Segundo a "reportagem" assinada por Samy Adghirni, correspondente da Folha em Caracas, "autoridades" venezuelanas planejam "redesenhar o mapa eleitoral às vésperas das eleições" para diminuir a representação de redutos da oposição ao presidente Nicolás Maduro. A afirmação é do jornal El Universal, opositor confesso do governo bolivariano.
Segundo a matéria, o projeto ainda precisaria ser "finalizado pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE)" e aprovado pela Assembleia Nacional, "amplamente dominada por aliados do presidente socialista, Nicolás Maduro". A mesma matéria destaca que "críticos" afirmam que o CNE não é independente em relação ao Executivo e que planejaria alterar a proporção de deputados em cada uma das circunscrições eleitorais com vistas a beneficiar os deputados bolivarianos. Como exemplos a "reportagem" de El Universal reproduzida por seu homônimo brasileiro cita os distritos de Chacao e Aragua. O primeiro, majoritariamente composto por eleitores "opositores", teria suas vagas na Assembleia Nacional diminuídas, enquanto o segundo, composto por apoiadores do governo Maduro, teria suas cadeiras ampliadas no parlamento nacional venezuelano. No entanto, o texto não cita que informações atestem a veracidade da afirmação em relação aos dois distritos.
Intrigado com a matéria, consultei alguns amigos que conhecem bem as leis venezuelanas. Descobri, em primeiro lugar, que não há nenhum projeto em discussão sobre as leis eleitorais na Venezuela! Existe, isso sim, o código eleitoral venezuelano. Esse código dá conta de que é necessário realizar ajustes na representatividade de cada distrito de tempos em tempos, com vistas a equilibrar o número de habitantes às vagas disponíveis na Assembleia Nacional. No entanto, não há qualquer "autoridade" discutindo ou "planejando" nada nesse sentido. Ou seja, as informações publicadas por El Universal e reproduzidas pela Folha não passam da mais pura especulação! Ademais, descobri que não é obrigação da Assembleia Nacional definir as circunscrições eleitorais. Essa é uma atribuição exclusiva do CNE, razão pela qual, pouco importa se a Assembleia Nacional é "amplamente dominada por aliados do presidente Maduro", porque não é ela que aprova temas dessa natureza!
A Constituição da Venezuela, em seu Título V, capítulo I, afirma que "em cada Estado e no Distrito Capital, se elegerão três deputados ou deputadas à Assembleia Nacional, mais um número de deputados e deputadas igual ao resultado de dividir o número de sua população entre uma base de população igual a um ponto um por cento (1,1%) da população total do país". Ou seja, a divisão de vagas no parlamento é determinada constitucionalmente, assim como no Brasil. O que a oposição venezuelana tem tentado é alterar os prazos de realização do censo, com vistas a retardar a atualização da divisão das vagas entre os distritos conforme manda a Constituição da República Bolivariana da Venezuela e assim influenciar o resultado eleitoral.
Aliás, o Brasil enfrentou recentemente esse debate. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) atualizou as vagas correspondentes a cada estado na composição das 513 cadeiras que formam a Câmara dos Deputados. Os parlamentares, rechaçando a prerrogativa do TSE de decidir sobre o tema, avocaram para si a decisão e impediram a atualização da relação entre vagas e habitantes, conforme manda a Constituição da República Federativa do Brasil. No entanto, não vi nenhuma reportagem afirmando que, por trás dessa medida, havia o interesse do Governo Federal (que então tinha maioria no Congresso Nacional) de alterar a correlação de forças no legislativo brasileiro...
Depois dessa pequena investigação, concluo que:
a) Não há qualquer "projeto venezuelano" em discussão, como afirma o título da matéria. O que pode haver é a atualização do quórum em cada distrito, como manda a lei eleitoral venezuelana, nada além disso;
b) Mesmo que haja, no âmbito do CNE, discussões que envolvam a obrigatória atualização das vagas destinadas a cada distrito na Assembleia Nacional, não há qualquer indício de que elas tenham como objetivo "restringir a eleição de deputados da oposição", como afirma a matéria;
c) Ainda que seja realizada a atualização exigida pela Constituição da Venezuela, ele não precisa ser aprovado pela Assembleia Nacional, "dominada pelos chavistas", como afirma o texto publicado como notícia.
Não posso deixar de referir-me, também, à menção que o texto faz em relação à posição de setores "críticos" que questionam a independência do CNE. O mesmo texto não faz qualquer referência ao reconhecimento internacional que esse órgão goza e à total transparência atestada por diversos organismos internacionais em inúmeros processos eleitorais por ele organizados. Fui observador internacional em processos eleitorais na Venezuela e atestei em loco a lisura do processo. Assim, quem são esses críticos? Quem representam? Onde estão? E os organismos que atestam a independência do CNE, o que dizem a respeito do tema? Por que não foram ouvidos por El Universal ou pela própria Folha?
Pelo que pude observar, Samy Adghirni não é um antichavista inveterado, à la Reinaldo Azevedo. Outros artigos atestam que o autor da "reportagem" é capaz de analisar de forma mais ou menos equilibrada a realidade venezuelana (embora fique patente seu desprezo pelo processo bolivariano). Porém, como pude atestar, a reportagem é de uma desonestidade atroz. Desonesta com os fatos, com a verdade, com a inteligência dos leitores. Nenhuma novidade em se tratando do jornal da família Frias.
Portanto, caro leitor, quando se deparar com uma "reportagem" reproduzida inadvertidamente por um jornalão brasileiro, assinada por um jornalista irresponsável ou preguiçoso, desconfie. Nem tudo - ou quase nada - o que se diz sobre a Venezuela no Brasil é verdade.