Mas enchíamos a sala do sétimo andar da Agência Brasileira de Imprensa, com uma mesa comandada por Heloísa Helena, e da qual eu fazia parte. Nascia ali a Esquerda Socialista e Democrática, ponto de partida para o que somos hoje.
Estávamos em outubro ou novembro de 2003. E como movimento de resistência à guinada ideológica marcada pelos primeiros passos do governo Lula, estávamos ali um conjunto de militantes que se propunha a manter viva a ideia de transformação revolucionária do País. Sem concessões ao pragmatismo e aos recuos programáticos que Lula já implementava em seus primeiros passos no Planalto, ainda causando perplexidade e revolta em boa parte do PT, do qual éramos majoritariamente oriundos.
Perplexidade e revolta que terminaram se estiolando diante do peso do braço “empregarial” do Poder Executivo, pelo menos para os que se locupletaram. E com a cobertura de uma cúpula acovardada diante das pressões do “grande líder” quanto “governabilidade possível” que impunha, com uma CUT e uma UNE crescentemente cooptadas, fidelidade incondicional a uma militância ideologicamente desarmada. Ou aterrorizada, diante do que considerava falta de alternativas com perspectiva de uma disputa real de poder.
O Partido Socialismo e Liberdade nasce desse contexto. Num encontro em Brasília que dá a arrancada para a coleta de quase meio milhão de assinaturas, em nove Estados da Federação, com as quais concretizaria sua legalidade institucional.
Foi uma campanha extraordinária, nunca repetida pelos partidecos que surgiram após. Precedentes, possivelmente, só na campanha que reorganizou o PCB após derrota do nazifascimo na II Guerra Mundial,
Foi uma campanha, enfim, que fervilhava nas ruas e praças das grandes capitais, com oradores fazendo discursos permanentes para as filas que se formavam diante de banquinhas improvisadas, por aqueles que queriam ajudar a fundar o “partido da Heloísa”.
Porque, sem nenhum demérito a Luciana Genro, Babá e João Fontes, que com ela foram expulsos do PT, foi sua voz a que mais se destacou, na denúncia do significado degradante da indicação de Henrique Meirelles para o Banco Central – o “companheiro” Henrique Meirelles, como o anunciou Lula em coletiva aos telejornais.
E pelo espaço de tribuna que ocupava com seu mandato, foi ela quem se levantou em protesto, antes de todos, contra o apoio de Lula à eleição de José Sarney à presidência do Senado. Como se previsse, na decisão insólita, a tragédia da política de alianças clientelista, fisiológica e sem coerência programática que Lula poria em prática em seus dois mandatos.
Era ela, portanto, a abre-alas de uma nova agremiação que neste 2015 completa 10 anos de legalização.
Dez anos, do doce e do amargo
Dez anos em que muita coisa de bom, motivo de orgulho, ocorreu, mas também de duros contratempos.
Orgulho quando vemos o prestígio crescente da legenda, por conta, muito, do papel extremamente importante que nossas bancadas parlamentares desempenharam desde sua entrada no Congresso e nas Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores. Mas prestígio crescente, também, pela presença constante de nossa militância em todas as mobilizações da sociedade civil organizada, de esquerda, promoveu ao longo de todos esses anos.
Anos que não foram fáceis por razões múltiplas, e bem distintas das que propiciaram o nascimento e o crescimento consolidado do PT.
Ao contrário do início da década de 80, não vivíamos a ascensão de um movimento sindical espontâneo, nascido das greves do ABC, com uma Igreja hegemonizada pela Teoria da Libertação. Não tínhamos, no plano internacional, a perspectiva ascendente de uma reforma por dentro do dito socialismo real, com glasnost e perestroika tentando mostrar ao mundo ser possível conciliar igualdade e liberdade individual. Nada parecido também com a ebulição intensa da campanha das Diretas, e até da eleição de Tancredo no Colégio Eleitoral, antecipando um disputado processo Constituinte.
Pelo contrário. Nascíamos de um retrocesso em nosso próprio território; de uma ruptura com o que representara a expectativa de esquerda socialista, combativa, durante duas décadas, do saudoso PT. E cujo transformismo programático só recentemente consegue alguma contestação significativa, tanto entre os próprios militantes, quanto em sua base social-eleitoral. Um transformismo, cujas sequelas são ainda difíceis de mensurar. Mas que, pela despolitização da política que produziu, trouxe como resultado mais visível uma imensa sensação de ceticismo e desesperança de novas gerações em relação à necessidade de participação cidadã na vida política. Abriu avenidas para o sentimento de que “no poder, são todos a mesma coisa”. Uma coisa pestilenta, mal cheirosa.
Um transformismo ideológico, enfim, com forte guinada para direita, dissimulado por manobras que só um sindicalista com concepção favorável ao de papel do sindicato como amortecedor de tensões entre o mundo do trabalho e o patronado poderia empreender com êxito. Foram os tempos do “pacto conservador de alta intensidade” compensado pelo “reformismo fraco” das políticas “bursáteis”, assistencialistas, como bem os definiu o insuspeito porta-voz do primeiro mandato Lula, André Singer, em seu “Os sentidos do Lulismo”.
Na conjuntura resultante desse processo, tornaram-se portanto imensos os obstáculos impeditivos do crescimento e consolidação do PSOL.
O que, no entanto, não reduz nossas próprias responsabilidades, consequentes de concepções e métodos que nos obrigam a reflexão profunda, num momento em que, mesmo com as limitações materiais, sentimos uma aproximação de simpatizantes por conta de termos conseguido nos manter fora do pântano desmoralizante das demais legendas da “base” de alianças do neoPT. Mas que não nos absolve de rever acidentes sérios ao longo desta primeira infância existencial.
Nossos Problemas
Comecemos pelas questões orgânicas. Considero que uma das cláusulas pétreas da formação do PSOL – a legalidade das tendências – merece regulamentação nunca efetivada. Garantidas pelo Estatuto, as tendências sempre priorizaram sua organização interna à necessidade de uma unidade permanente da ação partidária.
Não se trata, de forma alguma, de tentar contrapor algo como “centralismo democrático”. Mas não se pode agir com tendências podendo operar, externa e internacionalmente, como se fossem partidos autônomos. Creio ser algo fundamental carente de urgente reflexão de um próximo Congresso, onde opino que a tendência temática, extrapolando as tendências orgânicas, a elas se sobreponha.
Também não podemos deixar nos escaninhos do esquecimento os episódios com forte impacto desestabilizador em nossas lutas. E nisso destaco a renúncia traumática de Heloísa Helena, até então nossa referência fundamental para uma campanha presidencial competitiva em 2010.
Em 2009, por conta da excelente performance em 2006, Heloísa aparecia com destaque nas pesquisas de todos os institutos. Variava de 12 a 14% e tinha condições concretas de chegar ao segundo turno, no ano seguinte, excluindo desse embate a direita tradicional, que José Serra assumia.
Lamentavelmente, as divergências internas – principalmente na discussão sobre o aborto – deram a ela a arma para a operação que já pretendia, de abandonar a candidatura à Presidência, priorizando uma disputa inviável, de resultados eleitorais e significado político, para o Senado, por Alagoas. Decisão brutalmente equivocada, contra a qual me coloquei de forma quase solitária no campo das tendências e de alguns independentes que se alinhava internamente com Heloísa.
Não me interessavam as perspectivas inicialmente favoráveis em alagoas. Pois tinha certeza de sua derrota diante de um inequívoco empenho de Lula, em alta na no nordeste, para derrota-la. Apoiaria Renan e qualquer outro poste que o acompanhasse na dobrada. Mais ainda; Heloísa não aceitava minha argumentação de que, com o apoio consensual, não só do PSOL, como também do PSTU e do PCB, mesmo que não chegasse a uma vitória eleitoral, sairia da campanha presidencial com um ainda maior patrimônio político pessoal. O que permitiria prever êxitos concretos numa das eleições seguintes.
Heloísa não cedeu. Preferiu o suicídio político, pelo menos em âmbito nacional, e se retirou de forma trágica da disputa. Trágica porque estimulou a inexpressiva candidatura de Marina Silva, então beirando os 3% nas pesquisas. Não a impulsionou apenas pela ausência na campanha de Plínio no âmbito nacional, mas por nunca desmentir de forma clara as insinuações de sua simpatia pessoal por Marina.
Suicídio político, repito, porque liquidou uma candidatura presidencial que já na sua primeira experiência não hesitara em defender reformas estruturais radicais, apontando o socialismo como saída para o desenvolvimento sadio do gênero humano. E colocando no seu espaço político alguém que, dissimulada em imagem de esquerda por conta do passado petista, já era um braço auxiliar dos tucanos, como veio a ser revelar de forma explícita na campanha por Aécio no segundo turno de 2014.
Não diminuamos, por conta disso, as campanhas de Plínio e de Luciana Genro. Campanhas radicais, com excelente participação nos debates decisivos da reta final na TV, e que muito contribuíram para o que há de positivo e de espeço com credibilidade que o PSOL começa a ocupar. Perdemos no eleitoral em relação à expressão de Heloísa, mas não perdemos na afirmação e crescimento político e ideológico.
Nossas alternativas
Somos, como bem lembrou o saudoso Leandro Konder, também fundador do PSOL, em seu Em torno de Marx (Boitempo), ao citar Lukács, “des charbons ardents d’un grand feu éteint” (carvões ardentes de um grande fogo apagado).
Pretendemo-nos um partido revolucionário – pelo caminho das reformas estruturais na disputa da hegemonia através da via institucional - como sempre pretendemos, Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e este escriba -, ou pela ruptura através da radicalização das mobilizações de um movimento social politizado, como pretendem outros. Mas, espero ambos os segmentos conscientes de que fazemos o combate navegando num mar adverso. Um mar, onde excesso de algas e poluições ideológicas, reforçadas por um pântano paralisante de despolitização, nos apresenta imensas dificuldades de avançar.
No entanto, e a despeito de tudo isso, somos obrigados a não parar. E isso temos conseguido de alguma forma, graças à capacidade de, dentro de nossos limites, ter sabido compatibilizar a luta institucional com os movimentos sociais.
Mas não é suficiente para um salto qualitativo. Para esse salto, necessitamos de muito mais massa crítica; de apoio popular espraiado para além de nossas fronteiras ideológicas. E é nesse sentido que vejo a necessidade de o PSOL ser o aríete da formação de uma Frente de Esquerda.
Uma Frente com perspectiva de ação estratégica, de viés firmemente anticapitalista, nas lutas sociais e nas batalhas eleitorais. Uma Frente que se instale inicialmente num acordo básico e transparente com o PSTU e com o PCB, mas com vistas a se ampliar a setores sociais diversos, no campo da esquerda. Me refiro aos brizolistas autênticos, que não se conformam com a transformação da legenda do PDT em moeda de troa clientelista. Me refiro aos que, fragmentados, soltos organicamente, ainda estão aprisionados na lógica imobilista de conter sua participação ao voto no “menos pior”.
Me refiro, principalmente, à base social e eleitoral do neoPT; àqueles tomados por um desconforto crescente em função da guinada ideológica que Lula, na sua postura cesarista, impôs a um saudoso PT classista, a partir de sua Carta aos Brasileiros.
Difícil? Sem dúvida. Irrealizável? Nem pensar. Dentro do preceito gramsciano que nos obriga ao equilíbrio entre o pessimismo da razão e o otimismo da vontade, vale lembrar o que sempre nos alerta o camarada Leo Lince: “Nada é impossível para quem já se habituou a ralar no áspero”.
Luta que Segue!!!