Em primeiro lugar, porque as duas vertentes sempre foram diversas, quer dizer, há esquerdas e direitas. Sim, no plural. Em segundo, tal multiplicidade jamais anulará suas substanciais características e divisões. Assim como não há unidade entre a esquerda, também não há dentro do que se compreende por direita. Por exemplo, a direita que sustentou a ditadura militar não é a mesma que operou reformas neoliberais na década de 1990 no Brasil.
Como podemos então compreender essas distinções? Um importante dado seria dizer que direita e esquerda se diferem, especialmente, nas pautas defendidas. Direitos humanos, reforma agrária, educação de qualidade, livre e gratuita, são demandas defendidas historicamente pela esquerda, enquanto a direita está evidentemente preocupada em ser mantenedora do status quo. Mas, se colocarmos as demandas como o fator crucial para distinguir as duas vertentes, cairemos em uma armadilha que acaba ou polarizando, ou, em outros casos, não evidenciando efetivas diferenças, que, para olhos menos atentos, fazem a direita e a esquerda “parecerem iguais”. Poderíamos dizer que a diferença substancial não está nas demandas em si, mas nos objetivos e fins defendidos por cada vertente. Quer dizer, ambas as tendências ideológicas podem discutir a legalização da maconha, contudo, a diferença está na forma e objetivos defendidos por cada qual.
Recentemente, discute-se amplamente a temática exigida na redação do Enem 2015. O exame propôs como tema “persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, o que gerou protestos acalorados de políticos conservadores, líderes religiosos e muitos outros homens inconformados nas redes sociais, que alegaram se tratar de uma temática tendenciosa, e, segundo alguns, tratar-se-ia de uma “doutrinação comunista”.
A esquerda, por outro lado, comemorou bastante. Ressaltou a importância de o Enem destacar uma questão de vital urgência de discussão, mas, equivocadamente, rotulou o tema “violência contra a mulher” como “assunto de esquerda” e, pior, exclusivamente feminista. Considerando que esse tema é um assunto transversal, e, ainda que nenhuma vertente ideológica possua patente sobre qualquer tema, a direita deve debatê-la, pontuá-la e até pautá-la. E, obviamente, fará isso dentro dos seus termos, limites e matriz ideológica.
Citarei dois exemplos concretos de políticas de direitos humanos abordadas na administração de um político de direita que esteve no comando do Chile entre 2010 a 2014. Em 2010, o Serviço Nacional da Mulher,1 no governo de Sebastián Piñera, vinculou uma campanha nacional nos meios de comunicação com o objetivo de denunciar violência doméstica. A campanha foi estrelada por uma celebridade homossexual assumida que dizia: “Quando criança, muitas vezes me chamaram de marica, mas quem é o verdadeiro marica? Marica é quem maltrata a uma mulher.” E esse é o nome oficial da campanha: “Maricón es el que maltrata a uma mujer, digámoslo al que lo merece”, o que poderia ser traduzindo como “maricas é quem maltrata a uma mulher, vamos dizer a quem o mereça”. A palavra “maricón”, além do sentido homofóbico, também pode ser entendida como “sacana”. Apesar da forma controversa de se abordar tal tema, um governo de direita levantou a bandeira de denúncia dos números alarmantes e violência doméstica e de gênero no Chile gerando um importante debate social.
Posteriormente, em 2012, devido ao brutal assassinato de um jovem chamado Daniel Zamudio, por motivação homofóbica, foi criada uma “lei antidiscriminação” que leva o nome de “Ley Zamudio”,2 em homenagem ao rapaz assassinado. O crime, protagonizado por jovens pertencentes a um grupo neonazista, comoveu o país por sua brutalidade. Ao gerar perplexidade e reações da cidadania, o governo reagiu rapidamente. Por meio de um decreto presidencial, o então presidente Sebastián Piñera promulgou a “Ley Zamudio” três meses após o assassinato. Em seu artigo 1°, a lei antidiscriminação tem como propósito “instaurar um mecanismo judicial que permita reestabelecer eficazmente o império do direito toda vez que se cometa um ato de discriminação arbitrária”. Ressalta também, em seus artigos, “o direito fundamental de igualdade perante a lei, resguardando o exercício legítimo dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Política da República do Chile”. Constituição que, todavia, é a forjada pelo governo militar em 1980.
Como podemos ver, não devemos determinar que este ou aquele assunto seja exclusivo de uma vertente ou outra. O que devemos compreender de fato é: em que profundidade tais temas serão abordados e se efetivamente procuram educar a cidadania para saná-los, ou, se pretende somente atender a apelos imediatistas e cumprir metas de governo para responder a exigências de organismos internacionais, sem abrangê-los de forma ampla e eficaz.
Por fim, o que de fato aprendemos com toda essa repercussão das questões do Enem 2015 e seu tema exigido para a redação é que nem para reafirmar a “família tradicional” – da qual se julga autêntica defensora – a direita brasileira consegue articular uma defesa da integridade física da mulher. Poderia fazê-lo, inclusive, usando um tom moralista. Mas nem assim. Nossa direita é tão absurdamente caricata, fascista e misógina que não faz a menor questão em se camuflar – pelo contrário: revela-se, e com orgulho.
1 SERNAM – uma espécie de “Ministério da Mulher”: http://portal.sernam.cl/?m=sp&i=405
2 Lei No. 20.609, Antidiscriminación ou Lei Zamudio: http://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=1042092