorreram mais de três anos desde o dia em que escrevi o texto sobre A Confissão da Leoa (acima).
Invadiu-me outra vez, agora mais intensa, a sensação de mal-estar.
Lerei, se vivo estiver quando forem publicados, os outros dois tomos da trilogia. Mas o primeiro contribuiu para o reforço da convicção de que Mia Couto é um grande, um enorme escritor. E também para a certeza de que as portas do seu universo são para mim inultrapassáveis.
Cinzas é uma obra mais ambiciosa do que A Confissão da Leoa. O leitor caminha com dor pela História de Moçambique e as lutas dos seus povos no final do seculo XIX, através do sentir e do viver de camponeses de Inhambane. A relação dessa gente com o mundo é mágica, com frequência onírica, mas o estilo do autor não lembra, repito, o de Arguedas, ou Scorza. É uma relação mágica fascinante que me comove; mas não entendo as personagens, o discurso, as suas reações e comportamento. Permaneço de fora.
Cinzas é simultaneamente um libelo contra o colonialismo, mas diferente das condenações habituais dos seus crimes.
O livro levou-me a outro grande escritor africano de língua portuguesa.
Pepetela e Mia Couto são filhos de portugueses; ambos se assumem como africanos, um como angolano, o outro como moçambicano.
Mas na obra de Pepetela as personagens, com raras exceções, independentemente da sua origem étnica, pensam e falam quase como ocidentais. Nos livros de Mia Couto o quotidiano dos africanos está enraizado na mundividência milenar, nos mitos dos povos de Moçambique. Daí a dificuldade que sinto em me mover no seu mundo fechado.
Parece uma contradição admirar muito um escritor cuja obra me fascina sem conseguir «entender» o mundo que descreve. Mas não sinto essa contradição.
Caty, minha companheira, acha que Mia Couto criou já uma obra merecedora do Nobel de Literatura. Admito que a Academia Sueca não tarde em lho atribuir.
Vila Nova de Gaia, 28 de Outubro de 2015.