A leitura atenta da história brasileira permite ver que suas grandes inflexões estruturais foram provocadas por decisões tomadas em momentos de grande crise e desafio nacional e internacional. Como aconteceu no caso da “independência” brasileira, por exemplo, que foi uma decisão “reativa” e pouco planejada, frente a um contexto de profunda transformação geopolítica e econômica do Velho Continente, que culmina com a Paz de Versalhes e a supremacia naval, financeira e industrial da Inglaterra, dentro e fora da Europa. E o mesmo também aconteceu no caso da “abolição da escravidão’ e da “proclamação da Republica”, duas decisões brasileiras inseparáveis da conjuntura internacional, que começa – na América do Sul - com a derrota politica do Brasil, na Guerra do Paraguai, onde perdeu a hegemonia do Prata, e começou a desintegração do estado imperial e de suas próprias forças armadas; e fora da América do Sul, onde entra em curso uma ampliação e reconfiguração do núcleo das grandes potências, com a ascensão econômica e política dos EUA, Alemanha, Japão e Rússia. Só que nesta conjuntura, ao contrário do que passou na independência, existiu um projeto e uma estratégia nacional que foi vitoriosa e que impôs ao país a Republica, junto com hegemonia do “cosmopolitismo agrário” das elites paulista e mineira. Da mesma maneira, já no século XX, a “Revolução de 30” foi também uma resposta ao desafio provocado pela “era da catástrofe”, das grandes guerras, revoluções e crise econômica. Mas ao mesmo tempo, a Revolução de 30 e a própria instauração do “Estado Novo” foram momentos decisivos de um projeto nacional que foi concebido na década de 20, por uma parte da elite civil e militar brasileira - que conseguiu manter sua hegemonia até a década de 80 – que se propôs reconstruir e fortalecer o estado brasileiro, e suas forças armadas, incentivando e promovendo ativamente a industrialização e o crescimento econômico nacional, como forma de alcançar e superar a Argentina, na luta pela hegemonia do Prata, e pela liderança da América do Sul.
Cinquenta anos depois, a “redemocratização” da década de 80, marcou uma nova inflexão histórica indissociável da mudança geopolítica e econômica mundial, que começou com a crise e redefinição da estratégia internacional dos EUA, que passou pela reafirmação do Dólar, pela desregulação das finanças internacionais, e pela escalada armamentista que levou à desintegração da URSS, ao fim da Guerra Fria, e à instauração da “uni-polaridade imperial” dos EUA, que durou até o 11 de setembro de 2001. Assim mesmo, depois de três décadas aproximadamente, o Brasil segue sem conseguir definir e consolidar uma estratégia nacional e internacional hegemônica. Pelo contrário, ainda hoje se pode dizer que este é o verdadeiro “núcleo duro” da disputa cada vez mais violenta, entre as duas vertentes políticas – o PT e o PSDB - de um mesmo projeto bifronte que nasceu nos anos 80/90. Sua base social era diferente, mas sua matriz teórico-ideológica originária foi mais ou menos a mesma: paulista e democrática, mas ao mesmo tempo, anti-estatista, anti-nacionalista, anti-populista, e em última instância, também, anti-desenvolvimentista. Este projeto bifronte, entretanto, se dividiu de forma cada vez mais nítida e antagônica, a partir dos anos 90, quando o PSDB liderou uma política governamental de apoio, ajuste e integração do Brasil à nova estratégia econômica internacional dos EUA, de desregulação e globalização monetário-financeira, e de apoio ao projeto da ALCA. Da mesma forma que na década seguinte, o PT liderou um governo de coalisão que foi adernando cada vez mais na direção de um projeto de estado e de “capitalismo organizado” e de “bem-estar social”, ao lado de uma política externa cada vez mais autônoma e voltada para as “potências emergentes”, mesmo que nunca tenha conseguido alterar as regras e instituições monetário-financeiras criadas pelos governos do PSDB. O que passou nesta última década e meia foi que as mudanças de rumo e os próprios desdobramentos inovadores da estratégia petista foram provocando deserções e criando vetos cada vez mais radicais, de forças nacionais e internacionais, de dentro e de fora da própria coalisão governamental. E como consequência previsível, a coalisão governamental petista foi perdendo a unidade e a força que seriam necessárias para tomar as decisões capazes de enfrentar a crise econômica atual sem abandonar a estratégia econômica que foi sendo construída, a partir do segundo governo Lula. Este panorama de fragmentação e polarização nacional interna, entretanto, se agrava ainda mais quando ele é colocado na perspectiva de um conflito internacional cada vez mais aberto e violento, entre os EUA e a Rússia, e de uma competição política e militar cada vez mais explícita, entre os EUA e a China, sendo Rússia e China os dois principais aliados do Brasil, no projeto BRICS.
Assim mesmo, o que mais assusta e preocupa neste momento é que o receituário tradicional do PSDB parece agora cada vez mais simplista e esclerosado; enquanto o PT parece cada vez mais apoplético e paralisado; e o governo, cada vez mais dividido e fragilizado. É óbvio que o Brasil sairá desta situação e seguirá em frente, como já o fez no passado, mas não está claro qual será a estratégia e o caminho vencedor.
No entanto, é preciso ter atenção, porque foi nestas situações de alta polarização e incerteza social que surgiram e galvanizaram o poder em outras sociedades ocidentais, forças sociais e políticas fundamentalistas, obscurantistas e retrógradas, que sempre contaram com o apoio oportunista de amplos setores da elite financeira e iluminista, nacional e internacional. Os mesmos setores que depois derramam “lágrimas de crocodilo” na porta dos campos de concentração onde se tentou purificar e corrigir o mundo através da exclusão ou da morte dos impuros e dos hereges.