Lamento, não sou escritora de autoajuda. Minhas palavras não são de celebração, nem de contemplação, mas de coração e em essência; o “ser” ofende a muitos que vivem de aparências. Dirão que isto não vem ao caso, mas sim, por ser migrante e me atrever a analisar (com os elementos ao meu alcance) a situação do meu país desde fora, sou assinalada e discriminada. Por estar fora não devo me envolver? Por estar fora devo esquecer, deixar para lá? Não tenho o direito a questionar ou de indignar-me? Devo calar ao invés de dizer as coisas claras, que muitos confundem com ódio, complexo de inferioridade e ressentimento? Estar fora, então, me torna menos humana?
Pois desde o estrangeiro escrevo estas linhas como faço habitualmente. As manifestações cidadãs das últimas semanas colocaram a Guatemala inevitavelmente às vistas do mundo, eu que estou fora posso afirmar com contundência, e isso é bom porque foi pela corrupção que a Guatemala saiu do esquecimento dos meios de comunicação internacionais, que só utilizam os povos indígenas e seu folclore como referência. Disso sabemos todos.
Não estou em desacordo com as manifestações, porque é bom que esta classe urbana, à qual tem sido mais cômodo viver dentro de sua própria bolha de tranquilidade, saia da letargia e se manifeste, ainda que se deva deixar bem claro que o fez por sentir os desdobramentos no próprio bolso, não na alma.
Por essa razão estou em desacordo com a ideia de que cidadãos urbanos, apáticos em relação à realidade do país, se coloquem como “povo”, porque passaram décadas discriminando o povo real, tomando-o por raso. E não é que não tenham o direito de serem “povo”, mas as coisas se conquistam com suor, e essa classe média urbana terá o direito de chamar-se de “povo” quando aceite que, sim, houve genocídio no país. E quando busque que os culpados paguem por isso. Por exemplo, o hoje ex-presidente da República. Que percam o medo da palavra “Revolução”, que repete com amor o “povo raso”.
Isso porque o genocídio foi contra o povo real, marginalizado, indígena e camponês. Esse mesmo povo que na semana passada foi novamente marginalizado. Muitos acusaram de imbecis quando viram os camponeses fazendo bloqueios de estradas em todo o país, camponeses que exigiam o mesmo pelo qual lutam as classes urbanas na capital guatemalteca e que são mais consequentes, como sempre foram.
Manifestações camponesas que não saem nos meios de comunicação internacionais, por isso mesmo, por serem consequentes. Os urbanos, esses milhares que vemos nas manifestações aos sábados, deixaram os irmãos camponeses sozinhos. Aos sobreviventes do genocídio, aos desafortunados da história que eles mesmos negam. Estou em desacordo com essa atuação, porque se são “povo”, pois, que se unam e ponham o peito à frente, como fazem os camponeses. Que não fiquem apenas com batucadas, cartazes coloridos e ativismo nas redes sociais carente de ação.
O presidente da Guatemala não foi tirado pelo povo, já sei que pareço amargada com a minha opinião, mas quem o tirou foi a Cicig (Comissão Internacional contra a impunidade na Guatemala), com o respectivo aval do embaixador dos Estados Unidos.
Por quê? Porque já estava queimado, porque não lhes servia para nada, porque em seu lugar já havia outro fantoche lambe-botas que receberia as ordens pontuais. Falo do vice-presidente que tomou o lugar da encarcerada Roxana Baldetti, que esses dias amanheceu na prisão feminina Santa Teresa. Porque as eleições presidenciais já estão na esquina e o que necessitam é acalmar a festa cidadã que vem acontecendo na Guatemala.
Precisam que esse povo urbano (perguntem ao camponês organizado e saberão o que sente o povo ferido) se sinta protagonista, que celebre, se sinta digno, poderoso, honesto, que sinta que cumpriu com seu dever moral e vote feliz. Que esqueça que com seu voto escolheu algo igual ou pior que a escória corrupta de Otto Pérez Molina. E é triste, mas esse povo que chamou atenção do mundo foi votar e escolher um presidente sem qualquer capacidade moral, política e humana para tomar as rédeas do país. Nenhum candidato sequer possuía tal condição. É que hoje não existe a opção de votar pelo menos pior...
É possível ser ainda mais inconsequente nessa vida? Manifestar-se contra a corrupção, mas ir à votação para eleger o mesmo clã de corruptos? Assim, nenhum esforço serviu para nada aos que votaram no último dia 6 de setembro. Dizem que fizeram história, têm a pachorra de comparar as manifestações de hoje em dia com as de 1944, mas não se comparam nem os chinelos. É que esse é o jeito de fazer os fanfarrões urbanos adormecerem novamente.
Que o mundo saiba que Otto Pérez Molina não renunciou por ser um genocida; o fizeram renunciar por ser ladrão e corrupto. Outros ladrões corruptos que têm a faca e o queijo nas mãos põem e tiram presidentes no país: falo do setor empresarial que já está pronto para pôs no poder outro fantoche de presidente com seu “voto popular”. Que o mundo saiba que essa massa amorfa que se crê digna ainda segue negando o genocídio. Que esses camponeses maltratados seguem lutando pelos seus Direitos Humanos sozinhos, sem acompanhamento, além de si próprios. Ao final, o povo depende de si mesmo.
O que vem depois da renúncia de Pérez Molina? Assim como alardeiam os urbanos serem eles os responsáveis pela renúncia do genocida, também teriam poder para cancelar as eleições, e de fato tinham, se dessem um passo adiante, caso realmente se importassem em mudar a história do país. Não por acaso quem sustentava os cartazes das manifestações em que se lia “Assembleia Nacional Constituinte” eram os camponeses, não os urbanos.
Eu acreditaria na dignidade deste movimento urbano da classe média e das universidades (incluída a universidade dos meus amores, a Universidade de São Carlos da Guatemala) caso se negasse a votar, caso se atrevesse a abrir a ferida suturada da nossa memória histórica e levasse Otto Pérez Molina a um juiz, não por corrupção, mas por genocídio – e também todos os violadores de Direitos Humanos que pululam no sistema. E sabemos porque passeiam ufanistas e saltitantes debaixo dos nossos narizes. Eu acreditarei nesse movimento urbano no dia que demonstre dignidade à educação superior dando corpo à luta camponesa, operária e popular.
No momento, ainda que celebre a cidadania, segue sendo um povo racista, discriminador, oportunista e um tanto inconsequente, já que votou pela mesma escória a qual rechaçou anteriormente. Desculpem-me, flores, se eu machuquei as pétalas, mas o povo, o povo real, merece respeito e, antes de tudo, justiça.
Seria muito cômodo, para ganhar adeptos, sair dizendo que apoio o movimento urbano, que é a dignidade em marcha, o orgulho da pátria, que nenhuma geração teve a valentia dos de hoje, que esses “índios de pés sujos” que saem a fazer bloqueios só sujam a luta dos educados e bem perfumados da classe média urbana. Diria que não houve genocídio no país. Que não há de se remexer nas coisas. Que devemos ir votar. Mas eu teria pavor da palavra “Revolução”.
Por isso, sou sincera e sinto muito pelos que vão com a manada. Que se ainda lhes resta um pouco de dignidade e que tenham feito história por sair a manifestar-se aos finais de semana, que façam um esforço e imaginem como se sentem os camponeses que colocam a própria pele e o próprio sangue à mostra, durante séculos, sem alarde. Pois por eles, pelos marginalizados, busquemos a mudança, não podemos terminar votando às cegas.
Nota: Falta dizer que não generalizo porque neste movimento de classe média há gente muito comprometida e consciente, que não alardeia, mas encorpa.
Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.