Poderíamos estar falando de Trayvon Scott, que em fevereiro apareceu morto numa cela de Baltimore sem qualquer explicação; ou de Tyrone West, inocente e sem cadastro, que foi espancado até à morte pela polícia desta cidade; ou de George King, de 19 anos, que foi preso à cama do hospital e eletrocutado com tasers pelos agentes; ou de Anthony Anderson, que sucumbiu a horas de espancamento na mesma esquadra, mas estamos falando de Freddie Gray, detido ilegalmente em 12 de abril e que no último dia 19 morreu com 80% da coluna vertebral partida e a laringe esmagada. Na verdade, estamos falando do mesmo assassino: o racismo estadunidense e o seu demiurgo histórico: o capitalismo.
Em abril de 1968, a Baltimore negra explodia numa revolta desencadeada pelo assassinato de Martin Luther King Jr. com acumulados dois séculos de racismo, segregação, escravatura e exploração. Nessa altura, metade da população afro-americana de Baltimore vivia na pobreza, o desemprego rondava os 30% e as forças policiais impunham o terror na vida dos trabalhadores negros. Quase meio século depois, os números são surpreendentemente semelhantes: o desemprego entre os afro-americanos da maior cidade de Maryland situa-se nos 42% (11% à escala nacional) e a mesma percentagem vive abaixo do limiar da pobreza. No entanto, há vários aspectos em que a situação está pior: o processo de transferência da indústria pesada permitiu a redução dos salários na cidade e estimulou a tendência para a segregação racial dos bairros num quebra-cabeças unido pelo terror das forças policiais.
Em Baltimore, a polícia é todos os anos alvo de quase 500 acusações de brutalidade e racismo. Porém, apesar de desde 2011 as forças policiais terem sido condenadas por mais de 100 crimes graves, quase nenhum agente foi preso: a administração da cidade canaliza anualmente mais de US$ 12 milhões para a compensação das vítimas de brutalidade policial, o dobro do orçamento para a educação. O resultado é o previsto: o erário público é drenado para resoluções judiciais que apenas fermentam a atmosfera de impunidade policial.
A linguagem dos oprimidos
As manifestações pacíficas contra o racismo que vinham decorrendo desde a morte de Gray atingiriam um momento de viragem no dia do funeral, no sábado (25). As dezenas de milhares de pessoas que se manifestaram por toda a cidade foram recebidas com provocações de grupos fascistas e agressões da polícia de choque. Os enfrentamentos que se seguiram têm sido sistematicamente utilizados pelos principais meios de comunicação social para demonizar os protestos e cobrir toda a cidade com um manto repressivo de 5 mil policiais armados com equipamentos de guerra. Esta segunda-feira (27), o Governador Larry Logan declarou o estado de emergência, impondo o recolher obrigatório e autorizando a intervenção das forças armadas para reprimir os protestos.
Por outro lado, para responder à espiral repressiva, estão a tecer-se alianças improváveis no seio da sofrida comunidade afro-americana. Juntando-se ao movimento Black Lives Matter (literalmente as Vidas dos Negros Importam), às organizações de classe no terreno e à Nação do Islã, foi agora a vez das principais gangs da cidade (os Crips, os Bloods e a Black Guerrilla Family) declararem uma trégua entre si, juntando forças para deter a violência da polícia.
E, no entanto, as atenções midiáticas dos EUA continuam presas nos confrontos e na destruição, com ameaças de que “a economia de Baltimore nunca mais irá se reerguer”. Numa rara amostra da profundidade do apartheid norte-americano, aqueles que nunca exigiram justiça para Gray são os mesmos que se levantam agora, num coro de incredulidade e protesto, contra a destruição de duas dezenas de vitrines, revelando que para o capitalismo a propriedade vale mais do que a vida.