O esforço das classes populares pela construção da legitimidade de suas lutas, a única via que abre o caminho para vencer nessas lutas e poder derrotar o capitalismo, tem, para sintetizar, duas dimensões. As duas são igualmente importantes.
A primeira é político-programática: a da disputa de projetos, ou a luta de ideias, para tentar ganhar a maioria do povo para a justiça de suas reivindicações. A outra é político-organizativa: a luta pela construção de sua expressão sindical ou política independente, as superestruturas “institucionais” que lhe são próprias, a sua liderança, o material humano que será porta-voz e organizador de seu combate.
Sem organização não é possível formação de lideranças. Mas construir organizações não é tarefa simples. O primeiro obstáculo na formação de lideranças proletárias é a repressão dos ativistas. A repressão foi, historicamente, uma barreira terrível para a organização independente dos trabalhadores. Um caminho para quebrar a coluna vertebral de um movimento é perseguir os seus dirigentes. Outro caminho é corrompê-los.
O controle dos trabalhadores sobre as suas organizações é uma tarefa árdua. É possível, mas não pode ser subestimada. Revelou-se um dos calcanhares de Aquiles mais duradouros da luta pelo socialismo. Compreender as razões desta fragilidade é central.
Já se disse que uma das premissas do marxismo é que o proletariado sendo “egoísta”, isto é, indo até ao fim na defesa dos seus interesses de classe, estaria defendendo a universalidade dos interesses da maioria do povo, de cuja sorte depende a vitória de uma saída anticapitalista para a crise. Também já sabemos que o proletariado é socialmente, culturalmente, e geracionalmente heterogêneo, portanto, também heterogêneo na política, e que a construção da unidade para lutar contra inimigos comuns, depende de um processo de aprendizagem que não é simples. Essa aprendizagem exige um fortalecimento de suas organizações.
Essas organizações sindicais, populares ou políticas devem ser sujeitos coletivos. A representação através de grandes lideranças individuais não tem eficácia na luta dos trabalhadores. A construção de grandes movimentos, sindicatos, e organizações é muito mais eficiente. Acontece que essas organizações podem ser úteis ou inúteis para a formação de lideranças populares.
Quando são aparelhos burocráticos são um obstáculo. Porque aparelhos burocráticos desenvolvem interesses privilegiados. Para os manterem, precisam manter o monopólio da representação. Essa exclusividade só é possível destruindo o espaço de liberdade indispensável para a formação de novas lideranças que surgem como uma vanguarda em cada luta. A luta contra os aparelhos é, também, uma luta para proteger a vanguarda que nasce das lutas.
Uma referência às relações da classe trabalhadora com a sua vanguarda é, portanto, importante. O que é uma vanguarda? São aquelas pessoas mais ativas ou mais determinadas, que nascem espontaneamente em cada luta e se colocam na primeira linha da defesa dos interesses da maioria. Cada classe ou fração de classe gera, nas lutas sociais, um setor mais avançado, mais disposto ao sacrifício, mais inteligente ou mais altruísta, que surge como liderança, conquistando uma autoridade moral pela sua capacidade de traduzir em ideias ou em ações as aspirações da massa. Será neste material humano que se selecionarão e se formarão as direções das classes populares.
A burguesia, aliás, como outras classes proprietárias da história, descobriu outros caminhos para resolver o problema da formação dos seus quadros dirigentes. Quando não os encontram pela tradição de comando ou pela seleção de talentos, em suas fileiras, vão buscá-los na “inteligência disponível”, e remunerá-los bem.
O proletariado e as classes populares não podem depender desse recurso. Embora a força de atração de uma classe explorada se manifeste, também, na capacidade de atrair para a sua causa os quadros mais sensíveis ou abnegados, que rompem, ideologicamente, com sua classe de origem. Os trabalhadores têm que formar as suas lideranças, arduamente, nas lutas. Em condições de normalidade da dominação política, ou seja, de defensiva, de resistência, os sujeitos sociais subalternos não geram uma vanguarda ativista. Quando muito surge uma vanguarda intelectualizada, muito diminuta, de suas fileiras. As relações da massa dos trabalhadores com sua vanguarda, e vice-versa, desta com a massa, no entanto, não são simples. Nesta complexa relação, reside um dos problemas da construção da subjetividade, da maior confiança dos sujeitos sociais em si mesmos, e da maior ou menor fé na vitória de suas lutas.
A vanguarda das lutas, as lideranças enraizadas nas fábricas, escolas, empresas, bairros ou faculdades, só se formam nos processos de mobilização e podem ou não avançar até à organização sindical, popular e política estável, se encontrar instrumentos de luta pré-existentes. Frequentemente, uma maioria desta vanguarda retrocede ao final da luta, e abandona o movimento. Em maior medida, em proporção ainda maior, se esta for derrotada.
A vanguarda é um fenômeno. Um fenômeno quer dizer que tem uma realidade transitória, efêmera, provisória, temporária. Tem um estatuto diferente, tanto das massas populares, quanto das organizações que buscam representá-las. É um fenômeno no sentido, também, de que é expressão de um aspecto subjetivo da realidade em movimento, e pode tanto se organizar em uma superestrutura da classe já existente, quanto pode voltar a se integrar na massa e abandonar a luta ativa ao final do combate.
Na medida em que o impulso da luta for maior e mais consistente, a vanguarda se sentirá estimulada a aprender as lições das lutas anteriores. Procurará, então, se educar, politicamente, e estabelecerá mais relações entre os fins e os meios, isto é, entre estratégia e tática, escolhendo a adesão a um movimento, partido ou sindicato, como via para a sua própria construção como liderança permanente.
Entretanto, nesse processo, a vanguarda vive um conflito, que pode se resolver, esquematicamente de três maneiras. O conflito, é a luta, em certo sentido, contra si mesma. Não é nem simples, nem fácil elevar-se acima das angústias e impressionismos das massas, que, como sabemos, vacilam e retrocedem durante a luta, para depois voltar a avançar, e depois voltar a retroceder. Não é incomum que a vanguarda se exaspere diante destas hesitações das massas, e desenvolva um sentimento de frustração e decepção em relação aos que lutam ao seu lado, mas não com o mesmo grau de compromisso.
Esse sentimento, potencialmente, conduz a três atitudes diferentes: uma parte da vanguarda fica tão desmoralizada com as limitações das massas em luta, que abandona o combate e desiste de tudo, guardando um ressentimento maior contra sua própria base social, do que contra as classes, socialmente, hostis e suas lideranças; outra parte da vanguarda, amargurada com o recuo e abandono das massas, se separa destas, e se inclina por ações isoladas e exemplares, para decidir sozinha a sorte do combate; uma terceira camada escolhe o caminho de avançar junto com a massa e recuar, também, junto com ela, para ajudá-la a aprender as lições da luta, e garantir melhores condições de organização nos combates que se colocarão no futuro.
Se esta vanguarda encontra, durante a luta, um ponto de apoio para a sua formação como liderança de massas, uma boa parte dela pode se organizar de forma mais estável, se educar, e se construir como direção, para, na luta seguinte, combater em melhores condições.
Mas senão, a maior parte das lideranças “naturais” se perderá, e será necessário um novo ciclo de lutas para que se possa gestar uma nova geração de ativistas. Este processo de seleção “selvagem” de lideranças, em que uma incrível quantidade de energias se desperdiça, tem sido uma das maiores dificuldades da construção de uma subjetividade do proletariado.
Outro aspecto da questão é a relação da vanguarda “emergente” com as organizações sindicais e políticas pré-existentes, que expressam a tradição anterior de organização das classes populares: sendo elas plurais, e estando em luta umas contra as outras, para conquistar maior influência, é previsível que a vanguarda, em um primeiro momento, se enerve contra todas elas, simplesmente por lhe ser difícil compreender as razões de suas rivalidades. Quais são as diferenças que as separam? Sejam elas moderadas ou radicais, para a vanguarda “emergente”, as divisões são razão de angústia e desesperação.
Há momentos, muito raros, portanto, muito valiosos, em que a nova vanguarda não se sente identificada ou representada pela direção majoritária pré-existente. Nessas circunstâncias, abre-se um período de disputa aberta pela direção da classe, de “rebelião de base”, de reorganização sindical e política.
Um período assim, só é possível depois de esgotada uma experiência histórica, e exige, muito além de argumentos, e com menos razão, a repetição de velhos argumentos repetidos, a força inapelável de grandes acontecimentos.
Nota:
[1] MORENO, Nahuel. El partido y la revolución. Página 227 www.elsoca.org/pdf/libreria/Morenazo.pdf