Iniciamos aqui uma série de quatro artigos que tratam do tema do trabalho produtivo e improdutivo em Marx. No nosso entender, essa questão é da mais alta importância para todos aqueles que lutam por uma transformação profunda na sociedade e apostam no proletariado como agente fundamental dessa transformação. Muito embora, é claro, o exame do papel que cada setor do proletariado ocupa na totalidade das relações sociais capitalistas, que aqui propomos em seus traços mais gerais, longe está de esgotar a questão, que envolve também elementos históricos e conjunturais de diversos tipos. Nossa análise, contudo, abstrai desse problema igualmente fundamental, limitando-se a analisar o papel dos diversos setores que compõem o proletariado no interior da sociedade capitalista considerada enquanto totalidade, ou seja, pretendemos esclarecer alguns aspectos fundamentais da problemática das classes sociais na critica da economia política de Marx, com ênfase na questão do trabalho produtivo e improdutivo.
Trata-se de um dos temas mais polêmicos da obra de Marx, e isso tem sua razão de ser. Não existe um tratamento “sistemático” desse tema em lugar algum no conjunto dos escritos de Marx, que aparece de maneira mais desenvolvida e ocupando um espaço significativo no primeiro volume das Teorias de Mais-Valia e no chamado Capitulo Inédito de O Capital. Em ambos os casos, a questão do trabalho produtivo e improdutivo aparece sempre a partir do diálogo com outros economistas e, como não poderia deixar de ser, a argumentação se baseia na contraposição de Marx frente às posições deles. Nos Grundrisse, o tema é tratado aqui e ali, de maneira esparsa e sempre remetendo a algum aspecto muito particular do problema. Sempre é bom lembrar que todos esses textos são anotações pessoais não destinadas à publicação. Esse quadro justifica, em grande medida, a ausência de clareza em alguns aspectos no tratamento dessa questão por Marx. Não é casual, portanto, que esse tema confundiu não poucos estudiosos, inclusive alguns de grande envergadura, como, por exemplo, o economista russo Isaak Rubin.
Já nos três livros de O Capital, em que o centro não é a polêmica com outros autores, mas a exposição crítica da sociedade burguesa, não existe um só capítulo ou mesmo um item separado destinado à esse tema, que aparece apenas no que podemos chamar de breves digressões de Marx referentes ao trabalho produtivo e improdutivo. Pensamos que o modo ideal de esclarecer esse problema é percorrermos os três volumes de O Capital explicitando o papel dos distintos estratos dos trabalhadores assalariados na exata medida que as próprias categorias do modo de produção capitalista são determinadas. Evidentemente, neste artigo e nos que se seguirão, longe estamos de querer percorrer esse caminho. Propomos-nos, então, a examinar algumas noções e categorias que, pensamos, estão no cerne de toda confusão em torno desse tema. Neste artigo, particularmente, iremos examinar o significado da categoria de mercadoria, cuja compreensão adequada é pré-condição para alçarmos o cerne do problema. No segundo artigo, abordaremos a categoria de serviços, no terceiro a noção de trabalho produtivo e improdutivo propriamente dita e, por fim, no último, a noção de capital produtivo.
Existem mercadorias “imateriais”?
Marx inicia O Capital afirmando que a “riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma imensa coleção de mercadorias”. Ora, sendo a mercadoria a forma elementar da riqueza, a exposição principia por ela, em uma famosa passagem que diz:
A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera nada na coisa. Aqui também não se trata de como a coisa satisfaz a necessidade humana, se imediatamente, como meio de subsistência, isto é, objeto de consumo, ou se indiretamente, como meio de produção. (MARX, 1996, p. 154)
É um grande enigma que muitos autores tenham visto neste parágrafo inicial de O Capital a justificativa de que as mercadorias possam ser materiais e também “imateriais”, dado que as necessidades que ela satisfaz podem se originar do “estômago ou da fantasia” ou, segundo algumas traduções, “da imaginação” ou “do espirito”. Não é tanto uma questão de interpretação, mas de gramática. Não é as mercadorias que podem ser “fantasia”, “imaginação” ou “espirito”, mas as necessidades que elas satisfazem. Assim, uma televisão, um livro, um DVD, um videogame, etc., satisfazem o espírito, e não o estômago. A passagem afirma o contrário, que a mercadoria, forma elementar da riqueza, é uma coisa, um objeto externo. Enquanto objeto externo ela não pode ser um conjunto de valores e conhecimentos internos aos indivíduos, mas se encontra fora deles, como algo que transcende os indivíduos e suas respectivas capacidades, apenas se ligando a estes exteriormente. Mas, de fato, esse é apenas o modo como as mercadorias aparecem. Fossem elas determinadas unicamente pela sua materialidade e pela satisfação das necessidades humanas, seriam mercadorias, inclusive, aqueles objetos de algum modo úteis que encontramos prontos para o consumo na natureza. Para ser mercadoria não é suficiente, também, o fato de ser um produto do trabalho humano. Fosse esse o caso, ela não seria a forma elementar da riqueza capitalista, mas de toda e qualquer forma de sociedade. Antes disso, para “tornar-se mercadoria, é preciso que o produto seja transferido a quem vai servir como valor de uso por meio da troca” (MARX, 1996, p. 154). Esse é o conceito mais preciso e determinado de mercadoria, presente em um adendo de Engels ao primeiro livro de O Capital.
Não basta ser uma coisa material, antes disso, a mercadoria é unidade de valor de uso e valor e, enquanto tal, um valor de uso social, ou seja, por meio da troca no mercado, ela é um valor de uso para outro que não aquele que a produziu. A mercadoria é, assim, especificada frente aos produtos do trabalho no geral como uma forma social particular destes. Em suma, Marx supera a forma unilateral e abstrata em que a mercadoria foi inicialmente considerada. Não porque seu aspecto de objeto externo foi suprimido, mas porque além de um produto do trabalho e, enquanto tal, valor de uso, ela é também valor, isso é, uma relação social, não uma simples coisa, mas uma relação social que se efetiva em e por meio de coisas.
Por isso Marx diz ser a mercadoria uma coisa “sensivel-suprasensível”, ou como prefere a tradução da Abril Cultural, uma coisa “física-metafísica”. Afinal, como “valor de uso, não há nada misterioso nela [a mercadoria], quer eu a observe sob o ponto de vista de que satisfaz necessidades humanas pelas suas propriedades, ou que ela somente recebe essas propriedades como produto do trabalho humano” (MARX, 1996, p. 197). Já quanto ao seu valor, uma mercadoria é expressão de uma relação social que lhe atribuí um valor a partir da equalização do conjunto das mercadorias no mercado. Uma mercadoria mesa, por exemplo, não se constitui unicamente por suas propriedades materiais e úteis, “ela se transforma numa coisa fisicamente metafísica” (MARX, 1996, p. 197). Isso é assim porque sua determinação de valor não é palpável nem acessível aos sentidos, não por ser algo imaterial como um espírito que subjaz em seu interior, mas por conter uma propriedade social, posta por uma dada forma de relação entre as pessoas, que parece ser algo que a mercadoria tem por natureza. Podemos virar e revirar a mercadoria-mesa como quiser e não encontraremos seu valor. Para tal, a análise deve se dirigir ao “caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias” (MARX, 1996, p. 197). Daí seu aspecto enigmático, obscuro, nas palavras de Marx, quase teológico e metafísico.
Numerosas passagens poderiam ser mencionadas nesse sentido, isto é, apesar de não se definir pelo mero atributo de material, a mercadoria pressupõe essas coisas materiais e sensíveis como suporte de suas propriedades sociais. Uma destas passagens, particularmente interessante tendo em vista nossos propósitos, se encontra nas Teorias de Mais-Valia, onde se diz: “Mercadoria - no que a distingue da própria força de trabalho – é coisa que se contrapõe materialmente ao ser humano, de certa utilidade, e onde se fixa, materializa-se quantidade determinada de trabalho” (MARX, 1974, p. 143). Como se vê, mercadoria é uma “coisa que se contrapõe materialmente ao ser humano”. Exceto a força de trabalho. As mercadorias são, portanto, de dois tipos:
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Objetivas: Coisas, objetos externos sensíveis que servem de valor de uso para outros por meio da troca. Isto é, unidade de valor de uso e valor. Uma coisa social ou uma relação social que possui estas coisas materiais, os produtos do trabalho, como suporte.
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Subjetivas: A força de trabalho.
Com isso, nossa exposição marcha rumo ao outro tipo específico de mercadoria presente na sociedade capitalista: a força de trabalho.
Força de trabalho, um tipo particular de mercadoria
Como se sabe, o modo capitalista de produção pressupõe o desenvolvimento e a generalização de uma mercadoria em particular: a força de trabalho. Isso significa que o indivíduo que trabalha não está mais ligado diretamente a uma comunidade, como nas sociedades primitivas, nem ligado diretamente a um senhor e a uma terra, como é o caso da servidão, nem é ele próprio mercadoria, como na escravidão; e sim vende no mercado sua capacidade para um dado tipo de atividade ou trabalho. A força de trabalho é uma mercadoria porque satisfaz as duas determinações que constituem a natureza social desta última: possui um valor de uso, o trabalho, e, ao ser trocada no mercado, possui, também, um valor, medido pelo tempo socialmente necessário para reproduzir a força de trabalho enquanto tal. Em resumo, “a mercadoria se patenteia trabalho pretérito, objetivado e que, por isso, se não aparece na forma de uma coisa, só pode aparecer na forma da própria força de trabalho” (MARX, 1974, p. 151).
Embora a força de trabalho tenha como suportes materiais os indivíduos dela portadores, ela mesma é uma mera potência para realização de algo, mera capacidade para efetivar um tipo determinado de atividade. Sendo assim, porque naquela definição inicial Marx caracterizara a mercadoria como um “objeto externo”, uma coisa exterior aos indivíduos, se a força de trabalho é exatamente aquilo que os indivíduos possuem em si mesmos e, enquanto tal, não materializada em algo externo?
Acontece que, apesar de ser mercadoria, a força de trabalho não é uma forma elementar da riqueza e não constitui a imensa coleção de mercadorias que configura a riqueza do modo de produção capitalista. Embora seja valor e, enquanto tal, corresponda à soma global de valores da sociedade, ela não valoriza imediatamente o capital, nem corresponde a riqueza que este tem como base. Antes de tudo, a força de trabalho jamais é propriedade do capital, mas do trabalhador que a vende. O capitalista paga o valor da força de trabalho para receber, como em toda troca de mercadorias, seu valor de uso. É o valor de uso da força de trabalho, isto é, o trabalho, que produz riqueza e valor, inclusive o mais-valor que o capitalista se apropria de modo a acumular capital. É o consumo da força de trabalho que produz riqueza, tanto para o capitalista quanto a parte que aflui ao trabalhador na forma de salário. Daí o caráter absolutamente especifico da mercadoria força de trabalho, que pode até ser uma riqueza para o indivíduo dela possuidor, mas não para o modo de produção capitalista.
Na verdade, nada de misterioso existe nessas afirmações. Uma empresa que possui milhares de trabalhadores empregados e parados não acumula capital e nem produz riqueza. Assim como um país que possui uma numerosa massa de trabalhadores qualificados sem estarem empregados não aumenta, pela mera existência da força de trabalho, sua riqueza e seu capital.
Por fim, mencionamos algumas passagens em que Marx, com a ironia que lhe é habitual, desdenha daqueles que se contrapõem à noção de que a riqueza é produção de mercadorias, apelando para a noção de utilidade de uma dada atividade, particularmente a utilidade daqueles trabalhos que não produzem produtos materiais:
Segundo Storch, o médico produz saúde (mas também doença); professores e escritores, as luzes (mas também o obscurantismo); poetas, pintores etc., bom gosto (mas também mau gosto); os moralistas etc., os costumes; os padres, o culto; o trabalho dos soberanos, a segurança etc. (pp. 347 a 350). Por igual poder-se-ia dizer que a doença produz os médicos; a ignorância, professores e escritores; o mau gosto, poetas e pintores; a devassidão, moralistas; a superstição, padres; e a insegurança geral, soberanos. (MARX,1980, p. 269)
Nos cadernos preparatórios para O Capital de 1861-1863 vemos uma passagem análoga:
Um filósofo produz ideias, um poeta, poemas, um pastor, sermões, um professor, compêndios etc. Um criminoso produz crimes. Considerando-se mais de perto a ligação deste último ramo de produção com os limites da sociedade, então se abandonam muitos preconceitos. O criminoso não produz apenas crimes, mas também direito criminal e, com isso, também o professor que profere cursos sobre direito criminal e, além disso, o inevitável compêndio com o qual esse mesmo professor lança suas conferências como “mercadoria” no mercado geral. Com isso, ocorre aumento da riqueza nacional, prescindindo todo prazer privado que o manuscrito do compêndio proporcionou ao seu próprio autor [...]. (MARX, 2010, p. 355)
E Marx prossegue com sua ironia por duas páginas mais, colocando o criminoso como um dos trabalhadores mais produtivos da sociedade. Essa é a maneira como o autor de O Capital trata os adeptos do “trabalho imaterial”. Observem que, apesar do tom jocoso, todo conjunto de consequências “produzidas” pela ação do criminoso, apenas a produção do compêndio de direito criminal será tratado como aumentando a riqueza nacional. Observe ainda que o termo mercadoria aplicado às aulas que o professor de direito criminal oferece aparece entre aspas. Afinal, a força de trabalho de um professor de qualquer matéria, engenharia ou teologia, é uma mercadoria, mas sua atividade não produz mercadoria alguma, não importa a utilidade que possa ter para a sociedade.
Somente o trabalho produtor de mercadorias é produtivo?
O subtítulo desta última sessão encerra uma pergunta que abre o tema a ser desenvolvido nos artigos posteriores. Apenas o trabalho produtor de mercadorias é produtor de riqueza? Depende. Se a noção de produtividade é considerada em relação à riqueza produzida para o conjunto da sociedade, a resposta é afirmativa. Apenas o trabalho produtor de mercadorias, com seus respectivos suportes materiais, é produtivo. No entanto, se a acepção de produtividade é considerada do ponto de vista da relação entre o proprietário da força de trabalho e o proprietário dos meios de produção, trabalhador e capitalista, essa acepção de trabalho produtivo é ainda muito abstrata e absolutamente insuficiente.
Não sem razão, em Teorias de Mais-Valia, Marx discute uma das duas definições de Adam Smith para trabalho produtivo, que diz exatamente que o “trabalho produtivo é o que produz mercadoria, e o improdutivo, o que não produz ‘mercadoria alguma’” (MARX, 1974, p. 150). Marx não se desfaz dessa definição de Smith, mas assinala seu caráter abstrato e unilateral, afinal, a “mercadoria é a mais elementar forma de riqueza da burguesia”, por isso, a definição de trabalho produtivo assim considerada, “corresponde também a um ponto de vista muito mais elementar que a definição do trabalho produtivo como que produz capital” (MARX, 1974, p. 150). Isso é assim porque essa definição de trabalho produtivo, embora capaz de caracterizar a produtividade do trabalho em relação à riqueza da sociedade como um todo, é incapaz de diferenciar tipos diversos de trabalho essencialmente diferentes, como um professor autônomo e aquele que vende sua força de trabalho a uma universidade privada ou o camponês que vende sua produção como mercadoria e as mercadorias de uma grande indústria.
Mas do que foi até aqui exposto, é suficiente para compreendermos que os ditos serviços, atividades cujo trabalho não é materializado em coisas, não produzem mercadoria alguma. Mesmo se seu executor for um trabalhador assalariado. E, por esse motivo, não são produtivos do ponto de vista da sociedade tomada em seu conjunto, não aumentam o capital global. No entanto, qual é a origem do valor que esses trabalhadores recebem pelos seus serviços? Qual a origem da acumulação de capital dos capitalistas que empregam trabalhadores não produtores de mercadorias? Para responder estas perguntas, o que foi até aqui desenvolvido, mostra-se como absolutamente insuficiente. Reservamos, então, a resposta a estas perguntas, para os próximos capítulos.
Bibliografia:
MARX, KARL. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1996. Livro primeiro, Tomo 1.
MARX, KARL. Para a crítica da economia política. Manuscrito de 1861-1863 (cadernos. I a V). Terceiro Capítulo – O capital em geral. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
MARX, KARL. Teorias da mais-valia. História crítica do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. v. 1.
MARX, KARL. Teorias da mais-valia. História crítica do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. v. 2.